MORTE NA PISTA
Angelo de Souza (*)
O vôo para a morte. Assim, reduzido a um título de primeira página (o mesmo em dois diários concorrentes no Rio de Janeiro), o acidente de domingo 7/9 no autódromo de Campo Grande não dá idéia do que está além da notícia, ou aquém dela.
Acidente do trabalho, com certeza. E culpados não faltam para apontar. A linha da responsabilidade, que começa e termina na figura singular da vítima, estudante de Jornalismo, não isenta intermediários ? na organização da corrida, sim, mas também na sala de aula, no meio profissional, no serviço público.
Não cabe discussão sobre a necessidade de estudantes adquirirem experiência para enriquecer a fase acadêmica e preparar o início da carreira. Foi obviamente o que levou Rafael Pereira a buscar o frila da revista Raça e correr riscos desnecessários na pista.
Como ele, outros tantos aceitam subempregos e subsalários a pretexto de "estagiar". Enquanto ninguém se machuca, só profissionais conscientes dão a cara a tapa quando protestam contra tal distorção, que se reflete no mercado de trabalho e na própria formação do jornalista.
Aí ocorre o acidente, e ? igual aos demais "estagiários" ? Rafael está só. O sindicato foi ausente, dizem alguns, porque não tem feito o que deveria fazer. Mas o que deveria ter feito? Ou, antes, com quem contaria para coibir o "estágio" e seus males menores e maiores?
A revista, que parte tem? Certamente a mesma que têm os veículos impressos e emissoras que demitem profissionais habilitados e se valem de "estagiários" e salários simbólicos para manter as aparências de empresas de comunicação sérias e responsáveis.
Só a consciência restou
A universidade, não conta? O estágio regulamentado, sob orientação docente, como parte da formação acadêmica, pretendia envolver os cursos de Jornalismo, o sindicato e a delegacia do Ministério do Trabalho. Saiu do papel?
E chegamos a ele: o poder público, a Delegacia Regional do Trabalho. O que ela fez, ou deveria ter feito, todas as vezes em que foi solicitada a voltar seus olhos para a realidade do trabalho irregular, ilegal, criminoso dos futuros jornalistas?
Rafael não terá futuro. E a responsabilidade é de todos nós, por omissão e até por cinismo. Porque é fácil apontar culpados, até o ponto que alcança o livre arbítrio do estudante em sua escolha infeliz. O lugar errado, a hora errada ? e os que sabiam o que seria certo, o que fizeram?
Perguntas que, para serem respondidas, exigem primeiro reflexão de cada parte, e depois um debate exaustivo sobre a questão. Um debate entre profissionais, autoridades, empresários, sindicalistas, todos ? e todos somos o poder público, o sindicato, o mercado, a profissão.
Se pudesse participar da discussão, Rafael poderia ter sua consciência despertada para os muitos riscos que se dispunha a correr, sem necessidade. Agora, só a nossa consciência restou ? e pode, ainda, felizmente, ser despertada, e despertar.
(*) Jornalista
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