ÉTICA ESCORREGADIA
Deonísio da Silva
Sílvio Santos bem que poderia acrescentar mais uma letra a seu célebre pseudônimo. O "esse" de sabonete. Usou vários em entrevista à Veja (edição 1.822, de 1?/10/03 ? veja íntegra da matéria na rubrica Entre Aspas, desta edição do OI).
Por tratar-se de concessão pública, a TV deve satisfações. Aos telespectadores, à Lei e à Ordem. Mas a Lei e a Ordem têm expediente. Trabalham de segunda a sexta, em horário comercial. O resto é plantão. Já as emissoras de TV operam em quase todos os horários, principalmente aos sábados, domingos e feriados, privilegiando certos horários noturnos do resto da semana.
Prestemos atenção às habituais sutilezas do ato de designar e à própria etimologia do vocábulo. O começo da noite recebeu o qualificativo de "nobre", com o significado original de conhecido ? seu antônimo etimológico é ignóbil, desconhecido, que com o tempo ganhou o sentido de vil, horroroso ?, tão logo a televisão corrigiu rapidamente os primeiros tropeços e adotou marcha batida para invadir os domicílios sem pedir licença aos moradores. Nem sequer houve algum tipo dos controversos contratos "de adesão". O horário pode ser nobre para quem quer ganhar dinheiro com reclames e anúncios, mas quando se espera alguma função cultural ou educativa da televisão comercial, o horário em questão pode ser tudo. Mas raramente é nobre.
Papéis dispensados, a rede elétrica e as antenas providenciaram a entrega ininterrupta de pacotes diários. Se pais e educadores refletissem sobre o que entra nas residências por aqueles buraquinhos da tomada na parede, combinados com o pedaço de metal fincado no telhado, teriam muitos motivos para exercer com mais vigor a cidadania e exigir providências no contrato maior, que rege todos os atos de todos os cidadãos: a Constituição. Afinal, a televisão ensina uma coisa. E eles, outra. Eles atuam sobre corações e mentes dos filhos por poucas horas. A televisão dispõe de latifúndios para combatê-los.
Lei de Imprensa
Cidades, metrópoles e megalópoles foram concebidas para abrigo do ser humano. Logo foram transformadas, porém, na modernidade, em selva escura, pior do que aquela onde Dante Alighieri se encontrou no meio da vida. Meio da vida aos trinta e cinco? Sim, Dante viveu entre os séculos 13 e 14. E morreu em 1321, catorze anos antes de chegar aos setenta, a idade bíblica concebida como término da existência, uma fronteira que já foi ultrapassada pela ciência, pelos remédios, pelas prevenções e por outros cuidados, levando septuagenários a ostentar mais vigor do que muitos adolescentes precocemente cansados. Envelhecidos e envilecidos, muitos deles acham que a ética de pais e avós é apenas falta de esperteza, falha genética que estão dispostos a sanar com recursos semelhantes àqueles que lhes ensinam na televisão.
É neste contexto que podemos melhor entender a entrevista de Sílvio Santos à Veja que está nas bancas. Qualificou a farsa dos encapuzados apresentada no programa de Gugu Liberato como "uma bobagem feita para dar ibope", acrescentando, porém (o primeiro sabonete): "Mas não foi malfeita". De que ponto de vista, senhor Abravanel? "O ponto de vista cria o objeto", define as perspectivas e induz interpretações.
O segundo sabonete é mais sutil. Indagado sobre o que fez quando desconfiou de que as "entrevista" era armação, disse que recomendou que se, como afirmaram os diretores, o quadro era verdadeiro, "o programa deveria exibir uma outra entrevista com essas mesmas pessoas no domingo seguinte", mas que os diretores disseram que "não era necessário, que o programa estava coberto pela Lei de Imprensa" e que "não tinha de provar nada".
Resposta certa
Bem, junto com o sabonete veio o recado no coração do problema. Alguém quer recorrer à famigerada Lei da Imprensa? "O telespectador não é bobo", disse Sílvio Santos. Assim, todos souberam que foi armação. Gugu falhou ao não assistir ao programa antes de ele ir ao ar? "Sim, mas Gugu está com sérios problemas familiares." E os telespectadores? Não têm nenhum! Desemprego, violência, baixos salários, sobrecarga de trabalhos agravada por estradas, ruas e trânsito infernais, nada disso os aflige. Por isso, devem compreender o que diz o patrão e ter piedade de Gugu, o pobrezinho.
O terceiro sabonete é definitivo. Houve censura? "Realmente não sei. Já ouvi no rádio que sim. Mas também li nos jornais que não." Não terá sido o inverso? "Ainda não consegui tirar uma opinião sobre o assunto."
Nós, já, senhor Sílvio "Sabonete" Santos. O senhor sabe lidar com o poder! Aliás, com todos os poderes. Em todas as décadas! Sejam paisanos ou não. Nota dez para o senhor no quesito esperteza, em cuja era vivemos. Mas houve censura, sim. E foi ilegal sua aplicação no Domingo Legal. Os juristas que estão dizendo o contrário precisam mirar-se no exemplo do general Eurico Gaspar Dutra e perguntar: "Está no livrinho?"
A resposta correta só pode ser uma, como no Show do Milhão. E a resposta correta é "não". A censura não está no livrinho. E o nome do livrinho é Constituição.