MÍDIA & ATEÍSMO
Daniel Sottomaior (*)
Salman Rushdie é um dos ateus mais famosos de nosso tempo. Mas suas críticas ao islã poderiam ter passado como injustas se não tivessem sido maravilhosamente ilustradas pela condenação à morte que recebeu de autoridades religiosas, em uma involuntária confissão de culpa do mundo islâmico.
Muitos descrentes preferem se fazer de religiosos a perder uma eleição ou um negócio. Rushdie, ao contrário, se manteve firme mesmo com sua vida em perigo. Se fosse católico, corria o risco de virar santo.
Mais recentemente, mas desta vez em menor escala, evento semelhante aconteceu quando suas críticas à religião despertaram uma ira que acabou por confirmá-las. Em entrevista à Veja concedida em maio, ele afirmou que "a linguagem da religião é uma linguagem de absolutos que, mais cedo ou mais tarde, levam à estigmatização de um grupo. Como o grupo dos ateus, por exemplo".
Dito e feito. Duas semanas depois, Gilberto de Mello Kujawski fazia questão de estigmatizar os ateus na página 2 do Estado de S.Paulo (http://www.estado.estadao.com.br/editorias/03/05/29/
aberto002.html). Parece que as crenças de Rushdie recebem ampla confirmação empírica, o que é muito mais do que a maioria dos teístas pode dizer.
O ateísmo geralmente se calca em uma postura de valorização das idéias que resistem ao debate racional. As críticas consistentes, portanto, são sempre bem-vindas. Permanece ateu somente aquele que conseguir refutar cuidadosamente todos os argumentos em contrário. Mas em vez de argumentos, Kujawski apresentou somente maledicência e desinformação. Reproduzir sua cuspideira leva um parágrafo inteiro, e dos gordos.
O jornalista acusa Rushdie de "leviandade e má-fé" além de chamá-lo de "sujeito infeliz", "pobre diabo", "infeliz em sua aparência pouco simpática, aqueles olhos mortiços numa cara de marmota", "marmota intelectual, dessas que hibernam dez meses por ano e não têm condições para pensar", "o maior expoente da irresponsabilidade intelectual que grassa hoje em dia", "aventureiro das letras" e "demagogo do ateísmo". Rushdie e José Saramago, também ateu, teriam "opacidade mental e pequenez do pensamento", além de "mentalidade anacrônica e ressentida". Para Kujawski, "por aí se vê como o mundo anda mal, com um Rushdie pontificando no Oriente e um Saramago, no Ocidente". Não contente, o jornalista declara sem a menor cerimônia a inexistência de qualquer ateu verdadeiro ("os ateus não são ateus, o que eles são é ?inimigos de Deus?"), atribui a descrença a "ressentimento profundo, neurose, malevolência ou simples mal-entendido" e qualifica o agnosticismo como "postura pusilânime, covardia intelectual".
"O hábito de invocar a autoridade divina para legitimar preconceitos, perseguições e atrocidades é muito antigo, mas ressurgiu com força nos últimos tempos." Essas são palavras de Rushdie entremeadas por Kujawski aos insultos acima. O jornalista certamente não notou que, mais uma vez, cumpria a profecia à risca. E ele nem precisou de autoridade divina: o texto parece não requerer nenhuma justificativa além do próprio ódio do autor. E é um ódio dirigido aos ateus, pessoalmente, embora motivado pelo ateísmo.
Credulidade humana
Confundir idéias com pessoas, e pessoas com aparências, é um sinal clássico de obscurantismo. Quando um homem tenta se valer até das feições de outro para atacar suas idéias é porque qualquer resquício de racionalidade ou civilidade foi abandonado há muito tempo. Essa é uma das formas mais baixas de insulto e preconceito. Quando generalizada, chama-se racismo. Agradeço a Kujawski a demonstração clara de que o teísmo não só não impede como motiva posturas deploráveis como essa.
Não é por outra razão que Seteven Weinberg, prêmio Nobel de física, já havia notado que "a religião é um insulto à dignidade humana". Afinal de contas, "com ou sem ela teríamos pessoas boas fazendo o bem e pessoas más fazendo o mal. Mas para pessoas boas fazerem coisas más, é preciso religião". Se o bom caráter de ofensores da estirpe de Kujawski ainda merecer o benefício da dúvida, está tudo explicado.
O que me surpreende e entristece é que seu texto seja publicado na grande imprensa e sem possibilidade de resposta em igual espaço.Não tenho conhecimento da veiculação de nenhum ataque semelhante, dirigido a cristãos por seu cristianismo. Se algo assim acontecesse, é muito, muito difícil de crer que os líderes cristãos não teriam amplo espaço de resposta. Que nome dar a esse "tratamento diferenciado" se não for desprezo ou preconceito?
Segundo o jornalista, a cultura indiana é representada hoje por Rushdie. Quem dera um ateu recebesse tamanho crédito. A grande estrela hindu de hoje, celebrada e citada em toda a mídia, é Deepak Chopra. Assim como Paulo Coelho, que Kujawski chamou de "místico fraudulento", ele é um legítimo representante do teísmo moderno e suas ramificações. Haja vista que tanto Coelho como Chopra enriqueceram, e muito, com isso.
Concordo plenamente com o Kujawski quando ele aponta o erro de Sartre ao proclamar, no auge do prestígio socialista, um horizonte insuperável de marxismo. É sempre uma grande tentação supor que o sucesso de hoje será o sucesso de amanhã. Mas ele não consegue perceber que cai exatamente no mesmo erro ao proclamar, e ainda por cima "sem erro", o mesmo futuro infindável ao "divino". Fora da ciência, todas as previsões são temerárias.
Não por belas palavras, mas somente por seu teísmo, Einstein também foi arrastado à arena como exemplo de "intelecto mais consistente", para opor-se a "intelectuais frívolos e superficiais como Bertrand Russel", que era ateu. Essa é uma tática tão desonesta quanto infrutífera, pois o aval de uma personalidade conhecida nada nos diz sobre o mérito da causa que ela apóia. Espero que Kujawski não cite Newton para validar a astrologia ou Aristóteles para defender a escravatura e a inferioridade feminina. Além disso, Einstein deixou muito claro que não acreditava em nenhum tipo de deus pessoal, consciente ou preocupado com os afazeres humanos. Sua "religiosidade cósmica" era a de admiração pelo próprio universo, unicamente. Pelos padrões de todos os religiosos que conheço, era um ateu.
É preciso ainda desfazer a enxurrada de enganos que o jornalista semeou. Segundo ele, o ateísmo seria contraditório por "negar Deus mas colocar em seu lugar outros absolutos". Ora, o ateísmo é tão-somente a ausência de crença em deuses, e não tem nenhuma doutrina ou ideologia própria. Por isso, não pode ser acusado de ter absoluto algum. Ainda que tivesse, o problema dos ateus não é com absolutos, mas com a credulidade humana.
Que fique bem claro: o que falta ao ateísmo é a crença em deuses. Imerso em seu culturocentrismo, Kujawski esquece que sua própria visão de teísmo é uma entre as muitas que povoam a imaginação humana, incluindo diversas animistas, deístas, panteístas e politeístas. "Deus" é apenas a particular divindade judaico-cristã, dentre as milhares que já se concebeu. Quanto a todas as demais, Kujawski é exatamente tão ateu quanto eu. Os ateus só descrêem de um deus a mais que ele.
Exemplo claro
A idéia de que os ateus são somente "inimigos de deus", apregoada pelo jornalista, é somente um estereótipo que revela desconhecimento do que os ateus pensam. Somos tão inimigos de Deus como ele é de Amon-Rá, Thor e Shiva. O teísta enrustido, melhor descrito como teófobo, não só não representa a comunidade de descrentes como é francamente rejeitado por ela. Em anos de ativismo, nunca conheci um indivíduo ou organização que tivesse essa postura.
O jornalista também distorce o agnosticismo para conseguir criticá-lo. Kujawski afirma que o agnóstico "não quer avançar além dos limites reconhecidos do conhecimento". Seria preciso algum dom de telepatia para saber isso. O agnóstico, como a maior parte das pessoas, quer muito conhecer mais. A diferença entre os agnósticos e os teístas é que os primeiros admitem com clareza que, ao menos por ora, não conseguem conhecer tudo que gostariam. Os teístas se recusam a admitir isso e dão o nome de Deus ao que desconhecem.
O jornalista reclama ainda que as críticas de Rushdie à religião se referem somente ao fundamentalismo e foram injustamente generalizadas à religião. Esse comentário merece várias respostas. Em primeiro lugar, o próprio Kujawski, que não deve se considerar fundamentalista, incorreu mais de uma vez nas atitudes que Rushdie critica. Além disso, se a religião é coisa tão boa, que mal há em seguir à risca seus fundamentos? Fundamentalismo só é xingamento se os fundamentos são ruins. Ou o jornalista também condena aqueles que se apegam aos fundamentos da democracia, da ética e dos direitos humanos?
O fundamentalismo é a religiosidade mais pura que existe. Como, então, atacar um e defender o outro? Nas palavras de Ronaldo Cordeiro, responsável pela versão em português do Skeptic?s Dictionary, "que culpa têm os críticos se os fundamentalistas seguem o que as religiões, com a autoridade de seus livros sagrados, mandam? Os religiosos moderados, na verdade, são os que deturpam as religiões. Basta ler a Bíblia ou o Corão para encontrar passagens claras e inequívocas sancionando a escravidão, o sexismo, a violência, o genocídio e a hostilidade para com os que não rezarem pela mesma cartilha. Os moderados são um acidente de percurso, algo imprevisto na origem das religiões, e não seus legítimos representantes. Os autores do Pentateuco jamais imaginariam alguma coisa como o cristianismo, e provavelmente condenariam à morte qualquer um que aparecesse na época pregando coisas contrárias à cultura local. Não há nada no ateísmo que pregue a destruição das religiões. Nas doutrinas religiosas, ao contrário, é comum haver incentivos explícitos à supressão das demais crenças".
É por isso que a separação igreja-estado existe em grande parte para proteger o Estado da religião. Não é à toa. O Brasil é um país supostamente secular e de não muitos fundamentalistas ? ainda. Mesmo assim, os crucifixos estão em todos os tribunais e casas legislativas do país e só os ateus parecem se importar. Tanto o cristianismo como o islamismo não-fundamentalistas ainda discriminam mulheres e condenam homossexuais. Imaginem o que aconteceria se o Estado fosse tomado pelas ideologias desses "moderados" religiosos.
Apesar de a palavra advir de um evento historicamente recente, "fundamentalismo" é apenas uma subjetividade de significado variável com o tempo. Aos olhos de hoje, todo o cristianismo de alguns séculos atrás, com suas fogueiras de livros e de pessoas, parece tão fundamentalista quanto os islâmicos mais xiitas atuais. À medida que a sociedade progride e reconhece os abusos religiosos, mais e mais práticas são taxadas assim.
Quando chegou ao continente, a igreja debatia se negros e índios teriam alma. Não para saber se podia escravizá-los, pois isso era ponto pacífico, mas para saber se devia convertê-los. Há poucas décadas o veto da igreja aos anticoncepcionais parecia normalíssimo e a proibição ao divórcio tinha sido incorporada até à lei. O problema, portanto, não é só o fundamentalismo. A religião de hoje é o fundamentalismo de amanhã.
Cordeiro explica isso muito bem:
"A ?desbarbarização? da humanidade tem sido conseguida a despeito da religião, não com sua ajuda. Os líderes religiosos só clamam por direitos humanos depois que esses direitos já foram definidos pelos seculares. A mesma Igreja Católica que hoje condena violações de direitos humanos, usou e abusou da tortura na época da Inquisição".
O jornalista odeia tanto, mas tanto os ateus, que chega ao ponto de negar sua existência. Nisso torna-se espantosamente semelhante àqueles que, também por motivos religiosos, são incapazes de aceitar a realidade e pensam que os homossexuais são revoltados contra o sexo oposto. Até a falsa compreensão de motivos é idêntica: "ressentimento profundo, neurose, malevolência ou simples mal-entendido". Se quem acha isso dos homossexuais e homófobo, então Kujawski é certamente um ateófobo. Isso sim é ressentimento profundo, neurose ou malevolência.
Segundo ele, "não temos como sufocar a palpitação da religiosidade, o pressentimento de que o mundo transcende os limites do nosso conhecimento científico e a suspeita de que não estamos sós no universo". Não temos quem, cara-pálida? Quando Rushdie afirma que não precisa da idéia de Deus para explicar o mundo em que vive nem de uma entidade como Deus em sua vida, ele fala por todos os ateus. O jornalista, mais uma vez, só consegue entender a existência de pessoas iguais a ele. Qualquer outra coisa é tão distante de sua realidade que lhe parece plenamente impossível. E olhem que ele não se considera fundamentalista.
O pensamento eu sou o mundo mostra uma inabilidade completa em compreender a diversidade e o outro. Ademais, uma necessidade de crença não tem nada a ver com sua veracidade. Pressentimentos, palpitações e suspeitas sem evidências são péssimos motivos para justificar qualquer coisa, quanto mais os ataques de Kujawski. O principio de liberdade religiosa não exclui aqueles que não têm religião, sejam eles ateus ou não.
Poucos meses atrás escrevi neste Observatório ("Longe dos olhos de ver", remissão abaixo) apontando má vontade generalizada da imprensa contra o ateísmo. Um dos exemplos mais claros era um especial sobre religiões da Folha de S.Paulo, que ignorou as críticas e o pedido de resposta ou retratação, da mesma maneira que o Estado. O especial descrevia diversos credos de maneira elogiosa e o ateísmo como "um vício profundo". Parece que ao menos nisso a Folha e o Estadão concordam plenamente.
(*) Engenheiro, membro da Sociedade da Terra Redonda <http://www.str.com.br>
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