LEITURA DE VEJA
Jonas Medeiros (*)
Desde o começo da cobertura dos atentados terroristas nos EUA, a revista Veja não tem publicado o nome dos autores das matérias na seção Especial, dedicada exclusivamente a este assunto.
Este artifício de retirar a autoria dos textos tem, aparentemente, o objetivo de tornar as abordagens neutras, imparciais e inquestionáveis, já que o leitor é levado a crer que aquela não é a visão de um indivíduo, e sim do meio de comunicação como um todo.
Porém, fica claro que, por um lado, a revista tem um discurso coerente que percorre todas as matérias (a defesa do sistema capitalista, por exemplo); mas, por outro lado, existem deslizes que revelam contradições entre reportagens, apresentando visões que não podem coexistir.
E os civis? Insistentemente, Veja (n.? 1.722, de 17/10/01) resume os ataques americanos que estão ocorrendo a uma oposição entre fundamentalistas islâmicos barbudos (ligar os terroristas com esta imagem faz o leitor lembrar de outros barbudos, não? Fidel, Lula…) e fanáticos que vivem em país do Terceiro Mundo, com características bélicas feudais, incapazes de combater o arsenal militar tecnológico (recursos eletrônicos sofisticados e mísseis computadorizados com margem de erro de 10 metros) e de custo altíssimo (o avião B-2, US$ 2 bilhões; cada míssil Tomahawk, US$ 1 milhão).
Fatos ocultos
Durante a primeira semana de ataques, a guerra também foi travada no campo da propaganda. O Talibã fez sua parte, divulgando que os bombardeios haviam matado cerca de 300 civis. Esta informação não pôde ser confirmada por fontes independentes, pela impossibilidade de acesso dos meios de comunicação ao território afegão.
Mas foram confirmados, pelo menos, dois casos de mortes de civis. Um escritório da ONU localizado a leste de Cabul foi atingido por um míssil e 4 pessoas morreram. Uma área residencial também foi atingida, deixando 1 morto e 4 feridos. [Nota do OI: No dia 16, o bombardeio de um armazém da Cruz Vermelha fez um ferido e queimou estoques.]
Estes fatos são ocultados por Veja (tanto as possíveis 300 mortes como as 5 confirmadas), que em nenhum momento os comenta. A morte de civis é considerada "um dano colateral… de péssima repercussão". Outra notícia que foi muito usada por outros meios de comunicação, a chamada "operação pão e bombas", é citada sem considerar a hipocrisia contida neste ato do governo americano: "Washington está tentando ganhar a simpatia da população local ? e também esfriar ressentimentos em outras nações muçulmanas ? com a distribuição de comida e remédios."
Sem lógica
Para terminar a reportagem principal ("O míssil e o barbudo"), a revista, sem qualquer prova de envolvimento iraquiano nos atentados, coloca Saddam Hussein como alvo preferencial para uma possível expansão dos ataques. Mesmo que a participação do ditador nos recentes casos de bioterrorismo (antraz) seja confirmada (Jornal da Tarde, 15/10/01), no momento atual é precipitado e preconceituoso o desejo de atacar o país.
"Doido varrido", "Não usa o telefone, raramente faz pronunciamentos públicos e se recusa a encontrar estrangeiros", "Não se deixa fotografar" e "Só sabe escrever o próprio nome". Esta é a caracterização que Veja faz do mulá Mohamed Omar, "líder incontestável do Talibã". Ao contrário dos governantes ocidentais, que usam da razão e são escolhidos democraticamente, Omar é visto como o extremo oposto: "O mulá bibi fonfom" é o título da reportagem.
Na própria lógica do texto, os argumentos caem em contradição: primeiro se diz que "o fanático religioso… conduziu um país miserável a um confronto militar com os Estados Unidos", mas depois Veja relata o que o guarda-costas de Omar disse: "Foi engraçado quando os americanos pediram a Omar que entregasse Laden. Na verdade é Laden quem pode entregar Omar", querendo evidenciar que o Talibã virou refém do terrorista. Se o líder da milícia do Talibã é louco e não passa de marionete nas mãos de bin Laden, por que a revista gastou duas páginas falando sobre a vida deste "intrigante personagem"?
Visão parcial
Sem qualquer conteúdo crítico, Veja fala da recomendação de Bush à mídia americana: "Na semana passada, o governo americano pediu que as redes americanas tenham cautela ao divulgar entrevistas dos terroristas à al-Jazira, por acreditar que elas possam conter mensagens cifradas para seus companheiros". A possibilidade deste pedido do presidente dos EUA se transformar em (auto)censura é ignorada. As reações da mídia ao pedido de Bush (a CNN aceitou prontamente, enquanto redes de outros países preferiram manter sua independência), de analistas ou de leitores/espectadores não são comentadas.
Cheia de dedos, a revista procura mostrar que a rede de notícias do Catar, al-Jazira, não é tão independente (uma alternativa ao quase monopólio da CNN) quanto as pessoas pensam. A matéria é ambígua: fala da "CNN do Catar", representando "um avanço e tanto no mundo muçulmano" e cita suas falhas ? "não vale mostrar o lado feio do Catar", e "muitos de seus jornalistas apoiariam correntes fundamentalistas, acusa o jornal inglês The Times". A frase seguinte também é reveladora da visão da revista: "A imparcialidade da al-Jazira, contudo, não é tão imparcial assim. A emissora jamais abordou a vida duríssima que os imigrantes indianos e paquistaneses levam no Catar. Ao se referir aos homens-bomba palestinos, chama-os de mártires. Também não são claras as relações entre a al-Jazira e a organização Al Qaeda."
O suposto engajamento da rede de notícias com o fundamentalismo como obstáculo para se alcançar a imparcialidade é apresentado para que o leitor pense que a revista que ele está lendo (esta, sim!) é imparcial e objetiva. Mas a visão de mundo dos redatores, editores e repórteres, aliada aos interesses comerciais da empresa privada, também influem na divulgação de notícias.
Indicadores limitados
Veja ataca o relativismo cultural, o multiculturalismo e o politicamente correto uma vez mais (já contei 6 vezes desde o atentado). Na capa, a revista promete explicar "Por que os países islâmicos não conseguem escapar da pobreza". Já na matéria, intitulada "Os pobres de Alá", Veja escreve: "A pobreza, obviamente, não é uma exclusividade daquele país [o Afeganistão]. E muito menos se trata de uma criação muçulmana Mas, neste hiato politicamente incorreto que o mundo vive, há uma pergunta que finalmente pode ser feita: seria o Islã uma barreira intransponível para o surgimento de uma sociedade rica, moderna e democrática?"
Num primeiro momento a revista recorre às estatísticas para tentar se explicar. Há numerosos pontos em que se poderia questionar a abordagem de Veja. Pretendo citar alguns. De cara, dois elementos que compõem a base da argumentação da reportagem podem ser abalados. Primeiro a escolha dos países. Segundo, a escolha de indicadores. Na primeira página da matéria, há uma tabela que compara os seguintes países: Paquistão, Egito, Turquia, Irã, Sudão, Afeganistão, Iraque e Arábia Saudita. A tabela pretende evidenciar os números do Islã. A própria Veja (26/9/01) publicou um mapa em que constavam 40 países com populações compostas por uma maioria muçulmana (mais de 60%). Por que Veja escolhe apenas sete países entre 40?
A resposta é encontrada na própria argumentação. Os indicadores escolhidos foram: índice de liberdade, ranking de desenvolvimento humano (IDH), liberdade de imprensa, população com acesso à internet e população analfabeta. Levanto aqui quatro questões:
1. A questão da liberdade. Entre os sete países escolhidos, quatro (mais da metade, portanto) tinham um índice de liberdade igual a sete (a condição menos livre possível).
2. O ranking do IDH. Se o índice de liberdade é medido por números e não por colocação, por que com o IDH ocorre o contrário? Para não revelar a condição individual de cada país e, sim, ressaltar a relação com os outros países (uma posição contra o relativismo: todas as nações são abordadas como se fossem iguais).
3. População com acesso à internet. Entre os leitores de Veja deve ser regra e não exceção o acesso à internet, enquanto no resto do mundo ocorre o inverso. Uma clara intenção de Veja de ignorar a realidade, e mostrar apenas o lado próximo da revista e de seus leitores.
4. Outros indicadores: expectativa de vida e PIB per capita, indicadores socioeconômicos muito usados em amostras, são ignorados pela reportagem.
Se a revista fosse fazer uma matéria que realmente quisesse ir a fundo na questão da pobreza, primeiro teria realizar algo muito cuidadoso e meticuloso. Uma revista semanal, apenas por causa do curto prazo de criação de textos, não pode se dar ao luxo de prometer algo que não pode cumprir. Uma análise socioeconômica exige trabalho, preparo e um método que permita à matéria uma independência dos preconceitos do autor e do próprio meio.
São exatamente estes preconceitos da revista que interferem na abordagem da pobreza. Está previamente estabelecida a noção da supremacia do modelo ocidental ("uma sociedade rica, moderna e democrática", os EUA são o ideal de Veja?) frente a realidade muçulmana. Realidade esta que é deturpada, primeiro com a abordagem dos números (escolha deliberada de países e indicadores com um fim determinado, de caráter n&atildatilde;o-científico) e, segundo, com os conceitos.
Prêmio aplaudido
Veja escreve: "No Ocidente, a reforma protestante do século 16 … acabaria por libertar o espírito empreendedor das amarras católicas e impulsionar o capitalismo." Em sua abordagem da pobreza, a revista tem uma visão desenvolvimentista, um discurso que afirma que os países estão em diferentes graus de desenvolvimento, e se países periféricos seguirem certas regras chegarão ao mesmo patamar dos países mais industrializados. Esta é uma visão que ignora que os países possam ter diferentes problemas, que não podem ser resolvidos mediante uma mesma fórmula.
Ao impor o modelo ocidental (separação entre Estado e religião) aos países muçulmanos, Veja esquece da realidade própria destas nações. Ahmed Wali Massoud, porta-voz da Aliança do Norte (milícia afegã que faz oposição ao Talibã) disse em entrevista à revista Carta Capital que "99% dos afegão são muçulmanos. Em qualquer governo no Afeganistão o princípio islâmico será a base para o futuro do governo" Ao ignorar a tradição cultural afegã, a revista esquece dos verdadeiros interessados na questão da pobreza: os próprios afegãos (e não o Ocidente).
A última tacada de Veja se dá em duas frentes. Relembrando a pergunta que iniciava esta matéria, a revista questiona se o Islã impede o surgimento de uma sociedade democrática. A resposta, conclusão de toda a argumentação baseada em distorções, afirma que "O fundamentalismo é um jogo árabe que aumenta a capacidade de ser muçulmano. Ele não encerra projeto que vise, pelo menos em tese, ao desenvolvimento de um povo."
A deturpação máxima da revista é perguntar referindo-se ao Islã, mas responder falando do fundamentalismo, situações diferentes que, quando equiparadas, mostram o preconceito da revista. Esta confusão é reforçada quando Veja fala da obra de V.S. Naipaul, Nobel de Literatura: "O autor não tem nada de esquerdista ou politicamente correto… Crítico acerbo das religiões, ele fez do islamismo o seu alvo maior nos últimos tempos". O título da matéria é ?Prêmio à razão?, logo Naipaul está certo na visão de Veja ao criticar o islamismo em geral, e não o fundamentalismo islâmico.
Paralelos contraditórios
Usando medidas diferentes para medir fatos paralelos, Veja escreve: "O apoio americano a Israel alimenta há décadas a fornalha onde crepita o ódio aos Estados Unidos, um sentimento que comanda escolhas irracionais, em que o inimigo do nosso inimigo é sempre nosso amigo não importam os horrores que faça".
Já falando sobre a espionagem americana, a revista comenta sobre como a CIA anda em baixa. A agência de inteligência dos EUA teria falhado ao ignorar e nada fazer para evitar os testes nucleares paquistaneses em 98, os atentados às embaixadas americanas na África e o próprio ataque terrorista do dia 11 de setembro. Mas depois escreve: "O desafio agora é fazer com que os agentes voltem a pisar em lama e a produzir resultados. Mesmo que seja à moda antiga. A moda antiga é a dos golpes de Estado, dos assassinatos e chantagens." E complementa: "Mas os tempos são outros, e, mesmo com o sinal verde para atropelar a ética, dificilmente um caso como o de Arbenz [presidente democrata da Guatemala deposto pela CIA] se repetiria na América Latina. Na Ásia Central, talvez."
Considerando a inclinação de Veja para a imposição do modelo ocidental ao Afeganistão, a possibilidade de um golpe que apóie um inimigo do inimigo sem levar em conta a vontade popular (um governo baseado no princípio islâmico) fica aberta, enquanto a oposição vista nas ruas, em manifestações pelo mundo muçulmano, são repudiadas por serem antiamericanas e apoiarem bin Laden.
Outro paralelo contraditório é entre esta mesma noção do ?inimigo do inimigo?. Veja fala nas "amizades de ocasião" que os EUA fazem. Lembram oportunamente da realidade não-democrática dos aliados que fazem fronteiras com o Afeganistão. Mas, em vez de criticar duramente esta posição americana, a revista fecha a matéria considerando a possibilidade destes países (Paquistão, Usbequistão, Turcomênia, Cazaquistão e Quirguistão) tomarem "o espaço econômico de países como México, Brasil ou Argentina". Além de ser uma suposição infundada, a revista tiro do foco de discussão o verdadeiro problema: os EUA se aliarem ocasionalmente ao inimigo do inimigo. Um fato ?esquecido? por Veja: a amizade dos EUA e da CIA com o Talibã, fornecendo armas para a milícia afegã combater os soviéticos…
Erraram e não disseram
Como a revista não tem uma seção de "Erramos", aqui vão duas observações:
** Em 26/9/01, Veja deixou de mostrar no mapa dos países com população majoritariamente muçulmana o Sudão onde, segundo o Atlas Geográfico Mundial da Folha de S. Paulo, 70% dos habitantes têm o islamismo como religião.
** Em 17/10/01, a revista informa na matéria ?Os pobres de Alá? que o Índice de Liberdade do Egito é 6,5 (1 é o mais livre, 7 é o menos livre). No site da Freedom House <www.freedomhouse.org>, este mesmo Índice é 5,5.
(*) Email: jsm_b_r@yahoo.com.br