Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre sereias, censuras e filósofos

CASO GUGU

José Paulo Cavalcanti Filho (*)


O caso eu conto
Como o caso foi
Porque homem é homem
E boi é boi.
(Dito popular do Nordeste)


O filósofo Pedro Eduardo Portilho de Nader escreveu belo artigo ("Censura e o canto das sereias") neste Observatório falando muito mal de texto que escrevi, pouco antes ("A musa da censura e o Supremo") [veja remissões abaixo]. Nada contra. Democracia é isso mesmo. O problema é que Pedro Eduardo, mais preocupado com sua filosofia, simplesmente não sabe ler textos jurídicos. Fazendo lembrar do embolador Roxinol ? que ganhava a vida, nas feiras de Gravatá, cantando assim:


"Cada um para o que nasce
Cada qual com sua classe
Seus estilos de agradar
Quem tem o mel dá o mel
Quem tem o fel dá o fel
Quem nada tem nada dá".


Por isso recomenda o bom senso que filósofos tenham prudência, sempre, ao ler decisões judiciais. Cada qual com sua classe. E filósofo filosofa. Não é pouco. Nos bons tempos em que era mais jovem e mais magro, também quis ser filósofo. Estudava Direito e Filosofia Pura. Consumindo os dias nas duas faculdades e as noites no rude aprendizado de grego antigo. Até quando vieram os censores da ditadura e me proibiram de estudar (em 1969). Fui para Harvard (bolsa). Depois, em gesto magnânimo, me deixaram completar os estudos por aqui mesmo. E acabei sendo só advogado. Advogado de província, claro. Filósofo não, é pena. Mas ficou a admiração por quem se manteve na trincheira.

Posição do Supremo

O problema no caso é que filósofos, mais preparados para a metafísica, nem sempre compreendem bem o prosaico das decisões judiciais. E a melhor prova é o próprio Pedro Eduardo ? ao criticar texto que se limitou a tornar pública uma posição do Supremo Tribunal Federal. Resumindo, em um parágrafo: a Procuradoria Geral da República sustentou, em ação direta de inconstitucionalidade (ADIN), que "a pena de suspensão de programas importa em restaurar, por forma oblíqua, a censura banida pela Carta Magna de 1988 (CF, art. 220, ? 2o). A criação dessa medida de suspensão, com o caráter de sanção por infração administrativa, colide com o art. 220, ? 1o, da Constituição Federal que garante não possa lei nenhuma constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalista". Julgando o Supremo, por unanimidade, que a "suspensão de programas futuros … importa restaurar a censura". E mais não disse. Nem precisava.

Em verdade, para bem compreender essa decisão, seria necessário também considerar institutos jurídicos próximos à censura ? e que, apesar dessa contigüidade, não se confundem com ela. No Direito Eleitoral, tema privilegiado por nosso filósofo, estão em jogo outros valores. Sobretudo a legitimidade da própria democracia. Autoriza-se candidato a falar, proíbe-se outro, limita-se o tempo de um, concede-se direito de resposta a partidos ? tudo, sempre, no sentido de garantir iguais oportunidades no processo eleitoral. Levadas essas restrições eleitorais a extremos de pudor, e a simples atribuição de tempos desiguais a partidos (em função do número de deputados, por exemplo) já seria uma espécie de "censura". O que, penso que Pedro Eduardo estará de acordo, seria banalizar o opróbrio da censura.

O mesmo se diga em relação à publicidade. Que, para alguns produtos, só pode ser exibida em horários legalmente determinados. Vedados inclusive anúncios de produtos específicos ? como, por exemplo, drogas ilícitas. Em relação ao Direito Administrativo também. Todos os países democráticos definem temas que, consensualmente, sofrem restrição na divulgação ? não censura, mas "reserva legal". Em pesquisa para livro que estou acabando de escrever até discorro sobre três deles: 1) correspondência com outros países ? especialmente em relação a fronteiras; 2) efetivos militares e planos da guerra; e, 3) alguns "documentos internos de trabalho de governo". Sem falar nos sigilos funcionais ? bancário e fiscal, ou profissionais ? de padres, advogados ou médicos. E nada disso é censura ? no sentido de limitação à liberdade de expressão.

Censura e sigilo

Posta a questão nestas bases não há como argumentar, filosoficamente, de que precedentes em matéria eleitoral, ou de Direito Administrativo, ou em propaganda, ou em sigilo funcional, ou em sigilo profissional, possam ser tidos como manifestação de "censura". E o que sobra, dessa conversa fiada, é apenas o fato de que o Supremo simplesmente não permite a suspensão de programas futuros. Por constituir prática que, para ele Supremo, "importa em restaurar a censura banida pela Carta Magna de 1988". Ponto final, novamente.

Até aqui não vai opinião nenhuma, caríssimo Pedro Eduardo. Só digo que o Supremo disse o que disse. Mas, se lhe interessar saber, estou de acordo com essa posição. Por ser contra qualquer limitação à liberdade de expressão. Radicalmente. Importante porque, não custa lembrar, temos a pior lei de imprensa do planeta. A melhor, se também quiser saber, ainda não está em vigor. É o "Libel Reform Act", elaborado pelo Annemberg Institute, em votação pelo Congresso americano. Em que, pela primeira vez, se diferencia fato de opinião. Até garantindo se possa dizer, em artigo assinado, o que se quiser dizer. Sem receio de processos ? única maneira de dar efetividade ao princípio maior da liberdade de expressão. Mas essa é outra histórica.

Se quiser saber mais, Pedro Eduardo, tenho também que boa parte do que foi dito, nesse lamentável caso Gugu, veio de dois grupos bem diferenciados de pessoas: os bem-intencionados e os que simplesmente não resistem ao brilho fácil dos refletores. Em ambos os casos, posições sustentadas com muito pouca consistência. Umas vezes invocam "formação de quadrilha", sem se dar sequer ao trabalho de indicar o crime que lhe seria conexo. Nem o papel que, nele, teria o apresentador. No contexto desse discurso, talvez o art. 287 do Código Penal ? "fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime". Mas dificilmente uma entrevista assim poderia ser considerada "apologia", no sentido técnico da expressão.

Outras vezes invocam o art. 147 do mesmo Código Penal ? "ameaçar alguém por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave". Crime, aliás, também previsto na Lei de Imprensa (art. 19). Onde tem pena maior, de até 1 ano de detenção (contra os 6 meses do Código Penal). Só que, por essa regra, também não haveria condenação nenhuma. A ameaça partiu de terceiros. O apresentador não foi parceiro dela.

Indenização por dano moral

De parte a dimensão de espetáculo dedicada ao caso, tenho que o único processo cabível seria o de indenização por dano moral ? arts. 186 e 927 do Código Civil. Contra o SBT (empregador), e não contra Gugu Liberato (empregado). E que só pode ser movido pelos próprios ameaçados. Com alguma imprecisão em relação aos montantes da indenização, é certo. Na França, a média dessas indenizações é 60 mil dólares. Nos Estados Unidos, entre 100 mil e 200 mil dólares, embora haja casos de montantes maiores: Leonard Ross x New York Times, 5 milhões de dólares; Richard Sprague x Philadelphia Inquirer, 34 milhões de dólares; Houston Money Management x Wall Strell Journal, 232 milhões de dólares. Em nossa Lei de Imprensa, como já dito a pior do mundo, seria de mil dólares. Embora, num caso como esse, a Justiça tendesse a julgar com base nas leis civis. O que levaria a indenizações certamente maior. O futuro dirá.

Em todo caso o problema real, o que está verdadeiramente em questão, é algo bem mais relevante que os apuros de um apresentador irresponsável em busca de audiência. Está em jogo a própria liberdade de expressão. O direito de falar. E o exagero das reações, sobretudo por parte de autoridades públicas, trás preocupações severas. O risco de reviver o verniz conservador do patrulhamento. O autoritarismo que pensávamos sepultado. O retorno a um passado infausto. O reflorescer, com todas as letras, da censura.

Em resumo percebo que ambos ? o simpático filósofo Pedro Eduardo e este modesto escriba ? têm, em comum, a mesma sensação de horror ante a mediocridade (para dizer o mínimo) que reina em nossos meios de comunicação. E o mesmo compromisso radical pela democracia. O que nos separa é só a maneira de compreender leis e decisões judiciais. Que ele, Pedro Eduardo, se dá ao luxo de livremente interpretar como filósofo. Enquanto eu, pobre de mim, e por dever de ofício, tenho que ler como advogado.

P.S. Declaro encerrado, no que me toca, o debate sobre o tema. Que já está começando a ficar chato.

(*) Advogado no Recife, presidente do Conselho de Comunicação Social (órgão auxiliar do Congresso Nacional)