CENSURA & INTIMIDAÇÃO
Ivo Lucchesi (*)
A análise proposta em artigo anterior [remissão abaixo], à luz de outras observações, impõe continuada abordagem, o que faremos a seguir, a partir da retomada de um aspecto central: a relação conflituosa entre a mídia e o "regime da presunção", usado este ultimamente com finalidade inibidora (ou intimidadora) à livre atividade jornalística. O propósito explícito de retornar com o tema diz respeito a fatos que se sucedem com intrigante insistência, provindos das mais diferentes direções e distintas motivações.
Ora é a revista CartaCapital que, sob amparo judicial, teve, por ação de liminar, impugnada a matéria antes de sua publicação; ora é um veículo com o perfil do Observatório da Imprensa a receber ? felizmente não do Judiciário, mas da razão judicativa ? ataques em questões a envolverem o semanário em suspeições que, além de infundadas e negadas pela própria prática a dar sobrevivência ao projeto, se originam de pessoas sequer atingidas por nada que diretamente justificasse atitude, a exemplo de matérias cujo teor se encontra reproduzido em edições anteriores.
São duas as intenções que deliberadamente levam a não nomear a autoria dos acidentais detratores (ou difamadores). A primeira é por reconhecer que a responsabilidade de resposta perante atos dessa natureza cabe à Redação do OI, o que já foi providenciado e publicado. A segunda diz respeito ao fato de não desejar alimentar o que pode, na origem, não passar de mero ressentimento, de notoriedade reprimida, ou, quem sabe, de mero gosto adolescente, próprio de quem deseja fomentar polêmica contra quem, afora a inteligência, não dispõe de outros poderes maiores.
Bem, então, o que efetivamente alimenta o prolongamento do tema em questão? Basicamente é a salutar constatação de que a atividade jornalística no Brasil começa a dar sinais de incômodo, seja quanto ao que apura, seja quanto ao conteúdo divulgado. Isto é relevante salientar, se reconhecermos viver numa sociedade cujo nível de acomodação ainda é acentuado. Parte da responsabilidade dessa tendência à inércia, ou da recusa à confrontação, tem a ver com o modo discreto com o qual a mídia oficial, ao longo de décadas, se vinha portando.
Aqui mesmo, neste Observatório [cf. edições 159, 163 e 167, respectivamente, "As limitações do jornalismo e da política" (13/2/02), "Jornalismo de Estado e a servidão induzida" (13/3/02) e "Imprensa e a cumplicidade silenciosa" (10/4/02)] publiquei três artigos [remissões abaixo] sobre o tímido horizonte de autonomia crítica de que o jornalismo oficial padece no Brasil. Os casos reativos recentes, portanto, indiciam um sintoma e é na condição de sintoma que se torna interessante desdobrar o tema no qual numa ponta toca a "liberdade" e na outra tangencia a "presunção".
A liberdade do incômodo e a presunção
O que leva alguém a julgar ou a caluniar com base em presunções? A resposta pode ser: antecipar-se com uma atitude de autoproteção contra algo que o possa atingir, seja em que nível for. Em assim sendo, então é igualmente compreensível deduzir que a parte ameaçada reconhece no suposto "adversário" tanto a verdade indesejada quanto a capacidade de difundi-la. É nesse quadro, pois, que a atividade jornalística potencializa o efeito da liberdade, tanto no que tenha a revelar quanto na sua capacidade de disseminar o que, por alguma razão estava oculto.
Por qualquer ângulo a analisar-se o fato, a imprensa sai fortalecida. Em nenhuma hipótese, a imprensa deve inspirar temor, de igual modo, em todas as circunstâncias, se possível, ela deve promover incômodos. Dessa característica depende a sobrevivência da democracia, como dessa prerrogativa decorre a atuação da imprensa na condição de voz representativa dos interesses societários. Fora dessa ambivalência, facilmente a imprensa se transforma em eco do mercado. Talvez, agentes a viverem no aprazível sombreado do mercado sintam-se incomodados diante da livre resistência do Observatório da Imprensa e, em nome disso, queiram lançar suspeitas relativas a quem o sustenta (ou financia).
Em sociedade modelada pelo interesse no mercado quase cartelizado, é natural criar-se uma atmosfera de suspeição sobre quem está livre. Mais ainda ameaçador é o exercício do pensamento livre e, por fim, torna-se aterrorizante a idéia da livre publicação. A síntese de tais características tem o poder de acionar as vozes da fantasmagoria que, na hora certa, dão início ao esforço de intervenção, com o intuito de silencar a voz da autonomia.
A atividade jornalística, desvinculada da rede dos negócios, serve para assegurar ao leitor mais uma fonte de experiência voltada a um pensar dialógico e dialético. No fundo, o incômodo da função de informar se destina unicamente à missão de propiciar ao leitor a possibilidade de ele operar seu ajuizamento sobre a realidade a partir de oferta multifacetada e não unilateralizada, situação para a qual se encaminham o "jornalismo de mercado" e o "jornalismo de Estado". É preciso compreender que um jornal ao dar certa notícia com destaque em primeira página produz oscilações nas aplicações da bolsa, na valorização ou desvalorização do dólar. Na outra ponta, alguém faz fortuna e outro amarga prejuízos: isto é "jornalismo de mercado". Quando um jornal realça benfeitoria desse ou daquele governo, inevitavelmente lhe manifesta apoio, ainda mais se com ele mantém contratos de publicidade: isto é "jornalismo de Estado".
Acompanhando as edições do Observatório da Imprensa, o leitor não se vê diante de nenhuma dessas cenas ou outras equivalentes. Articulistas e leitores se completam e/ou divergem entre si, a partir de estados mentais construtivos para ambas as partes, sem arestas ou insinuações sinuosas que estrategicamente beneficiem ou prejudiquem esse ou aquele: isto é simplesmente uma forma de "jornalismo crítico", incômodo como a liberdade o é para aqueles que preferem direcioná-la ou gerenciá-la.
(*) ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.
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