JORNADAS LITERÁRIAS
Deonísio da Silva (*)
Parodiando Augusto dos Anjos, a mão que apedreja é a mesma que afaga. Que valor terão nossas críticas adversas se não soubermos reconhecer o que de bom há? Hoje este dublê de escritor e professor universitário elogia a imprensa, dá-lhe as boas-vindas à maior festa do livro, autores e leitores. A imprensa cumpriu seu papel e informou ao distinto público o que se passava sob as lonas dos vários circos armados para receber mais de 10 mil inscritos ao evento que reuniu 115 intelectuais do Brasil e do exterior em Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, acontecimento de que se ocupou até a agência Reuters.
Desta vez certas omissões notórias da imprensa nacional foram corrigidas e, entre os grandes jornais, apenas a Folha de S.Paulo silenciou o grandioso espetáculo, pois foi de espetáculo que se tratou. E muito bem organizado desde a primeira edição. Certa feita o escritor Antônio Callado propôs o nome da coordenadora para ministro do Planejamento. Redes de televisão, revistas como Época e Veja, jornais como Zero Hora, O Estado de S.Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e outros jornais e revistas se ocuparam da festa das letras que se realizava em Passo Fundo pela nona edição bienal desde que em 1981, por idéia do escritor Josué Guimarães, foi realizada pela primeira vez aquela que seria em pouco tempo a maior programação do mundo para a literatura brasileira.
É verdade que mais uma vez os ministros de dom Fernando II, imitando os colegas do primeiro governo, se negaram a abrir ou fechar o evento. E o governador Olívio Dutra brilhou na abertura, acompanhado de um séquito de deputados, secretários de Estado e outras personalidades. O ministro da Cultura, Francisco Weffort, ainda não soube entender o que se passa em Passo Fundo. E se não aprendeu em 20 anos, é certo que pouco tempo lhe sobra para se recuperar, vez que está ministro da Cultura há longos seis anos! O ministro da Educação, que é gaúcho, pelo menos enviou uma fita, que foi rodada com sua fala, proferida especialmente para a ocasião. Falha técnica do ministério. Paulo Renato precisa melhorar seus assessores. Será que era impossível assim enviar uma fita de vídeo para pelo menos exibir o ectoplasma do ministro na telona? Ó dor!
Referência nacional
A festa deste ano tinha alguns temperos muito saborosos. A professora Tânia Rösing, que lidera há duas décadas a equipe realizadora, fora indicada para o prestigioso Prêmio Multicultural Estadão e freqüentara a grande imprensa por meses seguidos. Na Bienal do Livro, realizada no Rio de Janeiro, o maior prêmio para um romance das literaturas de língua portuguesa fora anunciado e acorreram nomes do Brasil e do exterior. Houve 190 inscritos. Um dos 11 finalistas, Pauline Chiziane, é de Moçambique.
O mercado editorial para as letras nacionais revelou indicadores complexos. O estado que mais edita romance nacional é o Rio de Janeiro, que teve 34,66% dos romancistas inscritos. Em segundo lugar veio São Paulo, com 21,10%. E em terceiro, o estado anfitrião, o Rio Grande do Sul, com 19,50% dos inscritos.
Lidos todos os romances, a comissão julgadora deu uma de Felipe Scolari e convocou uma seleção brasileira com 11 finalistas, dando um norte para concorrentes e público. Ali estavam o que de melhor nossas letras tinham produzido nos últimos dois anos. Os nomes por si só já eram referências: Márcio Souza, Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Salim Miguel e Antônio Torres, entre outros, não precisam demonstrar a mais ninguém que têm o que dizer e escrever, e sabem como fazê-lo. São autores de reconhecidas obras literárias, já premiadas em outras oportunidades e com lugares assegurados em nosso cânone literário.
Ao final, o prêmio de 100 mil reais foi atribuído aos romances Nur na Escuridão, do catarinense Salim Miguel, e Meu Querido Canibal, do baiano Antônio Torres.
Passo Fundo mostra ao Brasil e ao mundo que é difícil, mas não impossível, um pequeno município tornar-se referência nacional para projeto literário. Quando as Jornadas começaram, em 1981, ali não tinha nenhuma livraria. Hoje a cidade tem 10. Proporcionalmente à população, tem tantas livrarias quanto Paris.
Todos iguais
Dia 31 a festa terminou. O prefeito Osvaldo Gomes garantiu a próxima para 2003. Milhões de pessoas saudaram a iniciativa. Ao vivo, diante dele, mais de quatro mil aplaudiram. Ao longe, milhões de outros, vendo TV, ouvindo rádio ou lendo jornais e revistas, fizeram o mesmo. O show vai continuar. E os leitores se multiplicam na Galáxia Gutenberg. O inventor da prensa, cuja réplica esteve exposta no museu da cidade, foi homenageado no tema geral: "2001 – uma jornada na Galáxia de Gutenberg: da prensa ao e-book".
Enquanto Sílvio Santos era tratado com deferência especial pelo governador Geraldo Alckmin ? que, por exigência do seqüestrador, compareceu à mansão do empresário ?, em Passo Fundo as coisas eram tratadas diferentemente. Cerca de 10 mil pessoas sabiam por alto dos terríveis acontecimentos em São Paulo. O tema não ocupava suas mentes. E, claro, muito menos seus corações. As perguntas dirigidas a palestrantes como Fernando Morais, Frei Betto, Ziraldo e Antônio Skármeta tinham outros interesses. É verdade que Ziraldo disparou à queima-roupa ao colega de mesa: "Por que você vai fazer a biografia de ACM? Não tinha mais nada interessante para fazer? Para que escrever sobre um cara desses?" Gesto raro num mineiro contido que um dia desenhou o personagem Jeremias para a Loteria Federal, em pleno governo ditatorial que vetava charges de seus colegas cartunistas em vários jornais e revistas. Mas Fernando Morais, elegante e escolado, recusou a polêmica. Ambos mineiros, os dois sabem que em Minas todos nascem doidos e quando revelam suas loucuras, o povo mineiro resume assim o desvario: "Fulano se manifestou". Palavras do dulcíssimo Frei Betto, mineiro também, portanto insuspeito.
Dois municípios brasileiros foram palco de eventos indispensáveis ao registro e à consideração da imprensa. São Paulo mostrou de forma cruel, evidente, que nem todos são iguais perante as letras da Lei. Que desastradas as palavras do secretário de Segurança de São Paulo: "Sílvio Santos não é uma pessoa comum". É verdade, mas o governo é eleito para atender igualmente a comuns e incomuns. E todos são iguais perante a Lei. Ou não?
Passo Fundo celebrou a democratização das letras a partir de Gutenberg, fez com que grandes painelistas comentassem o percurso do livro desde o século 15, com a invenção que mudou o mundo em Mainz, na Alemanha, até chegar ao e-book, criação tecnológica dos EUA. A imprensa se ocupou das duas coisas.
Este Observatório registra, pelo batucar deste escriba no teclado de seu computador, que em Passo Fundo todos são iguais perante a Lei, porque todos são iguais perante o livros e autores. É claro que se Fernando Dutra Pinto tivesse freqüentado outros ambientes culturais onde ele tentou ingresso e não conseguiu ? foi reprovado em outra excrescência nacional, o vestibular ? Sílvio Santos e todos os outros brasileiros estariam mais seguros.
(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP; escreve regularmente nas revistas Época e Caras, e em <www.eptv.com.br>. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras