Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sistemas de responsabilização da mídia

INDÚSTRIA & SERVIÇO PÚBLICO


Prefácio à edição brasileira de O arsenal da democracia ? sistemas de responsabilização da mídia, de Claude-Jean Bertrand (trad. Maria Leonor Loureiro), 514 pp., Editora da Universidade do Sagrado Coração, Bauru, 2002


Atualmente ninguém pode prescindir da mídia para viver, ou até mesmo para sobreviver: nem os habitantes das zonas rurais subdesenvolvidas. Infelizmente, os veículos de comunicação não cumprem o seu papel corretamente, como bem sabemos. Como fazer para reverter esse quadro? Este livro pretende oferecer uma resposta a esta questão, e esta resposta leva bem em conta muitas lições do século 20.

A mídia é uma indústria e um serviço público ao mesmo tempo. Será que por causa disso ela pode se comportar como as outras indústrias, os outros serviços públicos? Seria correto deixá-la aos cuidados do Estado? Ou deixá-la bater-se sozinha em meio à selva que é o mercado? Os países comunistas provaram que um controle governamental total não melhora os veículos de comunicação, mas os deixa piores ainda. E, por outro lado, vimos recentemente nos Estados Unidos que, se a mídia fica abandonada unicamente às forças do mercado, com um mínimo de leis e regulamentações, o resultado é pouco melhor.

Atualmente, como é claro, não podemos contar nem com o Estado, nem com o mercado, se desejarmos uma mídia de qualidade. As forças políticas sempre se esforçaram no sentido de impedir a circulação das informações. E para as forças econômicas, atualmente dominantes, os veículos de comunicação nada mais são do que máquinas de dinheiro, sempre mais dinheiro, não importa como. Elas rebaixam a mídia ao divertimento medíocre, à prostituição sempre mais barata.

Que podemos fazer? Primeiramente, colocar essas duas forças a serviço público na maior medida do possível. O livre mercado (utilizando as novas tecnologias), obrigou os governos em toda parte a renunciar ao monopólio sobre a rádiotelevisão, e a desregulamentar em ampla escala todos os meios de comunicação. Por seu lado, o Estado mantém por todos os lados, mesmo nos Estados Unidos, restrições à atividade selvagem das sociedades de mídia.

Os dois são indispensáveis, mas ambos são perigosos. E não podemos esperar que um neutralize o outro. O que fazer, então? Sugiro que se empregue também uma terceira força que é democrática e inofensiva. Esta força é capaz de bloquear os excessos do Estado e do mercado. Podemos encontrá-la nos próprios jornalistas: é o desejo da maioria dos profissionais de fazer bem o seu trabalho. Já há muito tempo os jornalistas têm fixado as regras de sua atividade com a finalidade de servir adequadamente ao público. Em todos os países existem códigos de boa conduta, e todos eles são muito semelhantes entre si.

Agora surgem dois problemas. Primeiramente, a natureza humana é tal que nenhuma regra é eficaz se não prevê algum tipo de punição em caso de desrespeito. Punição por parte do Estado? Da Polícia? Do Judiciário? Não, evidentemente: os veículos de comunicação constituem em si uma instituição política, que deve permanecer independente. A disciplina deve necessariamente ser aplicada por meios não-estatais. É o que eu chamo de MAS [media accountability systems, cuja tradução provisória utilizada nesta edição será sistemas de responsabilização da mídia]. Um MAS é qualquer meio de incitar a mídia a cumprir adequadamente seu papel: pode ser uma pessoa ou grupo, um texto ou um programa, um processo longo ou curto. Mediador, conselho de imprensa, código de deontologia, publicação regular de autocrítica, pesquisa de leitorado, ensino superior de jornalismo ? e muitos outros. Existem mais de sessenta.

O segundo problema é que os jornalistas são pouco numerosos e muito vulneráveis, pois são empregados pelas empresas de comunicação e, portanto, facilmente manipuláveis. Como poderiam eles, em nome de uma deontologia, recusar-se a obedecer uma ordem do patrão? Isso somente é possível com o apoio do público, formado por milhões de eleitores e consumidores.

Como obter esse apoio? Provando ao público que sua vocação é primeiramente de satisfazê-lo. No momento atual, em muitos países, nos Estados Unidos, Grã-Bretanha ou França, por exemplo, o público sente pouca confiança nos jornalistas. Daí a importância dos MAS. Estes indicam claramente ao público que os jornalistas têm princípios e regras, que eles se preocupam em descobrir as necessidades e desejos de seus leitores/ouvintes/espectadores e, enfim, que eles estão prontos a prestar contas, a reconhecer suas faltas.

Por mais curioso que isso possa parecer, esta idéia simples está pouco disseminada e é aceita com dificuldades nos meios da imprensa. Para expor com simplicidade esta situação, escrevi um livro resumido, publicado em 1999 pela EDUSC ? A deontologia das mídias. Nele eu traço um rápido panorama da moral profissional dos jornalistas (a deontologia) e de suas carências, a partir de uma tradição jornalística que não está adaptada às exigências do terceiro milênio. O livro apresenta um breve quadro dos MAS e dos obstáculos encontrados em sua implementação. Suficientemente completo, o livro é claro, original e útil, o que se prova por sua publicação em francês, inglês e em português brasileiro, além do romeno e armênio.

No entanto, só aquele livro não é suficiente. Por quê? Porque a maioria das pessoas, principalmente os jornalistas, conhece e aprecia a deontologia mas conhece muito pouco dos MAS. Os que os conhecem duvidam que eles possam ser úteis em algo.

E assim este volumoso livro complementa o primeiro. Ele trata dos principais MAS ? e mostra aos jornalistas e usuários o como e o porquê de criá-los. A apresentação é feita por pessoas da imprensa e por professores universitários que estudaram em profundidade um ou mais MAS, ou que participaram da criação de algum deles. Por exemplo, Charles Klotzer, jornalista norte-americano, criou em 1970 a St. Louis Jornalism Review, mensário crítico da mídia, e consagrou-lhe parte importante de sua vida por 30 anos. Eu mesmo, que sou professor, tenho estudado os conselhos de imprensa de todo o mundo por mais de três décadas.

Entre esses autores, contam-se especialistas do Novo e do Velho continentes. Eles são ingleses, suecos, japoneses, franceses, portugueses etc. Mesmo com uma grande contribuição dos Estados Unidos (pois foi naquele país que os MAS se desenvolveram com maior amplitude), a visão é global. As informações dadas, as recomendações, são válidas para todo o planeta. Elas serão preciosas a todos os que querem lutar pela democracia. E, assim, pela liberdade e qualidade de informação.

Muitos MAS foram postos à prova um pouco em todo lugar durante o último meio-século, e maioria deles discretamente ? e muitas pessoas não se deram conta de que eles são inovações: quadros de correção, correio dos leitores, pesquisas do leitorado etc. Muitos MAS, porém, continuam defrontando-se com sérios obstáculos: ombudsmans, conselhos locais de imprensa, críticos internos, comissões disciplinares etc. O grande obstáculo, sem dúvida, fonte de maiores resistências, é a ignorância. Daí o motivo de ser deste livro.

É necessário que os cidadãos ativos que desejam melhorar este serviço público crucial que são os veículos de comunicação, que os futuros jornalistas atualmente nos bancos escolares, que os jornalistas em atividade submetidos freqüentemente a pressões ilegítimas, que os patrões da mídia conscientes da rentabilidade de uma mídia de qualidade, saibam que existe todo um arsenal de armas pacíficas, capazes de garantir ao mesmo tempo a liberdade e a excelência dos meios de comunicação. Paris, fevereiro de 2002