STF E O RACISMO
Luis Milman (*)
A versão do neonazismo, conhecida como Revisionismo Histórico,
vem sendo divulgada no Brasil há 15 anos, e desde 1990 freqüenta
os tribunais brasileiros, tendo chegado agora, pela segunda vez,
ao Supremo Tribunal Federal. Na primeira, a condenação
imposta a Siegfried Ellwanger pelo Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, em 1996, por crime de racismo, foi mantida. Trata-se
de coisa julgada. O que se julga agora no Supremo é a alegação
de Ellwanger, em habeas-corpus, de que anti-semitismo não
é racismo, argumento que, se aceito, tornaria sua pena prescritível.
Em artigo anterior, publicado no Observatório [remissão
abaixo], a exemplo de renomados intelectuais, como Celso Lafer e
Alberto Dines, manifestei-me sobre o movimento tático de
Ellwanger, para elogiar a sabedoria da Suprema Corte e a excelência
jurídico-analítica dos votos de sete de seus magistrados,
que denegaram o pedido. Ruiu, assim, a malícia proposta pelo
editor anti-semita que, desde 1996, enfrenta outro processo no Rio
Grande, pelo mesmo crime, na condição de reincidente
e em plena vigência de sua condenação.
No entanto, em 26 de agosto, o julgamento do hábeas no Supremo
foi interrompido pela quarta vez, após o voto do ministro
Carlos Ayres Britto, que acatou o pedido de Ellwanger com a tese
da atipicidade do crime imputado. Na fundamentação
de seu voto, o ministro recém-nomeado para a mais alta magistratura
do país pelo presidente Lula cometeu equívocos fáticos
e distorções preocupantes com relação
ao anti-semitismo. Sustentou que Ellwanger não pratica preconceito,
porque imputa características negativas mas não inferiores
aos judeus. E listou exemplos das qualidades que Ellwanger critica,
alternativa e conjuntamente, nos sionistas e no judaísmo
internacional: atavismo, sentimento de superioridade, exercício
inescrupuloso do poder político e econômico, controle
de governos, dos meios de comunicação, das finanças
e por aí vai.
O ministro não acredita, obviamente, em nada do que Ellwanger
acredita. Mas não vê preconceito em tais crenças,
quanto mais racismo. De tal forma que as considerou atípicas
do crime pelo qual Ellwanger foi condenado. Não se deu conta,
quero crer, que seu voto desagravou a todos os anti-semitas que,
como Ellwanger, dedicaram a vida a judaizar o mal. Cito alguns,
cujas idéias aparecem ao ministro Carlos Britto como racialmente
inofensivas. Seria prudente que o ministro viesse a compulsar alguns
historiadores do tema, pois certamente verificaria que a propalada
ignomínia foi sustentada, entre outros, por Wilhelm Marr?
a quem se atribui o vocábulo anti-semitismo, fundador da
Liga Anti-Semita da Alemanha, em 1879, e que em 1867 publicou o
panfleto "A vitória da judiaria sobre o teutonismo"
?, Karl Lueger, criador do primeiro movimento político anti-semita
alemão (1882), inspirado em Marr, Eugen Dühring, Edouard
Drumont, autor de A França judia (1886), publicista
e panfletário, fundador do jornal anti-semita Libre Parole,
que inspirou a criação da Ação Francesa
de Charles Maurras, na Terceira República.
E ainda August Rohling, autor de Talmud-Judeu (1871), Houston
Stewart Chamberlain, RicharD Wagner, Hermann Goedsche (que, sob
o pseudônimo de sir John Retcliff, escreveu o romance Biarritz,
considerado o esboço da bíblia do anti-semitismo,
Os protocolos dos sábios de Sião), Heinrich
Treitschke, autor de Nossas perspectivas (1879), livreto
que serviu de inspiração para Karl Lueger, fundador
do anti-semita Partido Cristão-Social Austríaco, para
não falar de seu admirador Adolf Hitler, do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães, que escreveu Mein
kampf, a definitiva súmula das qualidades negativas judaicas
que o ministro Carlos Britto não vê como difamatórias,
e que o nazistômano Ellwanger alardeia nos livros que escreve
e distribui.
Também faltou ao ministro Carlos Britto informação
sobre a Academia Sul-Brasileira de Letras, que tem como membro Sérgio
Oliveira, anti-semita como Ellwanger, que escreveu O livro branco
sobre a conspiração mundial e O Cristianismo
em xeque, livretos editados e distribuídos pela editora
de Ellwanger. Tal academia, informo eu ao apressado meritíssimo,
foi fundada pelo próprio Sérgio Oliveira, em Pelotas,
e não passa de um bunker de ferrenhos nazistômanos.
Não foi seguramente de bom tom que, em voto que constará
dos anais do Supremo, um de seus ministros tenha confundido um centro
judeófobo marginal com uma instituição literária
do Rio Grande.
Desinformado, como se vê, excessivamente tocado pelo espírito
de Voltaire, a quem homenageou em comovida citação,
terminou o ministro Britto por sustentar que o anti-semitismo não
é racismo, e o descriminalizou. Desconsiderou, assim, a história
do anti-semitismo, antigo e moderno, que deu amparo ideológico
ao extermínio de milhões de judeus europeus e segue
a excitar o ódio anti-semita. Lamento, como brasileiro que,
ou por falta de apuro ou por desinteresse sobre a natureza do anti-semitismo,
o ministro Carlos Britto tenha isentado de reprovaç&atilatilde;o
penal essa modalidade de preconceito e, com acentuada ênfase,
tenha construído um errático argumento para, ao fim,
conceder o habeas-corpus a Siegfried Ellwanger.
É de se acentuar que não há, ou pelo menos
não deveria haver, exegetas do improviso no Supremo Tribunal
Federal, e é de surpreender que um magistrado lá recém
chegado, por indicação presidencial, tenha enveredado
no comentário de matéria complexa, de alto significado
histórico, sem a pesquisa minimamente imprescindível
sobre o anti-semitismo e o nazi-fascismo. O ministro Carlos Britto,
até o fim do julgamento desse caso, certamente terá
a oportunidade de meditar sobre suas leituras concernentes ao tema
e sobre suas fontes de informação.
Especificamente sobre o revisionismo propalado por Ellwanger, que
se fundamenta na alegação segundo a qual os campos
de extermínio não existiram, é impositivo repetir:
trata-se de ideário oficial de partidos xenófobo-extremistas
europeus e grupos de racistas brasileiros. Grave, no entanto, é
constatar que pessoas, entre as quais o próprio ministro
Britto, julgam que tal aberração se trate de uma concepção
alternativa da história, por mais bizarra que venha a parecer.
Esse tipo apressado de argumento, quando inspecionado com um mínimo
de rigor, não deixa dúvidas sobre a sua natureza:
é um colossal despropósito fático, uma arrematada
fantasia produzida pelo anti-semitismo organizado do pós-guerra.
Ao leitor interessado nos contornos dessa modalidade de anti-semitismo
de ampla divulgação internacional, sugiro dois livros,
entre outros: Os assassinos da memória (Pierre Vidal-Naquet,
Papirus, Campinas, 1988) e Negacionismo, revisionismo e extremismo
político (Luis Milman et ali, Editora da Universidade,
Porto Alegre, 2000).
O ministro Carlos Britto poderia, se tivesse efetivamente pesquisado
o assunto, descobrir que essa farsa aparece no Brasil precisamente
com o livro Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores
da mentira do século, de Siegfried Ellwanger, lançado
em 1988. Dois anos após seu aparecimento, o livro alavancou
a pequena e renitente produção anti-semita da Editora
Revisão, de Porto Alegre, por meio da qual Ellwanger divulga
e distribui um diversificado material racista, com destaque para
as reedições de clássicos do anti-semitismo,
como O judeu internacional, de Henry Ford, Brasil, colônia
de banqueiros e História secreta do Brasil, ambos
de Gustavo Barroso. Lastimo que, em seu voto, o ministro Britto
tenha passado a idéia de desagravo a esses autores, lembrando
que Barroso chegou à presidência da Academia Brasileira
de Letras. Isto é verdade, mas apenas atesta que num passado
não muito distante anti-semitas transitavam abertamente nos
meios políticos e intelectuais brasileiros. Barroso, além
do anti-semitismo de sua própria lavra, traduziu Os protocolos
dos sábios de Sião para o português, em
1936. Na época, era um dos líderes da Ação
Integralista Brasileira e era referido, por seus acólitos,
como o "Führer brasileiro".
Repúdio e banimento
O livro de Ellwanger é vazado pela doutrina barrosiana da
luta racial e investe quase que exclusivamente na desumanização
dos judeus, prática que o ministro Carlos Britto não
considera passível de reprovação penal, porque,
segundo ele, não passa de exercício em princípio
lícito da liberdade de opinião, e não típica
de racismo. Assim, a análise do Caso Ellwanger deve enfrentar
tal desvio de enfoque, propugnado pelo editor condenado em sua defesa
e acatado pelo ilustre magistrado, porque aqui se revela a aliança
da malícia anti-semita com uma modalidade precária
de libertarismo, que vê como insulto ao direito de expressão
livre as ações judiciais contra quaisquer formas de
manifestações literárias..
Enfrentemos, antão, o aparente desafio. Nossa legislação
anti-racismo é inequívoca e atinge quem faz propaganda
ou de algum modo incita o ódio racial, práticas definidas
como crimes inafiançáveis e imprescritíveis
pela Constituição Federal. A questão racial,
do ponto de vista específico da legislação
brasileira, trata apropriadamente a discriminação
e o preconceito racial, dimensionando-os como crimes especialmente
graves, que afrontam aos princípios do estado democrático.
A objeção libertária às sanções
para quem escreve e difunde idéias racistas e deformações
anti-semitas é proposta não no âmbito da legalidade
positiva, mas a partir de uma pseudo-ética que, na falta
de um termo melhor, chamo de anarco-ultraliberal. E é justamente
no plano do debate ético-normativo, logo racional, que se
torna evidente a precariedade da mencionada objeção
libertária à condenação de publicações
anti-semitas, que Ellwanger espertamente tentou mobilizar em sua
defesa.
Senão, vejamos: na Constituição Federal, o
racismo é repudiado em suas duas primeiras partes, os Títulos
I e II, que se seguem ao Preâmbulo. No Título I (Dos
Princípios Fundamentais), Art. 3? (os objetivos fundamentais
da República), inciso IV, aparece a determinação
expressa de promover o bem de todos, sem preconceito de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
e no Art. 4? (os princípios que regem as relações
internacionais da República), inciso VIII, afirma-se o repúdio
ao terrorismo e ao racismo. Com respeito ao racismo, lê-se
No Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Art.
5?, inciso XLII: a prática do racismo constitui crime inafiançável
e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei.
O repúdio ao racismo e o seu banimento das relações
sociais ? é isso que faz a sua tipificação
como crime inafiançável e imprescritível ?
não podem ser interpretados como contrapostos ao princípio
da liberdade de manifestação do pensamento, que a
mesma Constituição consagra no Título II, Art.
5?, inciso IV e no Título VIII, Capítulo V, Art. 220,
onde se lê que a manifestação do pensamento,
a criação, a expressão e a informação,
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
Liberdade privada
A interpretação conjunta desses princípios
é unívoca: a prática do racismo (no caso, por
meio da sua difusão e indiferenciadamente) é excepcionalizada
da norma geral que garante a opinião livre, porque se trata
de violação explícita de um dos fundamentos
republicanos do estado democrático de direito, afirmado também
expressamente nos Princípios Fundamentais da Constituição
Federal (Título I, inciso III): a dignidade da pessoa humana.
Não é difícil concluir que, em vista da ética
republicana e humanista que sustenta o ordenamento das nossas relações
políticas e jurídicas, seria primário desconhecer
que as restrições penais impostas ao racismo asseguram
e não ameaçam quaisquer dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição.
A defesa que o anarco-libertarismo faz do direito à liberdade
de expressão o torna irreconhecível, porque o toma
como absoluto. Não é em nada semelhante ao direito
à livre expressão que se universalizou gradualmente,
como inerente aos homens, a partir do século 19. Isso porque
a sua absolutização o descaracteriza, fazendo dele
um escudo de proteção para idéias que abertamente
deformam o princípio da igualdade entre os homens e a idéia
de dignidade humana. Visto sob essa ótica, ele deixaria de
cumprir a função ético-normativa de defesa
contra a barbárie xenófoba, anti-semita, racista e
discriminatória.
Não há nada de absoluto na liberdade de expressão,
assim como não há nada de absoluto na liberdade. É
lícito e moralmente necessário excepcionalizar de
um princípio geral quaisquer deformações que
possam advir de sua vigência. Isso vale também para
o princípio da liberdade. No estado democrático de
direito, liberdade é sempre liberdade ponderada, porque o
que deve ser assegurado é o direito de agir, mas não
o direito de agir de modo a ofender ou suprimir direitos que são
direitos de todos. Somos livres para expressar o que pensamos, mas
não somos livres para fazê-lo sem a correspondente
responsabilidade pelo que dizemos. Por isso, entre outras vedações,
não somos livres para incitar o ódio racial, que é
crime.
Tanto é assim que a criminalização do racismo,
inclusive de sua propaganda ao estilo de Ellwanger, é prescrita
pelas convenções internacionais (recepcionadas pela
lei brasileira, como já o enfatizaram os ministros que denegaram
o pedido de Ellwanger) que tratam justamente da liberdade e dos
direitos humanos. Cito a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, Artigo 7:
Todos têm direito a igual proteção contra
toda discriminação que infrinja essa Declaração
e contra toda provocação a tal discriminação;
Artigo 29, & 2: (…) toda pessoa estará sujeita
apenas às limitações estabelecidas pela
lei, com o único fim de assegurar o reconhecimento e
o respeito dos direitos e liberdades dos demais (…).
Ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida
como Pacto de San José), Artigo 5:
A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como
toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitação à discriminação,
à hostilidade, ao crime ou à violência.
Chega a ser grotesco imaginar que regimes democráticos e
republicanos viessem a reduzir a liberdade de expressão a
um tabu. Se assim o fizessem, as relações entre pessoas
deixariam de ser reguladas pela proporcionalidade da lei e admitiriam
a idéia de um direito absoluto, a pairar sobre os demais.
Uma tal liberdade incircunstanciada de expressão só
é feita por quem não é capaz de entender as
bases da racionalidade humanista que sustenta as garantias individuais
numa sociedade livre. Tais pessoas não se importam com a
liberdade individual, mas com uma espécie de liberdade desgarrada
da moralidade política, amesquinhada, solipsista e privada.
Assim, sem qualquer esforço intelectual sobre a natureza
do racismo e sem a necessária reflexão sobre as conseqüências
históricas e sociais do anti-semitismo, há quem aceite
a redução da alteridade atacada a uma condição
de tema controverso, talvez porque, insulados num mitificado apego
à liberdade simpliciter, tais pessoas dissociam-se
do preconceito que minimizam.
Argumentação desconexa
Esse esquematismo parece resultar, enfim, de uma hipertrofia do
próprio individualismo. Uma coisa é ponderar a liberdade,
como o faz o estado de direito. Outra é considerá-la
impermeável. Os fetichistas anarco-libertários atomizam
as garantias individuais e se aferram a um direito esdrúxulo
e, ao fim, socialmente indiferente. Mas a liberdade pela qual vale
a pena lutar é, por definição, incompatível
com a convivência com o preconceito. Ela é sempre uma
liberdade condicionada pelo reconhecimento da dignidade do outro.
Aceitar, ainda que a pretexto de ser tolerante com qualquer opinião,
uma ou outra forma de racismo, implica ser insensível à
discriminação de uma pessoa que seja, se carne e osso,
como todos nós. E isso viola dois princípios reciprocamente
implicados da ética humanista, expressos na lei brasileira,
por vontade e conquista, lembremos, do povo brasileiro: a inexistência
de direitos absolutos e a proteção da dignidade das
pessoas.
Os sete ministros do Supremo que denegaram o hábeas a Ellwanger
souberam, como referi em artigo anterior, extrair de tais padrões
o juízo moral e jurídico adequado sobre a propaganda
anti-semita. Já o ministro Carlos Britto, que incursionou
por uma argumentação obtusa e faticamente desconexa,
não mais fez do que registrar uma infeliz interpretação
do tema nos arquivos da nossa Corte Suprema.
(*) Filósofo, profesor da UFRGS
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