QUALIDADE NA TV
LAÇOS DE FAMÍLIA
"Quem matou Ritinha?", copyright no. (www.no.com.br), 1/02/01
"Alguns textos publicados no Brasil no apagar das luzes do ano 2000 me deixaram cheia de expectativas. Na no.com.br um bem humorado artigo de Andréa Kauffmann-Zeh falava dos brutais vieses sexistas que podem ser identificados nas pesquisas científicas sobre sexualidade feminina. A Folha de São Paulo publicou um excelente texto de Rose- Marie Muraro sobre o milênio das mulheres. A autora, pioneira do ressurgimento feminista no país, lembra pela undécima vez que a igualdade entre os gêneros é uma medida fina do desenvolvimento humano. Até mesmo Miriam Leitão – que quase nunca se manifesta em relação às mulheres – publicou no O Globo uma bela reflexão sobre as mulheres que ‘carregam trens’. Inspirada pela mulher a quem deu carona numa estrada mineira, Miriam fala das brasileiras que de tudo fazem. Regulam sua fecundidade recorrendo aos mais diversos expedientes, inclusive a esterilização oferecida por prefeitos. Trabalham dentro e fora de casa. Andam pelas estradas carregadas de pacotes e crianças pequenas. Miriam termina o artigo lamentando que os volumosos recursos públicos investidos em ‘desenvolvimento’ – como os do BNDES – nunca chegam a elas.
Mas alegria feminista, como bem se sabe, dura muito pouco. O milênio se iniciou, de fato, com os vestidos de mau gosto de Laura Bush. Seguiu-se a decisão do senhor seu marido de suspender os recursos da cooperação internacional que, porventura, poderiam ser investidos em atividades que promovem o aborto no mundo. A experiência dos anos de chumbo de Ronald Reagan nos ensina que de agora em diante todo e qualquer projeto na área de saúde sexual e reprodutiva fica agora sob suspeita, aos olhos dos funcionários norte-americanos.
Sem dinheiro americano vai ficar, sem dúvida, mais difícil implementar, nos países sem desenvolvimento, as recomendações do Cairo e de Pequim. Estas recomendações incluem a redução drástica da mortalidade materna que continua a matar mulheres como moscas, inclusive no Brasil. Entretanto, nas telas da Rede Globo este é um fato irrelevante. Pois ao fim e ao cabo, como bem prova a história de Ritinha – personagem de Laços de Família -, as mulheres são elas mesmas as responsáveis por suas mortes.
Cientistas sociais de renome, como o professor Vilmar Farias e a antropóloga Esther Hamburgo, nos dizem que desde os anos 70 as novelas têm sido um fator explicativo importante de mudanças culturais que transformaram o país. Entre estas mudanças se contabiliza a preferência feminina por um número menor de filhos, a sexualidade mais livre e, até mesmo, o questionamento da tradição patriarcal brasileira. Há mais de uma década tivemos nas telas ‘Barriga de Aluguel’. E, desde muito, as novelas globais tem sido palco de uma elevada incidência de abortos espontâneos. Isto porque, entre nós, o aborto é ilegal mesmo na ficção televisa, as gestações indesejadas são, com freqüência, resolvidas em acidentes de carro, quedas de escadaria e outros percalços.
Recentemente, porém, a Rede Globo resolveu introduzir, de forma mais consistente, nas suas ficções problemas de saúde reprodutiva que comprometem o bem estar de milhões de brasileiras. Isto se deu com toda plenitude na série ‘Mulher’. O sucesso da série inspirou a extensão da mesma abordagem para as novelas do horário nobre. Quando ‘Terra Nostra’ estava no ar ouviu-se dizer que Maria do Carmo, a personagem interpretada por Débora Duarte, iria morrer de morte materna. Fazia sentido. Embora fosse fazendeira e rica, Maria do Carmo tinha mais de quarenta anos e vivia num tempo em que a morte materna era um episódio democrático. Bastava ser mulher para correr risco. A primeira esposa de meu avô paterno morreu de morte materna deixando três filhas pequenas e minha avó quase se foi de febre puerperal no segundo parto. Maria do Carmo teve uma grave infecção pós-parto, mas sobreviveu. Ao que tudo indica foi preservada pela opinião dos grupos focais que a Globo utiliza para afinar a novela com a audiência.
No entanto, um ano depois, em Laços de Família, Ritinha, empregada doméstica e negra, morreu de parto. Mais especificamente de hipertensão gravídica que é, de fato, a primeira causa de morte materna no Brasil. Segundo as mulheres que assistiram o capítulo, a cena foi impactante. Falei com uma delas, mãe de cinco filhos. Ela me disse que nunca havia percebido como um parto poderia ser tão perigoso. Ritinha morreu de parto embora estivesse sendo acompanhada por um obstetra que atende mulheres de classe alta. Também se pode supor que – caso as circunstâncias fossem reais – o parto teria acontecido na Clínica São Vicente ou no Barra d´Or. Segundo o primeiro plano do argumento, isto aconteceu porque Ritinha era indisciplinada: não tomou corretamente o medicamento de controle da hipertensão. Para além desta superfície benévola e supostamente pedagógica se faz necessário observar os subtextos perversos. Além de negra, doméstica e indisciplinada, Ritinha não tinha ‘laços de família’ que a pudessem proteger do mundo hostil e arcar com os custos de paixões incontroláveis. Seu deslize supremo, foi como se sabe estar grávida do patrão.
Resta saber agora quem decidiu que Ritinha deveria morrer. Teria sido uma vez mais a voz invisível dos grupos focais de aferição. Teriam os grupos de cidadãos e cidadãs concluído que Ritinha não merecia ficar viva? Ou talvez que não poderia ficar viva, entre outras razões porque não ia conseguir sustentar os gêmeos e eles acabariam, como outras crianças negras, aborrecendo a classe média nas ruas da cidade. Ou este desfecho se deu simplesmente porque Manoel Carlos foi solidário com a trajetória pessoal de Alma, a patroa de Ritinha? Pois só com Ritinha no além, Alma poderia viver, plenamente, na etapa madura da vida a maternidade dos gêmeos perdidos outrora, nos tempos em que a moral sexual brasileira ainda não havia sido revolucionada pelas novelas das oito e outros produtos globais. Mas nada impede de que levantemos uma outra hipótese. A morte de Ritinha é apenas sintoma de sintonia fina da Rede Globo com o clima global pós George W. Bush. Ela é a demonstração cabal que não vale a pena gastar dólares preciosos com programas de saúde sexual reprodutiva. Isto por que as mulheres pobres – maioria no planeta – não apenas são promíscuas como também irresponsáveis. Melhor investi-los em tabaco, petróleo e armas, pois estas sim são coisas que dão lucro e promovem o desenvolvimento."
"Comemoração ao vivo no fim de ‘Laços’", copyright O Globo, 2/02/01
"Desde a estréia da novela, em 5 de junho do ano passado, o apartamento de Manoel Carlos fica mais movimentado na hora da exibição de ‘Laços de família’. Os atores vão lá assistir às cenas e comentar suas performances. Alguns chegam sem avisar, outros, os mais cerimoniosos, só aparecem quando convidados. A festa se completa com os parentes do anfitrião. Hoje, às 21h, quando for ao ar o último capítulo, não será diferente: grande parte do elenco estará reunido na sala de Maneco. E, desta vez, a comemoração será compartilhada com milhares de telespectadores.
– Logo depois da última cena da novela, que será a festa de três anos de Vitória, a filhinha de Helena (Vera Fischer), mostraremos a nossa comemoração. Uma equipe do jornalismo da emissora estará aqui e fará um link, ao vivo. Todos os dias temos visitas. Nas épocas em que eu estava mais enrolado, nem sentava no sofá. Revezava entre o computador e a sala. A Júlia (Almeida, sua filha, a Estela) e a Bety, minha mulher, faziam as honras da casa – diz Manoel Carlos.
Ricardo Waddington, diretor-geral da trama, explica o movimento de câmera que será feito na transição da ficção para a realidade:
– Estaremos gravando as imagens da novela na tela de uma TV. Em seguida, a câmera vai passear pelo ambiente e focará nossa confraternização.
A dupla tem motivos para comemorar. Em seu terceiro trabalho, conseguiu fazer uma das mais bem-sucedidas novelas das 20h dos últimos anos. A audiência chegou a atingir picos de 62 pontos na última semana. Um recorde na carreira de Ricardo Waddington.
– Não imaginava que a TV aberta ainda pudesse ter estes números tão altos. É incrível – diz José Mayer.
‘Laços de família’ teve uma média de 45 pontos de audiência até o dia 25 de janeiro último, e atingiu diversas vezes picos de 57. E em 11 de dezembro e 8 de janeiro, 61. Os CDs foram os produtos mais vendidos pela Som Livre em 2000.
– O Maneco escreveu uma história com a produção o tempo todo a seu lado. É um processo de criação que nos proporciona ter uma boa estrutura – diz o diretor."
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