Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Servilismo e ação entre amigos

ENTREVISTAS NA TV

Nelson Hoineff (*)

De todas as doenças da imprensa, o servilismo é a pior. É ele que leva à corrupção, à perda de credibilidade do jornalismo como um todo, e faz com que o que se espera do jornalista seja tantas vezes confundido com o que se exige do assessor de imprensa de seu entrevistado.

O servilismo é primo-irmão da promiscuidade, que cresce à medida que mais intensas forem as relações de amizade entre o jornalista e as fontes ? e o primeiro perca o controle sobre os limites éticos que o seu trabalho impõe a essas relações. Essa é uma equação a que todo estudante de comunicação já foi apresentado muitas vezes.

Na televisão, a vaidade é capaz de levar o comportamento servil ao paroxismo. Por uma dramática coincidência, a desastrosa situação financeira da maior parte das emissoras brasileiras encorajou a proliferação de programas de "entrevistas", que para essas emissoras saem a custo quase zero: os entrevistados vêm de graça, a produção é pequena, cenografia e arte praticamente inexistem. Não há como encontrar custo/hora mais benéfico para as emissoras.

A decorrência disso é que o joio passou a conviver com o trigo. Aos bons entrevistadores da televisão brasileira vieram se juntar dezenas de artistas do jornalismo que fazem de seus programas verdadeiros palanques para os convidados, quando o mínimo que se poderia esperar é que os programas de entrevistas fossem um fórum para o debate das questões que esses convidados protagonizam.

Essa não é, evidentemente, uma qualidade inerente aos programas do gênero; mas a forma de valorização do entrevistador tende a mudar bastante de acordo com o local onde está o seu estúdio. No início deste mês, por exemplo, Larry King renovou seu contrato com a CNN pela bagatela de 6 milhões de dólares. A BBC não deve cuidar menos bem de Tim Sebastian.

Tim ? bem menos conhecido do que Larry, exceto, talvez, na própria Inglaterra ? é um caso típico de entrevistador que procura o confronto com seu entrevistado, em vez de se transformar em seu porta-voz. Isto seria fácil se o entrevistador buscasse apenas o confronto pelo confronto, mas o caso muda de figura quando existe por trás da conversa entre os dois não só uma cuidadosa pesquisa, mas um autêntico senso de responsabilidade e, sobretudo, a percepção do jornalista para ouvir o que o convidado está dizendo e saber a hora e maneira de, se for o caso, encostá-lo na parede.

O programa de Tim Sebastian, Hard Talk, segue a linha do antigo Face to Face, no qual John Freeman (antes editor do The New Statesment e que depois se tornaria embaixador da Grã-Bretanha nos EUA) provocava seus convidados, que incluíam praticamente todas as personalidades da moda. A provocação era natural, mas pareceria particularmente agressiva hoje, pelos padrões a que o público de televisão, pelo menos no Brasil, está acostumado.

Mudando de conversa

Freeman e Sebastian acreditam que ao entrevistador cabe encontrar as contradições, e não satisfazer os caprichos, de seus convidados. Não constituem unanimidade, evidentemente. Robert Kirby, por exemplo, acha que programas de entrevistas são uma variação dos reality shows e que "ambos são, por natureza, exercícios parasíticos".

Apesar do que acha o colunista do The Guardian, programas como o de Tim Sebastian mostram a possibilidade que o jornalista de televisão tem para desmascarar de frente, olho no olho, um político, um artista, uma personalidade que se julgue acima do bem e do mal.

Tende-se a achar, no Brasil, que nenhum convidado importante iria a um programa assim.. Mas isso só é verdade até o momento que a recusa em aparecer confunda-se com uma confissão de culpa.

É possível construir tal situação? É aí, logicamente, que mora o problema. Longe do país por algumas semanas, acompanho o caso da coletiva de Washington Olivetto e fico imaginando o bem que faria à sociedade se todo o evento pudesse ser discutido, frente a frente, sem constrangimentos ou intimidações, entre o publicitário e os jornalistas.

É emblemático, neste caso, que o simples fato de se ter noticiado um seqüestro que de fato aconteceu tenha resultado em quebras de contrato entre veículos e agências, demissões de jornalistas, e daí por diante. Se tudo isso acontece pela simples divulgação de uma notícia verdadeira, então é porque as relações entre as empresas de comunicação e os anunciantes não estão saudáveis no país. E se essas relações não estão saudáveis, nada melhor do que tentar higienizá-las ? o que virá em benefício de todos.

As relações existentes entre empresas de comunicação, o jornalismo que nelas se pratica e os anunciantes conotam uma situação de interdependência que compromete cada uma das partes individualmente e dificulta o exercício de um jornalismo que sirva unicamente à sociedade. O que faz falta no Brasil não são entrevistadores da qualidade de Tim Sebastian ou Larry King, porque eles realmente existem ao nosso redor. O que está fazendo falta de verdade é a existência de condições para que conversas assim ? e não o picadeiro do servilismo ? possam ser hegemônicas na televisão brasileira.

(*) Jornalista e diretor de TV