Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

"Se há limites para o exercício ético jornalístico, removam-se os limites, não a ética profissional"

ENTREVISTA / FRANCISCO JOSÉ KARAM

Rodrigo Chia (*)

O novelesco Caso Boechat trouxe a público um assunto praticamente esquecido nas redações do país: a ética. De repente, havia rodas de jornalistas discutindo o comportamento do ex-colunista de O Globo (que já encontrou guarida no Jornal do Brasil), dos diretores responsáveis pela sua demissão e da revista Veja. Em parte devido aos próprios comentários feitos por Boechat, encontraram lugar nas conversas entre profissionais da imprensa temas como relacionamento com a fonte e utilização de meios ilícitos para obtenção de informações. Mas, afinal, o que diz a ética, essa regra de conduta que parece tão flexível na mão de muitos jornalistas?

Nas escolas de Comunicação, existem professores que se dedicam com especial atenção ao assunto, como Francisco José Karam, da Universidade Federal de Santa Catarina. "Se há limites para o pleno exercício ético jornalístico, o que precisa ser removido são os limites, não a ética profissional", diz. É uma lição a ser seguida.

Como avalia o episódio envolvendo Ricardo Boechat?

Francisco José Karam ? Acho que o caso Boechat entra no clássico "negócios por fora" ou no "tráfico de influência". As duas atitudes são incompatíveis com o jornalismo qualificado, vinculado ao interesse público. Ou se é jornalista ou se é alguma outra coisa. No caso, parece haver mistura entre coluna e marketing, informação e publicidade, jornalismo e prestígio. Mesmo que Boechat tenha sido ótimo jornalista em muitas ocasiões, parece-me, à primeira vista, que errou.

Qual é sua opinião em relação às gravações ilegais usadas por revistas, jornais e redes de TV?

F.K. ? Em muitos casos, acho legítima a utilização de câmeras escondidas e/ou gravadores. Há códigos deontológicos (de conduta, de honra, de princípios, conhecidos como de ética) jornalísticos que condenam, enquanto outros defendem. Neste caso, o uso deve ser em casos em que a informação de interesse público não pode ser obtida a não ser com tais procedimentos. Profissionais foram premiados aqui e em outros países por matérias que utilizaram tais meios. Foi o uso de gravadores e câmeras que revelou dados que as fontes tentaram esconder em muitas situações e que, mediante a revelação, fez autoridades e público tomarem conhecimento. É o caso de torturas, de desvio de verbas públicas, de subornos, de chantagens de todo o tipo. Acho que o uso é válido, sem exagerar e transformar tudo em espionagem. Mas é certo que muitas fontes e setores públicos e privados, que tomam decisões com repercussões sociais graves, acabam por particularizar o interesse público, sonegando dados, mentindo, chantageando. O jornalismo precisa e deve investigar a fundo tais situações e, no limite, comprovar fatos, mesmo que com câmeras escondidas. É condenável, por exemplo, em casos em que se busca apenas a audiência, a espetacularização, a divulgação da privacidade.

A proteção da fonte pode ser levada aos últimos limites? Acobertar uma atitude ilícita, por exemplo, é justificável à luz desse argumento?

F.K. ? O sigilo das fontes, além de ser constitucional, aparece na maioria dos códigos éticos jornalísticos em todo o mundo. Foi o acúmulo teórico e prático da profissão, ao longo do século, que fez ser assim. Fontes são essenciais para a plena realização do jornalismo. E fontes são ameaçadas, mortas, perseguidas, demitidas. Por isso, embora haja muitas vezes interesses particulares das fontes ? que buscam plantar determinadas informações ?, a proteção delas é um patrimônio universal do jornalismo, que não é igual à investigação judicial ou policial, é apenas jornalismo, e isso não é pouco. É preciso, a meu ver, que os jornalistas também selecionem bem as fontes, para que a credibilidade das informações se mantenha.

Nos EUA, ano passado, uma pessoa que prestava serviços à United Airlines e à US Airways contatou três grandes jornais (NY Times, Washington Post e Wall Street Journal) oferecendo detalhes sobre a fusão das companhias, desde que não fossem ouvidas outras fontes. Os jornais aceitaram. O jornalista pode aceitar condições desse tipo em nome do furo?

F.K. ? Acho essencialmente antijornalístico e, portanto, antiético jornalisticamente. O princípio da desconfiança é inerente ao jornalismo e, neste caso, a diversidade de fontes estaria na base da defesa do interesse social. O que se viu, portanto, não foi jornalismo, mas marketing ou publijornalismo.

Como analisa a prática comum nas grandes revistas de um redator/editor escrever a matéria a partir de apuração de um ou mais repórteres?

F.K. ? Não vejo problemas, desde que mantida a fidelidade aos dados e às versões das fontes. A construção do texto final exige uma costura a partir de várias matérias ou "copiões", para que se possa contextualizar um determinado fato ou fenômeno em reportagens mais extensas. Para isso, é claro, a costura precisa preservar a essência da informação e os títulos, intertítulos, subtítulos e fotos precisam estar adequados ao conteúdo e não tentar desmenti-lo. Algum tempo atrás, havia uma frase típica para Veja, que servia também para outras publicações: "Se os fatos não correspondem ao que pensam os editores de Veja, azar dos fatos." Não me parece que deva ser assim e efetivamente, na maioria das vezes, não é. O que significa que em algumas ocasiões é, e isso precisa ser criticado.

Considerando-se que os jornalistas, ao contrário de médicos, advogados e outros profissionais liberais, dependem das empresas para exercer sua profissão, é possível falar na ética do jornalista como indivíduo? Essa ética não acaba esbarrando, cedo ou tarde, na "ética" praticada pela empresa?

F.K. ? Embora o jornalista deva exercer uma "ética" convergente com a do
cidadão ? lembrando Claudio Abramo ?, é inegável que há um conjunto de procedimentos morais que culminam na especificidade do fazer jornalístico. Todas as profissões se defrontam com decisões, dilemas, cada uma no exercício de sua atividade, é claro. No jornalismo não é diferente. Se há limites para o pleno exercício ético jornalístico, o que precisa ser removido são os limites, não a ética profissional. Por isso, a profissão está vinculada à luta da sociedade pela implementação e consolidação da democracia, inclusive no fazer jornalístico, inclusive na mídia. Acho possível, sim, falar em uma ética específica do jornalista, uma ética vinculada ao momento do exercício profissional, no qual o jornalista não representa a si mesmo, mas a profissão.

Como avalia, de maneira geral, a postura ética da imprensa brasileira? E nas universidades, há um trabalho efetivo para desenvolver esse tipo de valor nos futuros profissionais?

F.K. ? Acho que a imprensa brasileira acerta muito e erra bastante. Mas o fato de ela estar no espaço público de forma mais visível do que outras profissões faz com que todos tenham alguma opinião ? ainda que apenas "chutada" ? sobre a mídia. Isto não quer dizer que erre menos do que o parlamento, do que a medicina, do que o direito, do que a engenharia, do que a interpretação sociológica ou antropológica. Há erros técnicos e morais em todas as profissões e atividades, como há acertos. Os erros e acertos de qualquer atividade profissional e de qualquer setor social aparecem, visivelmente, quando o jornalismo os trata, o que significa um acerto jornalístico, inclusive ético. É por isso que sabemos de tantas coisas pela mídia, e não apenas pela conversa de vizinhos ou amigos em bares. O que me parece necessário ? e vem aumentando ? é o espaço de discussão da própria mídia, tanto pelos jornalistas quanto pela sociedade. Espaços como o Observatório da Imprensa e a criação da figura do ombudsman são importantes. Nas universidades, acho que os cursos de Jornalismo podem discutir permanentemente aspectos éticos da profissão com os alunos, seja em cada matéria feita para aula ou laboratório, seja em disciplina específica, como Ética do Jornalismo. Acho importante que sejam jornalistas com qualificação teórica que ministrem disciplinas de ética jornalística, para que haja maior eficácia e qualidade na problematização dos temas. Do contrário, a temática pode se esvair entre leis gerais (quando puxada para o lado do Direito), bons modos ou sermões (quando puxada para o lado da Teologia) ou a abstração sem o concreto (quando vinculada exclusivamente à Filosofia). Por isso, defendo disciplinas como Teoria do Jornalismo, Epistemologia do Jornalismo, Ética do Jornalismo. É uma forma de vincular a prática com a teoria, criando-se uma práxis jornalística, incluindo procedimentos operacionais de ordem ética.

(*) Editor do caderno de informática do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro

    
    
                     

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