Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sergio Bermudes

ASPAS

GRAMPOS E GAROTINHOS

"Grampos e arame", copyright No. (www.no.com.br), 16/07/01

"Já escrevi aqui, mais de uma vez, que a lei resulta, no mais das vezes, do valor atribuído a um fato. No dia, evidentemente ideal, em que se reputou nociva à sociedade a morte de um homem pelo outro, valorando-se, portanto, negativamente essa prática, editou-se uma regra jurídica repressora e punitiva do homicídio. Considerada propícia a doação de dinheiro a certas instituições ou pessoas, fez-se uma norma, isentando o devedor do imposto de renda, proporcionalmente à benemerência. Vê-se, então, que o direito é axiológico porque os seus ditames ordinariamente resultam de opções valorativas. Ele atua conjugando valores, ciente, no entanto, da impossibilidade de alcançar um equilíbrio perfeito entre os interesses em causa.

Tome-se, para ilustração, a concordata preventiva. A lei permite ao comerciante em dificuldades financeiras requerer a concordata e pagar aos seus credores os respectivos créditos, por exemplo, ao longo de dois anos. (Atenção: não estou discorrendo, aqui, sobre a concordata. Por isso, não preciso esclarecer que ela só abrange os credores quirografários, nem explicar quais sejam eles, muito menos que é possível pagar-se de modos e em tempos distintos. Há gente chata que pretende ver tudo exposto nas miudezas, num artigo de jornal. Não existisse a inelutável exigüidade do espaço, o texto perderia em fluidez se o articulista houvesse de explicar tudo tintim por tintim, perdendo-se no matagal das ressalvas, particularidades, alternativas e exceções). Saltam aos olhos os prejuízos dos credores do devedor em concordata. Mesmo assim, a lei a instituiu porque vê na empresa, como geradora de empregos e tributos, criadora e circuladora de riquezas, um valor social maior do que o interesse de um credor.

A Constituição Federal – chamada lei suprema, lei das leis, lei fundamental, lei básica, da qual já se disse que as demais leis não passam de um desdobramento, tanto assim que são nulas, quando incompatíveis com ela – elevou à categoria de direitos fundamentais a liberdade de pensamento, a intimidade, a vida privada, a imagem de cada um (art. 5o, IV e X). Por isso, no inciso XII do art. 5o, que é a carta de direitos da pessoa humana, ela faz inviolável a correspondência, cujo sigilo assegurou, inclusive e especialmente quanto às comunicações telegráficas e telefônicas (dê-se o mais amplo alcance a esses adjetivos). No tocante ao telefone, admitiu, fazendo, de novo, uma valoração, a escuta, mas autorizada por um juiz, na forma da lei disciplinadora da situação.

A transgressão da garantia assentada no inciso XII do art. 5o da Constituição, asseguradora do sigilo das comunicações torna ilegal, na espécie extrema de ilegalidade, que é a resultante da violação de norma constitucional, a prática odiosa do grampo telefônico. Cumpre, aliás, reprimir essa monstruosidade, que mantém pessoas em sobressalto, temerosas de se expressarem livremente, de se abrirem em considerações e julgamentos reservados, de comentarem fatos, projetos, ou idéias, não destinados ao público. A escuta telefônica, obtida através do grampo, a lei a repudia, exatamente porque identifica nela um elemento pernicioso, desestabilizador da vida social, causador de toda a sorte de prejuízos. A possibilidade do grampo traz em pânico as pessoas que, diante dos casos de contínuo rompimento do sigilo das comunicações, quem sabe não voltam a adestrar os obedientes e discretos pombos-correio de outros tempos?

O inciso LVI do art. 5o da Constituição torna inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. No elenco dessas provas ilegais, incluem-se, com certeza absoluta, as decorrentes da violação do sigilo, assegurado no inciso XII daquele dispositivo. Em conseqüência, obtida desse modo ilegal, a prova será sempre imprestável, não importa o seu conteúdo. Mesmo o crime hediondo, conquanto inequivocamente confessado numa conversa telefônica violada, não poderá ser punido, diante do mandamento do inciso LVI do art. 5o da Constituição, cuja eficácia é absoluta.

No plano da construção da norma jurídica, poder-se-ia sugerir uma outra conseqüência para a prova ilicitamente colhida, como, por exemplo, punir-se o autor da escuta telefônica, sem, contudo, retirar dela o conteúdo probatório, a ser devidamente examinado pelo juiz. Não foi esse, todavia, o caminho do constituinte brasileiro. No modelo criado pela Constituição, o sigilo é garantia fundamental. Atenta a essa circunstância, a carta política, além de fazer delituosa a violação dele, despojou o resultado dessa transgressão de qualquer eficácia, no processo civil, penal, ou qualquer outro e, com mais razão, no processo administrativo. Ainda aqui se descobre uma opção do legislador, no caso o constituinte, que, entre as soluções possíveis, escolheu a que entendeu mais adequada.

E outra opção do constituinte, que a história e a razão fazem merecedora de vívido e sonoro aplauso e acirrada defesa, é a liberdade de imprensa, tal como assegurada no art. 220, e seus parágrafos primeiro e segundo, da Constituição da República: ?A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição? (quanto ão!). O parágrafo primeiro desse art. 220 explicita e protege: ?Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, XIII e XIV?. Acrescenta, em voz altíssima, o parágrafo segundo: ?É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística?.

Como dirão todos os constitucionalistas e juristas sérios e descomprometidos, as normas constitucionais transcritas proíbem, visivelmente, a censura à imprensa porque, num juízo valorativo, no caso corretíssimo, elas vêem na imprensa um dos fundamentos do estado democrático de direito.

Convém assinalar que não se pode, de nenhum modo, extrair dos incisos do art. 5o da Constituição, referidos no ? 1o do art. 220, qualquer norma que pudesse acenar, sequer de longe, a possibilidade da censura prévia. O inciso IV protege a manifestação do pensamento e veda o anonimato; o V assegura o direito de resposta proporcional ao agravo e o ressarcimento do dano material, moral ou à imagem; o XII garante o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão e permite à imprensa guardar o sigilo da fonte, bem assim a todos quantos necessitarem dele para o exercício profissional.

A conjugação do art. 200 e seus ?? 1o e 2o com o inciso V do art. 5o da Constituição, que garante o direito de resposta proporcional à ofensa e dá indenização de danos, mostra que, no sistema constitucional brasileiro, não há lugar para a censura prévia.

Nem mesmo a certeza do prejuízo de uma publicação futura justificaria a proibição dela. Para proteger a liberdade de imprensa, a Constituição, num juízo de valor, consagrou o princípio absoluto da sanção posterior à publicação danosa.

O direito chama de pedido juridicamente impossível ao pedido de um benefício que ele não contempla. Será, por exemplo, juridicamente impossível o requerimento de declaração de validade de ato praticado por um menor de 16 anos simplesmente porque o direito não concebe, em tese, a possibilidade de se considerar válido o ato de menor absolutamente incapaz. Como o direito brasileiro não admite (salvo naqueles casos postos na Constituição) a censura prévia, não existe a possibilidade de um juiz impedir uma publicação a pretexto de que, efetivada, ela causará algum dano.

A inexistência da possibilidade de restrição prévia da liberdade de imprensa, no sistema da Constituição do Brasil, repele qualquer decisão judicial, liminar ou definitiva, que pretendesse impedir uma publicação jornalística. Como guarda da Constituição, o Judiciário não desertará do dever de respeitá-la, conforme o compromisso solene dos juízes, no momento da sua investidura. Ele cumprirá esse dever, reprimindo qualquer tentativa de implantação de uma censura que, aniquilando a imprensa, mergulharia o país no mais sinistro obscurantismo.

Na minha infância em Cachoeiro, eu via erguerem-se cercas nos sítios e fazendas da zona rural. Os fios de arame farpado eram presos aos mourões de madeira com pregos especiais, curvos e pontudos nas duas extremidades, chamados grampos. Vulgar ou original, é a imagem que me vem ao pensar que nem o odioso grampo telefônico poderá conter em prisão de arame farpado a liberdade da imprensa, quando a Constituição a assegura plena e incontida."

"ANJ condena proibição de divulgação de fitas que comprometem Garotinho", copyright O Globo, 15/07/01

"A Associação Nacional de Jornais (ANJ) pediu ontem, através de nota oficial, que seja restabelecido o direito da imprensa de tornar públicos os fatos que envolvem o governador Anthony Garotinho em suspeitas de suborno a um fiscal da Receita Federal. A ANJ quer que os poderes públicos compreendam a missão da imprensa de informar a sociedade.

?A decisão judicial a favor do senhor governador constitui um cerceamento à liberdade de imprensa e contraria a Constituição Federal de 1988, que prevê a inexistência em nosso país de qualquer forma de censura prévia?, diz a nota, assinada pelo vice-presidente da ANJ, Paulo Cabral.

Desde quarta-feira, O GLOBO está proibido pela Justiça de divulgar a transcrição dos diálogos ou escritos sobre as fitas com conversas gravadas que mostram o suposto envolvimento de Garotinho com o caso de corrupção de um fiscal da Receita Federal. A decisão se estende a todos os órgãos de imprensa de grande circulação. Anteontem, o juiz da 21 Vara Cível, Sérgio Ricardo Arruda Fernandes, manteve a decisão de vetar a reprodução das conversas de Garotinho com seus auxiliares.

Na nota, a ANJ ainda afirma que o Código de Ética da instituição determina, em seu artigo 3, que os associados devem manter o compromisso ?em apurar e publicar a verdade dos fatos de interesse público, não admitindo que sobre eles prevaleçam quaisquer interesses?.

A ANJ cita também outro artigo da Código de Ética, o 5, que prevê o preceito de assegurar o acesso dos leitores às diferentes versões dos fatos e às diversas tendências de opinião da sociedade. Esse artigo é cumprido pelos 123 jornais associados à instituição."

"A política na polícia", copyright Jornal do Brasil, 13/07/01

"Desde o estouro da roubalheira do juiz Nicolau dos Santos Neto – o Lalau que desviou R$ 169 milhões, mais de 72% das verbas liberadas para as obras do inacabado Fórum Trabalhista do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, e que provocou a cassação do mandato do ex-senador Luiz Estevão, flor emergente da alta sociedade de Brasília e sócio da gatunagem, como um dos donos da Construtora OK -, o noticiário político foi se misturando com a cobertura do setor de polícia, até ser virtualmente engolido na brilhante temporada de escândalos, de variedade e profusão jamais vistas.

No ato inaugural, a participação de um senador, o primeiro e único cassado pelo voto do plenário do Senado, justificava a miscelânea das matérias da responsabilidade de editorias distintas e especializadas.

Do Lalau e do Luiz Estevão saltamos, no mesmo impulso, para a ruidosa crise da violação do painel eletrônico do Senado, com repercussão ampliada pelo envolvimento do ex-presidente do Senado, o ex-senador Antônio Carlos Magalhães, com extensa biografia política de meio século de intensa participação na atividade pública, e o ex-senador de Brasília, José Roberto Arruda, que era o líder do governo na Casa.

Um caso mal resolvido e devidamente enterrado em cova funda. Nunca mais se ouviu um pio sobre as suspeitas de outras quebras do sigilo de voto no milionário sistema eletrônico, com mais furos que peneira velha.

De lá para cá, a moda pegou, o córrego virou rio e engrossou com a água turva dos afluentes, fazendo inveja ao Amazonas. Nas últimas semanas, jornais, revistas e noticiário de televisão escancaram páginas e blocos tradicionalmente dedicados à política a extensas matérias sobre o festival de escândalos que pipocam em toda parte, com espantosa vitalidade, como praga, erva daninha que se espalha pelo país e se infiltra por frinchas da casa bichada.

Ora, na rotina do cotidiano, no ramerrão manso da normalidade, compreende-se que a cobertura de incidentes policiais típicos, envolvendo parlamentares, governadores, ministros, seja deslocada para a editoria política, ganhando o relevo da excepcionalidade.

Mas estamos diante de uma situação nova, inédita, até aqui impensável. Basta folhear a coleção de jornais e revistas das últimas semanas ou rever os teipes dos noticiários da TV. Política e polícia fundem-se em pasta espessa. Nesta semana, por exemplo, sem descer a pormenores, o governador Anthony Garotinho, retornou ao noticiário policial, depois de espichado período de trégua, como personagem central de patifaria de grosso calibre, que envolve sua mulher, Rosinha Matheus, auxiliares, assessores. Um caso antigo, que ressuscita com vigor de maratonista, exumado das suas antigas atividades de comunicador com programas, em 1995, na Rede Bandeirantes e na Rádio Tupi do modelo clássico do assistencialismo piegas e do desbragado populismo da distribuição de prêmios. Gravações de conversas telefônicas, depoimentos, documentos engordam as denúncias de fraudes cabeludas, desde a falsificação do balanço da empresa Garotinho Editora Gráfica ao suborno com pagamento de propinas.

Pela farta amostra, é caso para render semanas, talvez meses, nas morosas investigações policiais, com potencial para credenciar o governador Garotinho a disputar com o presidente do Senado, senador Jader Barbalho, o ambicionado troféu de personagem do ano.

Mas o governador do Espirito do Santo, José Ignácio Ferreira, coça-se com a curiosidade do Banco Central e do Ministério Público com o suspeito empréstimo levantado no banco oficial do estado para saldar dívidas da campanha eleitoral.

Não é preciso mais. A circunstância do envolvimento de ilustres e notórias figuras da brilhante safra de políticos militantes em típicas maroteiras, que são apuradas pela polícia, valoriza o noticiário e justifica a promoção às manchetes e à primeira página.

Mas não alteram a sua classificação de casos de polícia. E que, a meu ver, como tais devem ser tratados. Falando francamente, o noticiário político anda de uma pobreza e de uma monotonia de espantar o leitor. Não está acontecendo nada na paralisia do governo e no miúdo charivari das oposições.

Pois o momento desafia a criatividade dos editores a ousar a arrumação da casa, recolocando os móveis nos seus antigos lugares. Vale o teste de convocar os repórteres de polícia, os sobreviventes de uma especialidade em extinção, mesclá-los com a nova geração de jornalistas que cobrem o que acontece na cidade e entregar a essa turma muito mais habilitada a responsabilidade de acompanhar, apurar e redigir o setor híbrido.

Mas para valer. Com o estilo, os cacoetes, o jogo de cintura que distingue o método de trabalho e o texto dos grandes repórteres policiais que competiam com os tiras na investigação de crimes famosos. Recuperando o jargão delicioso da qualificação de vítimas e criminosos: Anthony Garotinho, brasileiro, branco, casado, residente no Palácio Guanabara. Ou, Jader Barbalho, natural de Belém, capital do Pará, senador e presidente do Senado, de cabelos da cor de acaju, viciado em bombons de cupuaçu, morador em Brasília, em próprio federal etc.

Cronistas e repórteres políticos estão merecendo umas férias para aliviar a cuca da sensaboria de escrever a mesma coisa todos os dias sobre os mesmíssimos assuntos sem a mínima importância. Um estágio na reportagem geral, para levantar assuntos em matérias especiais sobre o Brasil faria um bem enorme às cucas, alargando horizontes com a descoberta de que há muito mais coisas acontecendo fora do eixo Brasília-Rio-São Paulo."

    
    
                     

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