OS SERTÕES, 100 ANOS
"O sertão da dialética negativa", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Pelo menos desde Hegel (1770-1831), o pensamento filosófico ocidental se habituou a uma forma otimista de lidar com a contradição. Sim, a oposição de tese e antítese era a lei geral do espírito e da história, mas a tensão mesma dos pólos antagônicos impulsionava as idéias e as coisas em direção a uma síntese superior, capaz de preservar e transcender os opostos. Foi preciso esperar Adorno (1903-1969) para que surgisse o conceito de uma dialética negativa, capaz de manter a contradi&ccediccedil;ão em toda a sua virulência, uma dialética sem síntese, em que os dois pólos permanecessem inconciliáveis.
Aplicada à crítica da cultura, essa dialética proclama que a modernidade é ao mesmo tempo repressiva e libertadora. Ela é repressiva porque, contendo em si elementos míticos, não é suficientemente racional e, a pretexto de lutar contra o arcaísmo, produz frequentemente efeitos desumanos. E é libertadora porque, sem ela, o homem não teria nenhum controle sobre a natureza e ficaria sujeito à superstição e à tutela da autoridade ilegítima. Apropriando-se da antítese entre civilização e barbárie, usada pelo argentino Domingo Sarmiento [1811-88; presidente da Argentina entre 1868 e 74, célebre pelo livro ?Facundo? (1845), sobre o caudilhismo] e que teria tão grande curso no debate de idéias no Brasil e na Europa, Euclides da Cunha se aproxima dessa dialética, em suas duas vertentes: a modernidade enquanto barbárie e a modernidade como força civilizadora.
As forças que representavam a modernidade, em Canudos, eram elas próprias arcaicas. O delírio de Canudos tinha uma contrapartida exata na capital. Em Canudos, os jagunços baleavam os intrusos com seus clavinotes; no Rio, os florianistas linchavam transeuntes e empastelavam jornais. Para os conselheiristas, a república era o reino do anticristo; para os citadinos, Canudos era o centro de uma conspiração monarquista. Para os cariocas, Canudos era a Vendéia; para os jagunços, o Rio era a Babilônia. Os conselheiristas tocavam sinos e cantavam hinos religiosos. As tropas do governo saudavam o aniversário da queda da Bastilha metralhando os jagunços com salvas de 21 tiros e cantando o Hino Nacional. Os dois campos se interpenetravam. Os soldados e os combatentes do arraial eram idênticos na origem regional, na fala, muitas vezes no vestuário. Sua religiosidade era a mesma. Criados ouvindo lendas sobre os milagres do Conselheiro, os soldados do Norte tinham as mesmas crendices dos jagunços. Havia o mesmo arcaísmo entre os oficiais. Os que tombavam à entrada de Canudos tinham no peito esquerdo uma pequena medalha de bronze com a efígie de Floriano e, ao morrer, saudavam sua memória com o mesmo fervor que os jagunços reservavam ao Bom Jesus.
Figuras simétricas A crueldade era idêntica nos dois lados. Para Euclides, o Conselheiro e o coronel Moreira César eram figuras simétricas. O Conselheiro era um doente mental; o coronel, um epiléptico. Duas patologias, reforçadas por duas sociedades retrógradas. O uniforme de Moreira César era o avesso do camisolão azul do Conselheiro.
Ao mesmo tempo, Euclides não vê saída fora da modernidade. O progresso técnico é um bem. E a civilização é um processo inexorável. O mundo moderno pode ser um Moloch, sedento de sangue, um ?Juggernaut?, carro divino cujas rodas esmagam pessoas e tradições, mas representa um estágio superior e necessário na evolução da humanidade. É o que ele deixa claro desde a ?Nota Preliminar?: a civilização avançará implacavelmente, arrasando raças e culturas arcaicas, e Canudos foi, no Brasil, a primeira escaramuça dessa guerra, da qual os soldados do governo foram ?mercenários inconscientes?. Só a adesão plena à modernidade poderá impedir a extinção do Brasil como entidade nacional, do mesmo modo que foram ou estão sendo extintas as ?sub-raças sertanejas?.
A dupla vertente dessa dialética pode ser ilustrada por duas frases de Euclides. A primeira denuncia a modernidade enquanto barbárie: Canudos só viu ?o brilho da civilização através do clarão das descargas?. A segunda afirma que a modernidade é inevitável: ?Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos?. A dialética negativa pode exercer um papel importante. Ela impede as reconciliações prematuras e permite fazer justiça aos dois pólos de um conflito. No caso de Euclides, ela evitou tanto a exaltação da modernidade quanto sua contestação obscurantista.
Mas, dito isto, a dialética negativa é um ?Holzweg?, o caminho dos caminhos que não levam a lugar nenhum. Ela dá ao pensamento uma dignidade trágica, mas paralisa a ação. Foi por isso que Habermas, o último grande herdeiro do pensamento de Adorno, não hesitou em substituir a retórica da ?grande recusa? pelo que ele chamou de ?reformismo radical?.
Euclides também procurou saídas para os impasses da dialética negativa. Num certo momento, depositou esperanças no sertanejo, ?a rocha viva de nossa nacionalidade?. Os sertanejos, pelo fato de terem ficado isolados do mundo exterior, tiveram a sorte de evoluir segundos seus próprios ritmos, ao contrário dos mestiços litorâneos, expostos a influências européias que eles não podiam assimilar. Livre dessas influências, o sertanejo ascenderia progressivamente ao estágio da civilização, transformando-se no sustentáculo de uma modernidade real.
Ilusões perdidas Mas na ?Nota Preliminar? Euclides parece ter perdido essas ilusões. O jagunço, o tabaréu e o caipira ?destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça?. Mas agora é tarde demais. A civilização já os condenou. A ?Tróia de taipa? teve o mesmo destino da Tróia homérica, e só resta a Euclides, como novo Virgílio, chorar sobre suas ruínas calcinadas, ?ubi Troia olim fuit?, onde outrora foi Tróia. Em consequência, a última palavra fica mesmo com a dialética negativa: a modernidade é ao mesmo tempo uma bênção e uma catástrofe, sem mediação entre os dois pólos.
Mas, se não nos satisfizermos com essa conclusão, talvez encontremos alternativas menos melancólicas no próprio pensamento de Euclides, devidamente depurado das categorias raciais que o deformam.
Substituindo a grade biológica pela sociológica, veríamos na guerra de Canudos a metáfora de uma modernização de fachada, resultante da aliança entre o ?feudalismo tacanho? do interior e as frágeis elites burguesas (constituídas, em parte, pelos famosos ?mestiços neurastênicos do litoral?).
Com isso, desvendamos o fundamento da interpenetração do velho e do novo que Euclides descobrira nas forças pretensamente modernizadoras. A mescla vinha do fato de que a burguesia republicana não era na realidade uma força progressista, porque estava comprometida com a grande propriedade e com a antiga classe escravocrata, revelando-se incapaz de cumprir sua missão histórica de realizar a reforma agrária. A ?modernização? pretendida por essa burguesia era de fato a perpetuação do latifúndio, o novo a serviço do velho. A tarefa só pode ser executada por uma classe ou aliança de classes capaz de levar em frente o projeto da modernidade, sem excessivos compromissos com as velhas elites de poder e também sem adotar uma política de terra arrasada com relação às raízes culturais do país.
Superar contradições Qual seria essa classe? Para Euclides, era a ?raça? sertaneja ou, numa linguagem que hoje consideraríamos menos extravagante, a ?classe? camponesa. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) talvez concorde com Euclides. Mas os últimos acontecimentos políticos no Brasil parecem favorecer uma interpretação marxista curiosamente ortodoxa, segundo a qual o proletariado industrial seria o verdadeiro motor da renovação.
Em qualquer hipótese, é o fim da dialética negativa no Brasil. Hegel é mais atual que Adorno. No país novo que está começando, não se trata de idealizar as contradições, mas de superá-las, em busca das sínteses possíveis. E é o fim, em especial, da aplicação da dialética negativa à crítica da modernidade. Não se trata de querer e não querer a modernidade, mas de implementar sem ambiguidade o projeto moderno, constituído, em sua essência, pelos grandes ideais humanistas do Iluminismo e que, portanto, é visceralmente incompatível com a barbárie que arrasou Canudos.
(Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, ?As Razões do Iluminismo? e ?Mal-Estar na Modernidade? (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seção ?Brasil 503 d.C.?.)"
"Euclides Conselheiro da Cunha", copyright Folha de S. Paulo, 1/12/02
"Mais importante do que apontar estes e outros erros que Euclides pode ter cometido na avaliação da comunidade e na reconstrução da guerra, é perceber como o escritor projetou sobre Antônio Conselheiro e Canudos muitas de suas obsessões, como o temor da sexualidade, da irracionalidade, da loucura, do caos e da anarquia. Viu Conselheiro e Canudos como desvios históricos capazes de ameaçar a linha reta que ele, Euclides, se impusera desde a juventude.
Recorria, em suas cartas aos amigos e ao pai, a esta imagem da linha reta para expressar sua fidelidade aos princípios éticos, ancorada na crença no progresso linear e inelutável da humanidade.
Surge, nas páginas de ?Os Sertões?, um Antônio Conselheiro ameaçador, ermitão sombrio, que escapou do hospício para entrar na história. Enfocou o Conselheiro como personagem trágico, guiado por forças obscuras e ancestrais e por maldições hereditárias, que o levaram à queda na loucura e ao conflito com a República. Canudos surgia como uma povoação estranha, labirinto desesperador de becos estreitíssimos, com casas que se acumulavam em ?absoluta desordem?, como se tudo aquilo tivesse sido construído febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos.
Retorno mágico Euclides reinterpretou a guerra a partir de fontes orais, como os poemas populares e as profecias religiosas, encontrados em papéis e cadernos nas ruínas da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem de autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em ?Os Sertões?, o retrato do líder da comunidade. Propôs uma outra visão de Canudos como movimento messiânico e sebastianista, em que haveria a crença no retorno mágico do rei português d. Sebastião, para derrotar as forças da República e restaurar a monarquia.
Segundo Euclides, o isolamento histórico da sociedade sertaneja permitiu a preservação dos mitos sebastianistas, transmitidos com a colonização portuguesa. O movimento de Canudos teria reatualizado o mito de d. Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, na tentativa de expandir os domínios portugueses na África. Com a morte de d. Sebastião, o trono português ficou vago e Portugal foi anexado a Castela, só tendo recuperado a autonomia política em 1640.
Surgiu o mito do retorno glorioso do monarca desaparecido, que se manteve em Portugal até o século 19. Este mito se manifestou, no Brasil, em movimentos messiânicos ou milenaristas, como na Cidade do Paraíso Terrestre, de 1817 a 1820, e em Pedra Bonita, de 1836 a 1838, ambos em Pernambuco, ou no Contestado, região entre o Paraná e Santa Catarina, de 1912 a 1916. A crença esteve presente na vila de Canudos, de 1893 a 1897.
Construiu, com base nas profecias e nos poemas recolhidos em Canudos, um modelo interpretativo para dar conta das relações e conflitos entre a sua própria cultura, letrada e urbana, e a cultura oral sertaneja, marcada por mitos messiânicos e pela tradição católica.
O conflito armado trouxe uma tensão máxima entre a sua cultura e a cultura do oponente.
Tentou dar voz ao outro, objeto de seu discurso e inimigo de suas concepções políticas. Procurou incorporar ao seu discurso textos orais, produzidos segundo uma lógica mítica e religiosa que lhe era estranha. Mas tais fontes orais acabaram por servir de legitimação a uma engenhosa interpretação histórico-cultural, em que opôs tipos humanos, tempos históricos e lugares geográficos: o sertanejo ao mulato, a monarquia à República, o sertão ao litoral. Euclides se baseou nos poemas e profecias que recolheu em Canudos e transcreveu em uma caderneta de bolso. Os poemas fazem parte de dois abc?s, narrativas da guerra, estruturadas como sequência de estrofes iniciadas com as letras do alfabeto, que servem como recurso de memorização. Copiou ainda duas profecias apocalípticas, que julgou serem do próprio Conselheiro.
Tais poemas e profecias revelariam, para Euclides, a visão messiânica comum aos habitantes de Canudos, em que a República aparece como obra do anticristo e o indício do fim dos tempos, quando d. Sebastião ressurgiria, com seus exércitos, para restabelecer a monarquia. As referências a d. Sebastião aparecem em uma das profecias e em duas quadras de um dos poemas transcritos na caderneta. Euclides citou parte destes textos em ?Os Sertões?.
Comentou, de forma negativa, estes manuscritos, que desqualificou como ?pobres papéis?, com ?ortografia bárbara? e ?escrita irregular e feia?, que mostrariam o ?pensamento torturado? dos sertanejos: ?Valiam tudo porque nada valiam?. Conselheiro pregava com uma ?oratória bárbara e arrepiadora?, ?misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas…?.
A ?lei do Cão? Citou, em ?Os Sertões?, sete quadras de um dos abc?s, que colocou em ordem cronológica e histórica, de forma a sintetizar a concepção mítica e religiosa dos seguidores do Conselheiro, que acreditariam no retorno de d. Sebastião. O primeiro abc, composto de 28 quadras e um terceto, contém uma narrativa popular dos primeiros anos da república, que introduziu o casamento civil, perseguiu Antônio Conselheiro e trouxe guerras civis e especulação financeira. Duas dessas quadras se referem à vinda de d. Sebastião, para extinguir o casamento civil e punir aqueles que se encontrariam sob a República:
?Sebastião já chegou/
comta muito rijimento/
acabando com o Civil/
e fazendo os casamento//
Visita vem fazer
Rei D. Sebastião
Coitadinho d?aquele pobre
que estiver nalei de Cão?.
A ?lei do Cão?, contrária à lei de Deus, é a eleição dos governantes, introduzida pela República, vista pelos sertanejos como ?obra do demônio?:
?Muito disgraçados eles/
de fazerem alei-ção/
abatendo alei de Deus/
suspendendo alei do Cão?.
A República é tida como o reino do anticristo, personagem do Apocalipse que chegará antes do fim do mundo, para semear a impiedade e a discórdia até ser vencido pelas forças divinas. Caberia ao Conselheiro a tarefa de derrotar o anticristo republicano:
Nassio o Antecristo/
p.a o mundo governar/
ahi estar o concelheiro/
p.a dele nos livrar?.
O segundo conjunto de versos é o ?abc das incredulidade?, com 26 estrofes, que Euclides copiou na caderneta, mas não chegou a utilizar em ?Os Sertões?. Este abc foi escrito em comemoração da vitória de Canudos contra a terceira expedição. Seu comandante, o coronel Moreira César, vindo a Canudos ?para dar carne aos urubu?, recebe a alcunha de ?corta-cabeças? ou ?corta-pescoço?, por seus atos de violência na repressão à Revolução Federalista, em Santa Catarina. Morto em Canudos, seu corpo foi retalhado e queimado pelos jagunços após ficar exposto por alguns dias.
Euclides mencionou, em ?Os Sertões?, duas profecias apocalípticas que atribuiu, de forma errônea, a Antônio Conselheiro: a profecia das nações e a profecia de Jerusalém. A profecia das nações se refere ao fim do mundo, em que irá aparecer um anjo, para fazer pregações, fundar cidades e construir igrejas e capelas. É provável que os sertanejos identificassem o Conselheiro a esse anjo. São previstas desgraças, como a construção de estradas de ferro, a grande fome, a prisão de fiéis e guerras civis, que antecederão o surgimento de d. Sebastião e de Jesus, para inaugurar uma nova era: ?Em verdade vos digo, quando as Nações brigarem com as Nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prúcia com a Prúcia; das ondas do mar dom Sebastião sair com todo seu exército, em guerra, e restituiu em guerra?.
Visão escatológica A profecia de Jerusalém é datada de 1890, tendo Belo Monte, ou Canudos, como local. Essas referências são problemáticas, pois Conselheiro só se fixou em Canudos em 1893, três anos depois da data atribuída ao texto. Não há referências a d. Sebastião nessa profecia, que contém uma cronologia política, que vai da Independência do Brasil até o fim do mundo, anunciado para 1901, passando pela abolição da escravatura e a Proclamação da República. São previstos o apagar de todas as luzes, seguido de chuvas de estrelas e queda de meteoros, até que apareça o pastor capaz de guiar o rebanho. Guerras são profetizadas para o ano de 1896, que coincide com o início do conflito de Canudos: ?Em 1896 há de haver guerra Nação com a mesma Nação, o sangue há de correr na terra?.
Ambas as profecias contêm uma visão escatológica, que anuncia o fim do mundo e a criação do reino dos céus na Terra, em que serão eliminadas as diferenças sociais -?não se conhecerá rico nem pobre?- e erradicados os conflitos políticos pela unificação dos homens sob a autoridade divina: ?um só pastor e um só rebanho?. As regiões climáticas também serão invertidas e o sertão se tornará terra de promissão, com fartura de carne e peixe, ao virar ?praia?, expressão utilizada para designar as zonas úmidas entre o litoral e o semi-árido: ?Em 1894 há de vir rebanhos de mil correndo do centro da Praia para o certão então o certão virará Praia e a Praia virará certão?.
Os poemas populares, junto com as profecias, encenam a história de forma cíclica e redentora, em oposição à representação linear-evolutiva adotada por republicanos. Trata-se do conflito entre periodizações distintas da história. As fontes orais indicam a existência de algum tipo de crença sebastianista em Canudos, ainda que não se possa afirmar, com precisão, sobre o grau de adesão dos habitantes da vila a tais concepções.
Um pouco de poesia e mistério Euclides reconheceu, nas reportagens escritas para ?O Estado de S.Paulo?, que havia subestimado a resistência dos sertanejos e sua capacidade de sustentação da luta. Observou, em artigo de 16 de agosto de 1897, que o combate apresentava uma ?feição primitiva, incompreensível, misteriosa?. Surpreendia-se que os jagunços, já em número reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco à cidade, em vez de fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação.
Euclides procurou esclarecer o mistério, ao defender, em ?Os Sertões?, a existência de crenças sebastianistas em Canudos, que permitiriam explicar alguns dos aspectos subterrâneos da guerra, como o apelo da mensagem do Conselheiro e a resistência heróica dos combatentes. O catolicismo devocional presente nos sermões do Conselheiro revela, porém, que o sebastianismo pode ter sido menos difundido do que Euclides supôs.
Machado de Assis já havia enfocado tal feição de mistério, ao escrever sobre Canudos na ?Gazeta de Notícias?. Em crônica de 22 de julho de 1894, comparava, com bastante humor, os seguidores do Conselheiro aos piratas das canções românticas de Victor Hugo. Deixava-se encantar pelo toque de poesia e mistério que envolvia o líder religioso, além de criticar a imprecisão das notícias sobre o movimento.
Machado protestou, em 31 de janeiro de 1897, já em plena guerra, contra a perseguição que se fazia ao Conselheiro e à sua gente. Comentava que pouco se sabia sobre sua seita e doutrina, capazes de mobilizar milhares de seguidores: ?De Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos?. Como as mortes nos combates não afastaram os fiéis de seu líder, perguntava-se: ?Que vínculo é esse […] que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro??. Devido à falta de informações sobre o grupo, concluía que só restava a imaginação para descobrir a doutrina da seita e a poesia para floreá-la.
(Roberto Ventura foi professor de teoria literária e literatura comparada na USP e um dos grandes especialistas na obra de Euclides da Cunha. Escreveu, entre outros ?Estilo Tropical? (Companhia das Letras), ?Folha Explica ?Casa-Grande & Senzala? e ?Folha Explica ?Os Sertões? (ambos pelo Publifolha).)"