MEMÓRIA / NASCIMENTO BRITO
“Quatro histórias de Nascimento Brito”, copyright DCI, 12/02/03
“Ainda andava lá pela Bahia, deputado na década de 60, fui ao Hospital dos Servidores do Estado, no Rio, visitar José Aparecido de Oliveira, que convalescia de uma grave operação de úlcera.
Sentados à beira da cama, conversando, dois amigos dele. Um, alto, elegante, britânico, terno, camisa, sapatos e gravata impecáveis, como se tivesse saído do banho. Outro, magro, pálido, cara de escrivão de cartório.
Aparecido me apresentou, dizendo que eu tinha estado na União Soviética, estudando, voltado lá outras vezes, e devia ter gostado dos textos do diretor do ?Jornal do Brasil?, Nascimento Brito, contando sua viagem à URSS, em 63.
Respondi que realmente tinha lido e gostado, mas, nas redações dos jornais do Rio, dizia-se que o diretor tinha de fato viajado, mas quem escreveu fora o brilhante jornalista Wilson Figueiredo, editorialista do jornal.
O homem alto e elegante levantou-se britanicamente, vermelho como um pimentão, e me disse indignado que o texto não era de Wilson Figueiredo coisa nenhuma, mas dele mesmo, Nascimento Brito.
Quase caí duro. Nunca o tinha visto. Por pouco não precisei me internar do susto e da terrível gafe. O outro, magro e pálido, cara de escriturário, era José Luís Magalhães Lins, do Banco Nacional, que também não conhecia.
Aparecido, que já curtia uma manhã hospitalar, ficou logo bom.
Terapia em Nova York
Em 79, em Nova York, fui a outro hospital, visitar o deputado Thales Ramalho, secretário-geral do PMDB, que, doente, estava fazendo fisioterapia. Brizola, já exilado nos Estados Unidos, depois do Uruguai, acabara de estar lá.
No mesmo hospital, no mesmo centro de fisioterapia, também se tratava Nascimento Brito, que tinha tido um problema cardiovascular na Venezuela. Thales Ramalho, com a finura de seu talento, comentou:
– O dr. Brito é tão elegante que faz fisioterapia como se jogando golfe.
Um bife em Paris
Em 92, quando João Havelange, o sumo-sacerdote do futebol mundial, recebeu, numa grande solenidade, a Legião de Honra da França, dada pelo presidente François Mitterrand, o embaixador brasileiro em Paris, Carlos Alberto Leite Barbosa, lhe ofereceu um belo jantar.
Presentes, amigos franceses e brasileiros, inclusive Nascimento Brito, com seu porte e sua bengala. Adido cultural, também estava lá. Quando o garçon lhe serviu o filé, Nascimento Brito, com a maior naturalidade, pediu ao jornalista Reali Junior, do ?Estado de S. Paulo?, que estava ao lado dele:
– Reali, por favor, corta meu bife.
Reali cortou, ele pegou o garfo com a mão boa e comeu.
A audiência de Collor
No fim do jantar, surgiu o nome do presidente Fernando Collor, já sendo atropelado pelo processo de impeachment.
Nascimento Brito estava magoado:
– Sempre gostei muito dele, mas não consigo entendê-lo. Criado no Rio, foi amigo de juventude de meus filhos, inclusive na nossa casa. Um rapaz estudioso, educado, um cavalheiro. Chega à presidência da República, peço-lhe uma audiência, como sempre tive de todos os presidentes, desde Juscelino, inclusive os militares. E ele não me recebeu, como não recebeu os diretores de quase todos os jornais e revistas. Se ele negasse a audiência a Nascimento Brito, tudo bem. Um direito dele. Mas negou ao diretor ao ?Jornal do Brasil?, um jornal secular, vindo do Império, parte da história do País.
Olhou para mim, que o ouvia, sentado à frente, e perguntou:
– Diga-me você, que é amigo dele. Se fosse com você, o que você faria?
– Faria um editorial de canhão na primeira página.
Depoimento de Noenio Spinola
No caderno especial, que o ?Jornal do Brasil? dedicou domingo à memória de Nascimento Brito, depoimento de um ex-editor-chefe do JB primou pelo despojamento e nível jornalístico: o de Noenio Spinola, que aliás não foi dos que mais tempo trabalhou no jornal. Traçou um retrato humano e profissional, com atos e fatos. E bastava.
O advogado Ruy Barbosa
Um leitor escreve contando que um professor de universidade no Rio garantiu em aula que Ruy Barbosa nunca foi advogado.
Em 1862, o pai, João Barbosa, foi eleito deputado federal e veio para o Rio. Ruy ficou em Salvador, com a mãe, estudando. Depois, foi estudar Direito em Recife, onde foi colega de Castro Alves e Joaquim Nabuco. Morava no mosteiro dos beneditinos em Olinda.
No terceiro ano, a mãe morreu e ele foi para São Paulo, terminar o curso de Direito no Largo de São Francisco, onde reencontrou Castro Alves e Nabuco e se formou em 1870. Um livro clássico, ?O advogado Ruy Barbosa?, do ex-deputado integralista baiano Rubem Nogueira, conta tudo.”
“E era tudo espuma”, copyright Jornal do Brasil, 12/02/03
“Até hoje não são claros os motivos da saída de Odylo Costa, filho, da direção da redação do Jornal do Brasil em 1958. A versão mais comum a atribui à publicação de uma foto na primeira página. Ao cobrir audiência do presidente Juscelino Kubitschek com o secretário de Estado dos EUA, Foster Dulles, o fotógrafo Antônio Andrade clicou a máquina no instante em que Juscelino estendeu a mão para cumprimentar Dulles. Pelo ângulo, parece que o presidente está pedindo dinheiro ao secretário. A foto correu mundo e a Tribuna da Imprensa republicou-a com legenda inspirada em marchinha de Carnaval: ?Me dá um dinheiro aí?. Dizem que Juscelino ficou indignado e retaliou, vetando a concessão de um canal de televisão para o Jornal do Brasil. Desgastado, Odylo, que dera início à reforma do JB, deixou o cargo.
Existem outras versões. Wilson Figueiredo, por exemplo, conta que Odylo, apesar do apoio da Condessa Pereira Carneiro, batia de frente com Manoel Francisco do Nascimento Brito por questões administrativas. Zeloso com os negócios da empresa, doutor Brito cobrava de Odylo cortes na folha de pagamento e mais rigidez nos horários. Chegou a pôr um relógio de ponto na redação. Foi o xeque-mate. Odylo pediu demissão.
Desde cedo, ouvi comentários sobre as rusgas de Odylo com Nascimento Brito. Rusgas, diga-se, típicas da imprensa. Por motivo simples: enquanto os empresários de comunicação preocupam-se com o equilíbrio entre receita e custos, os jornalistas só têm olhos para as notícias. Sempre que o assunto é corte de despesas e de pessoal, surgem conflitos. Muitos diretores de redação pedem demissão. Não sei se foi o caso de tio Odylo. Mais correto, talvez, seja afirmar que houve um conjunto de circunstâncias.
Com tais antecedentes, fiquei apreensivo quando Noenio Spinola indicou-me para o cargo de editorialista do JB, em 1999. Já havia trabalhado no jornal em 1973, depois por cinco meses em 1980, e de 1990 a 1993, quando dirigi a Agência JB. Mas era diferente. Seria a primeira vez que iria trabalhar diretamente com o doutor Nascimento Brito.
Pois bem. Na apresentação, Wilson fez referência ao meu parentesco com Odylo. Doutor Brito, após perguntar quem era meu pai, deu-me boas-vindas à reunião diária dos editorialistas. Foi cortês e atencioso do primeiro ao último dia em que o vi na sede do JB na Avenida Brasil.
Tive o prazer e a honra de conviver com doutor Brito por dois anos, na mesa redonda na qual, das 15 às 16h, eram discutidos os editoriais. Confirmei tudo o que falavam sobre sua altivez e sua elegância, mas é tempo de fazer uma confissão.
No auge da Nova Economia, deslumbrei-me com os oito anos seguidos de alta da Bolsa de Nova York e os grandes negócios envolvendo provedores da internet. Fiz vários editoriais inspirados no fenômeno. Volta e meia, doutor Brito perguntava: ?Você não acha que há muito exagero nisso tudo?? Eu dizia que não. E apontava as previsões de faturamento das novas empresas. Doutor Brito sorria. Até que, um dia, ele recomendou: ?Tome mais cuidado, tudo isso é espuma?.
Um ano depois, a Bolsa de Nova York despencou, as cotações das empresas de tecnologia desabaram e fortunas viraram pó. A Nova Economia ruiu. Doutor Brito estava certo. A Nova Economia não passava de espuma. Aos 78 anos, me deu uma aula de sensibilidade jornalística.”
“O doutor Brito”, copyright Jornal do Brasil, 13/02/03
“Manoel Francisco do Nascimento Brito, pra nós, da casa, simplesmente, ?doutor Brito?. Ele não era jornalista de redação, mas o era de coração. Quando é assim, mais sentida é a morte de alguém que soube comandar, anos e anos, a instituição chamada JB.
O doutor Brito deixa um nome ligado a dois momentos marcantes da história deste legendário jornal, meu pouso durante tantos anos. Um privilégio que tanto prezo.
Quando comecei a trabalhar aqui, em 1959, o JB já estava embalado na sua febril revolução concebida pela Condessa Pereira Carneiro e que o doutor empalmaria. Começo por me lembrar de Amílcar de Castro, então um jovem escultor, rabiscando, em silêncio, a nova diagramação do jornal. O JB ganharia, então, um perfil gráfico jovial, sem que perdesse a aparência austera que lhe imprimira o Conde Pereira Carneiro, o fundador, e seus ilustres articulistas, todos literatos, alguns da Academia Brasileira de Letras.
Odylo Costa Filho foi o animador da nova concepção editorial do JB, inspirada, sabe bem a história, no talento de Reynaldo Jardim. Ao lado de Odylo, três jovens inquietos: Jânio de Freitas, o poeta Ferreira Gullar e José Ramos Tinhorão, os três à frente de um time respeitável de jornalistas que virava dia e noite na batalha da notícia qualificada, da análise ponderada, da opinião criteriosa. Em pouco tempo, o JB estava consagrado no Brasil como modelo de jornal bem feito, bem escrito, bem informado e, como sempre, independente.
O jornal do doutor Brito passaria, de consciência limpa, no teste mais árduo de sua carreira, que foram os anos de treva da ditadura militar. Resistiu e repeliu a censura, com altivez e, sobretudo, recorrendo a uma linguagem inteligente a serviço de idéias apenas insinuadas, que escapavam à proverbial obtusidade dos milicos de plantão. Não escapavam, porém, à sensibilidade dos leitores. Afinal, pra bom entendedor, meia palavra basta.
Nesse tempo, a redação pulsava, inflexível e bravamente, sob a liderança de Alberto Dines, um dos meus mestres de jornalismo, que seria, por muitos anos, o homem de confiança da direção. Tempos inesquecíveis do legendário Jornal do Brasil, criação da dinastia Pereira Carneiro, agora, pra sempre também, o JB do doutor Brito.”