DIPLOMA EM XEQUE
Antonio de Oliveira (*)
Ao FHC, ministros, senadores e deputados: há 32 anos entrei pela primeira vez numa redação. E não sai mais. Estava no primeiro ano da faculdade de Jornalismo. Completei o curso trabalhando de dia e estudando à noite. Sou do tempo em que jornalismo era uma atividade para a qual a gente tinha que se preparar (e bem), pois defendia-se a idéia de que deve ser bem feito, trabalhar essencialmente com a verdade, a ética, aquelas coisas que servem para informar e formar bem a opinião pública. Para que ela entenda o que está acontecendo ao seu redor, no país e no mundo, e evolua. Do tempo em que a gente via o jornalismo não como uma coisa "nossa ou para nós", mas uma propriedade de toda a sociedade. E era por isso que se tinha uma enorme responsabilidade.
No primeiro dia em que entrei na redação logo observei um grupo que vivia à parte dos demais, meio enclausurado num canto da redação. Fechado. No único lugar isolado por uma meia porta. Ali eles brigavam e gritavam muito uns com os outros. Se xingavam. Passados alguns dias me aproximei, olhei para dentro do cubículo. Vi um revólver e um par de algemas em cima da mesa do chefe. E um rádio conectado direto com a Central de Polícia. Um companheiro me disse que ali era "a turma da polícia". Na minha ingenuidade, pensei que houvesse na redação uma espécie de minidelegacia. Ele me explicou que não. Era a Editoria de Polícia.
Na seqüência, descobri que a maioria dos repórteres era composta de policiais de verdade e de outros que eram comprometidos, alcagüetes, e até mais perigosos que os próprios policiais. Uns batiam nos presos nas delegacias para "arrancar" a confissão. E até tinham (pasmem) mulheres "se virando" nas quadras da cidade, e passavam com o carro do jornal no final da madrugada para recolher a "féria da noite" das suas "protegidas". E batiam nelas quando a "féria" era pouca.
Conhecendo, aprendi que uma das coisas a fazer era lutar para mudar aquela situação. Na evolução, acabei participando diretamente do processo que substituiu aquele grupo de bandidos por jornalistas de verdade, formados nos cursos universitários. Num processo da empresa para mudar a imagem do jornal, que tinha a fama de que "se espremesse saía sangue".
Presidi o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul e participei de direções da Federação Nacional dos Jornalistas. Sempre defendendo a idéia de que o jornalista trabalha com um "produto" de extrema e delicadíssima valia, que não é dele, que não é de sua "propriedade". E, por isso, sua preparação para a função exige uma consciência e uma formação apuradíssimas. Que, se não são encontradas no banco da universidade, a verdade é que não se pode, para ser um bom profissional, dispensar os seus ensinamentos técnicos e éticos. Para mim, o jornalista tem na sua relação com a ética e a verdade a mesma relação que o médico tem com a vida e a morte.
De repente, vejo jogado no lixo, num canetaço bem articulado entre uma juíza e os proprietários das grandes empresas de comunicação do país, todo o meu sonho e o de milhares de jovens que buscam anualmente as faculdades de Jornalismo para estudar, se formar e exercer a profissão com dignidade e respeito. Ela decretou que não precisa mais estudar para ser jornalista. Pode até ser analfabeto. Que todos os marginais que antigamente exerciam a profissão podem retornar. Que os revólveres e as algemas podem voltar para cima das mesas dos chefes das editorias de polícia. Que "repórti otoridadi podi batê in preso e vortá pra redação". E ter mulher na quadra.
Ainda bem que os dirigentes sindicais estão atentos e denunciam que o canetaço da juíza para o fim da exigência de formação para jornalista está vinculado ? e foi uma das várias exigências do capital externo ? à possibilidade aberta pelo Congresso Nacional para que grupos estrangeiros participem em até 30% do capital de empresas brasileiras de mídia. Não que elas estejam falidas. É que se utilizam da comunicação social apenas para conseguir capital para investir em outras áreas, que vão muito bem, obrigado.
É uma pena que alguns jornalistas e intelectuais brasileiros, com vastas folhas de serviço marcadamente progressistas, estejam caindo nesta ladainha, em nome de uma falsa e perigosa defesa da "liberdade de expressão".
Só resta aos jornalistas sérios deste país e à sociedade brasileira a luz das mentes dos senhores ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, deputados e senadores. E do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por que não? Todos serão procurados para que seja passado um corretor no canetaço articulado entre a juíza e os patrões das grandes empresas de comunicação do país e restaurado o respeito à profissão de jornalista.
(*) Jornalista formado pela Famecos-PUC-RS, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul; e-mail: <aoliveir@piratini.rs.gov.br>