TV PAGA & TV ABERTA
Nelson Hoineff (*)
Quer dizer que a Soninha fuma maconha? Que lástima! Tem mais é que ser expulsa da TV Cultura, porque na TV Cultura ninguém fuma e provavelmente nunca ninguém fumou maconha. Não adianta chiar, porque se o exemplo não for dado agora, daqui a pouco vai ter gente fumando maconha até na MTV, que é vista por tantos jovens. E não vamos nos espantar se daqui a alguns anos descobrirmos que existem empregados ? quem sabe, Deus nos livre, até mesmo diretores ? da própria TV Globo cheirando cocaína.
Se a punição à Soninha não servir de exemplo, não demora muito para que tenha jornalista e até deputado consumindo a erva maldita. E aí, onde é que vamos parar?
É por isso que dentro da Casa dos Artistas a gentalha age como age. Falta referencial sadio a essa gente ? e em conseqüência os infelizes dizem palavrões, trocam insultos, conspiram contra os amigos e ainda por cima andam quase nus. Nada que lembre a sofisticada elegância do Fantástico, na qual a sociedade brasileira deveria se espelhar.
E vem agora a DirecTV botar essa casa de degenerados 24 horas no ar. Com tanta coisa bonita pra mostrar ? as nossas matas, os documentários tão instrutivos do Discovery Channel, os bichinhos tão perspicazes do Animal Planet, a natureza selvagem do National Geographic, as sitcoms tão divertidas do Sony Entertainment…
É verdade que a DirecTV já põe tudo isso no ar ? mas podia botar de novo, cada uma dessas redes em vários canais. Por que não botar também os musicais tão modernos do Multishow, as belas produções brasileiras da GNT, os jogos tão bacanas do SporTV?
Bem, porque sobre essas a DirecTV não tem direito (apesar de brigar na Justiça por eles), mas não é isso que importa. Ao colocar um programa como Casa dos Artistas o dia inteiro num de seus canais, a DirecTV age como se fosse uma… operadora de TV por assinatura. Aliás, ela é uma operadora de TV por assinatura. Mas no Brasil tornou-se praxe que as operadoras sigam os padrões consagrados pela TV aberta.
Interesses divergentes
E por que as operadoras de TV por assinatura deveriam reproduzir os modelos, a estética e o ideário da TV aberta? Isso só faria sentido se a televisão aberta, as operadoras e as redes de TV por assinatura fossem todos tentáculos de uma única corporação.
Felizmente não são, mas isso também não dá à DirecTV o direito de subverter a ordem instaurada e usar um dos 220 canais que deveriam estar reproduzindo o que já existe para botar no ar algo diferente. Porque, quando promove alguma coisa diferente do que já está cristalizado, a televisão colabora para a queda do equilíbrio econômico e da uniformização cultural que foram conquistados a duras penas ? e, o que é pior, deixa que o espectador perceba que existem outras formas de se fazer televisão.
Isso é muito perigoso, porque se o espectador entender que as duas centenas de canais não precisam ser iguais no conteúdo (e podem até ser comercializados de forma original), então toda a sua escala de valores mudará. Seu repertório cultural ? que controla a maneira pela qual ele qualifica e escolhe o que vê na TV ? já não será decorrente do que a própria televisão lhe apresenta, mas poderá ser expandido ao infinito.
A decorrência imediata é que o espectador vai querer que sua televisão seja mais diversificada, mais plural, mais ousada. Se isso acontecer, a televisão será a segunda a quebrar, logo depois das agências de propaganda.
Pior: se o espectador pensar dessa maneira, então ele vai querer que a Globo e o SBT sejam diferentes ? e isso vai valer para todas as redes abertas e também para as operadoras de TV por assinatura. É como se a sociedade brasileira tivesse anseios diferentes, níveis culturais distintos, interesses divergentes. Todos nós sabemos que não é assim; no Brasil somos todos iguais e gostamos da mesma coisa. A televisão está aí para não me deixar mentir.
Se alguém acha o contrário, foge à realidade. E deve ser para fugir à realidade que a Soninha desandou a fumar maconha.
(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão