FHC PERSEGUIDO
O presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou em depoimento concedido à jornalista Tereza Cruvinel, de O Globo (23/5), que está sendo perseguido pela imprensa. E foi além: "A leviandade da imprensa e o golpismo sem armas da oposição estão criando um clima de fascismo e terror insuportável. Não para mim, que tenho até instrumentos psicológicos para resistir. Quem pode não suportar é o país, é a democracia", disse o presidente (leia em Aspas, abaixo, o artigo de Tereza Cruvinel).
FHC desta vez se superou. Nos últimos dias, aliás, o presidente tem dado sinais de que está em uma das suas piores fases. Pelo menos a sua retórica está: logo antes de se queixar do "clima de fascismo" reinante no país, ele havia proferido a já histórica declaração de não ter sido avisado sobre a gravidade da atual crise no setor energético.
Na verdade, é possível levantar duas hipóteses para entender tamanhos despautérios.
Na primeira, temos que Fernando Henrique Cardoso é um cínico, com a convicção de governar um país repleto de analfabetos políticos e imbecis de toda a sorte. Neste caso, as falas do presidente tiveram como objetivo convencer a opinião pública de que há uma campanha da imprensa contra o seu governo, de que ele acaba de ser avisado da inesperada necessidade de um megarracionamento de energia etc.
Na segunda hipótese, temos que o presidente é um homem sincero. Sendo assim, a situação é muito mais grave. Usando um exemplo tosco, podemos todos, de agora em diante, nos sentir como os passageiros da aeronave do filme Apertem os cintos que o piloto sumiu.
Senão vejamos. Acreditemos por um instante que o presidente da República foi avisado apenas nos últimos dias sobre as condições correntes do setor energético do país. Seria razoável, então, supor que ele demitisse ao menos os burocratas diretamente envolvidos na omissão. Não há, porém, notícia de que alguém tenha sido punido ou advertido, muito menos afastado do governo. Pelo contrário: o ministro da pasta responsável pelo assunto continua no cargo e até integra o tal "ministério do Apagão", doravante responsável pela condução da crise.
O surrealismo da situação acima não é maior do que no caso da queixa do presidente de "perseguição" da imprensa a seu governo. Em primeiro lugar, ninguém em sã consciência neste país há de dizer que algum órgão de comunicação de peso tenha feito ou faça a mais leve oposição ao governo FHC. Muito pelo contrário: as poucas e isoladas vozes críticas que ainda encontram espaço na mídia não se cansam de lembrar que praticamente toda a grande imprensa apoiou ? parte dela ostensivamente ? a candidatura de FHC em 1994 e a sua reeleição em 1998.
A rigor, desde o início dos anos 90, ainda no governo de Collor de Mello, os jornais, revistas e redes de rádio e TV do país colaboraram para criar um "caldo de cultura" favorável à introdução de uma política econômica neoliberal consolidada por FHC, a partir de 94. A operação de convencimento dos corações e mentes dos brasileiros ocorreu especialmente no tocante às privatizações e à abertura comercial: a mídia ofereceu ao povo a idéia de que privatizar e abrir o mercado eram as duas grandes panacéias para os problemas cruciais do país.
O tempo passa e é certo que os ventos agora estão começando a virar. A crise energética, a cada vez mais provável ruptura da aliança que sustenta o governo e as denúncias de corrupção são os fatores mais visíveis do que talvez seja o pior momento político de FHC desde 1994.
Apesar da gravidade do momento e ao contrário do que se poderia supor, porém, o presidente não tem do que reclamar. Alguns exemplos são emblemáticos para que se perceba o tratamento reverencial que a mídia ainda dispensa a FHC.
Em editorial recente, o jornal O Estado de S.Paulo rebateu as teses do, digamos assim, primeiro-filósofo, José Arthur Gianotti, que em longo artigo na Folha de S.Paulo atacou o que qualificou de "jornalismo moral" (veja em Aspas, nesta rubrica, a polêmica em torno do artigo de Gianotti). Pode parecer incrível, mas ao mesmo tempo em defendia a possibilidade ou "liberdade" de criticar o presidente, o Estadão foi explícito e escreveu que reconhece em FHC as qualidades do estadista (sic).
O mesmo jornal, na semana passada e em outro editorial, advertiu o ex-presidente do Senado e ? no momento em que este artigo é escrito ? futuro ex-senador, Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), sobre o perigo de que seu discurso de renúncia contivesse "excessos" contra o presidente da República.
Ora, deve estar se perguntando o leitor, mas o que dizer da seqüência de casos de corrupção no governo FHC? Da Pasta Rosa à violação do painel, não foram tantos os escândalos, todos noticiados pela imprensa? Será que o presidente não tem razão em se queixar da mídia?
Não, o presidente não tem do que se queixar. Sem dúvida alguma, a mídia cobriu um sem número de episódios escusos envolvendo o governo federal, mas o leitor vai notar, se se der ao trabalho de analisá-los um a um, que todos esses casos, sem exceção, foram denunciados por aliados de FHC.
Assim, não se trata de "leviandade da imprensa", muito menos de um "golpismo sem armas da oposição", nas palavras de Fernando Henrique Cardoso. O presidente, é bom que se diga, vem enfrentando uma das mais brandas oposições da história deste país, especialmente no seu segundo mandato.
Não foi nada disso. As trapalhadas que vêm sendo rotineiramente noticiadas são fruto da incompetência do governo FHC de manter sua base política coesa. E como os grupos que sustentam o atual presidente têm força suficiente para "bancar" a plantação de denúncias nos grandes órgãos de comunicação, fica muito difícil para o governo abafar esses casos. Até agora, porém, o presidente tem conseguido, a cada novo escândalo, promover sucessivos arranjos que reordenam a sua base de sustentação e… tiram da mídia o caso de corrupção do momento ou geram as tão conhecidas "pizzas" políticas.
O grande problema do presidente Fernando Henrique Cardoso, portanto, não é a mídia nem a oposição. São os seus amigos. Ou, no diagnóstico do filósofo oficial, é o fato de o presidente ter de trafegar na "zona da amoralidade" política. Uma desculpa antiga, como se vê.
Tudo somado, é bom saber que o presidente possui "instrumentos psicológicos para resistir". Melhor não imaginar o que seria do país se ele não os possuísse…
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