ESQUIRE, 70 ANOS
“A revista que ensinou o jornalismo a ser moderno”, copyright O Estado de S. Paulo, 13/09/03
“Minha principal escola de jornalismo está fazendo 70 anos. Ela fica em Nova York, mas eu a cursei daqui mesmo. As aulas eram mensais e o curso, que me saía por uns US$ 12 anuais, não incluía diploma. Claro está que não me refiro à Universidade de Columbia. Minha escola foi a revista Esquire. Qualquer um, desde que soubesse inglês, podia ?freqüentá-la? e muitos, daqui e outras partes do mundo, o fizeram.
Difícil era pôr em prática seus ensinamentos num país como o Brasil, sempre à míngua de revistas como Esquire e The New Yorker, outra grande faculdade informal. As que mais se aproximaram de Esquire foram Senhor e Realidade, a primeira mais que a segunda. The New Yorker continua à espera de um sucedâneo. Vai longe o tempo em que na Esquire aprendia-se o mais inventivo e refinado jornalismo à esquerda, por assim dizer, da New Yorker.
Colecionei-a até a década de 80, recorrendo a sebos, inclusive um da Broadway, para adquirir exemplares antigos. Há anos que nem sequer a folheio nas bancas, tão desinteressante, yuppie, modernosa e fashion ela ficou. Uma sub-GQ, eis no que ela se transformou, com a desvantagem de não ter um Terrence Rafferty entre os colaboradores.
Fôlego – Sua edição especial de aniversário, com Muhammad Ali em dois tempos (hoje e em 1966), não tem mais substância e criatividade que a comemorativa dos 60 anos, em que forneceu 60 dicas de gente como Norman Mailer, Václav Ravel, Robert Altman, Ice-T e Richard Ford sobre ?as coisas importantes que todo homem precisa saber?. E pensar que a Esquire de outubro de 1993 nem sequer era uma sombra do que fora nas décadas anteriores. Em outubro de 1968, por exemplo, suas 35 velinhas foram sopradas com o fôlego de F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Dwight Macdonald, Gore Vidal, Truman Capote, Kenneth Tynan e Wilfrid Sheed, entre outros. E no mês seguinte ela estava de volta às bancas, sem os achaques da rotina, tinindo. Todas as edições daquela época eram de gala. Nunca houve revista mensal mais bem editada, excitante, aristocrática, travessa e imitada do que ela.
Em suas páginas não desfilou apenas a fina flor da literatura (inclusive européia), mas também a nata do jornalismo e do show business, fazendo coisas que habitualmente não faziam. Jean Genet fez reportagem política em Chicago. Candice Bergen já era atriz consagrada quando aceitou um frila como fotógrafa. Fez uma foto inesquecível de Oscar Levant.
O Novo Jornalismo pode não ter começado em suas páginas, mas foi lá, sem dúvida, que floresceu com mais vigor e pertinácia, nos textos de Mailer, Tom Wolfe, Gay Talese, da dupla Robert Benton-David Newman (que ficaria famosa pelo roteiro de Easy Rider). Foi na Esquire de abril de 1966 que Talese publicou o legendário perfil de Sinatra (?Frank Sinatra has a cold?), que até em algumas de nossas faculdades de jornalismo virou material didático.
Na edição especial dos 70 anos, ele é reproduzido num encarte patrocinado pela vodca Absolut.
?Tudo era novo na Esquire?, revelou em suas memórias o avuncular Arnold Gingrich, o primeiro editor da revista. ?Sempre tentamos ser os primeiros em tudo?, acrescentou. Conseguiram. Foram os primeiros em moda, reportagem com preocupação literária, humor político (quantas imitações não geraram mundo afora os ?Annual Dubious Achievements Awards?, lançados em 1962?) e até em pins-ups (desenhadas por Varga e George Petty).
Suas capas e chamadas – assim como os títulos de seus textos, alguns quilométricos e desconcertantes – eram um acinte de inventividade. Das capas, em seu período áureo, quem cuidava era George Lois, gênio da publicidade (foi um dos autores da mais célebre campanha do Fusca), que cobrava US$ 600 por cada uma de suas sacadas. Craque em fotomontagem, foi sua a idéia de afogar Andy Warhol numa lata de sopa Campbell, jogar uma mulher numa lata de lixo, encaixar o cantor Eddie Fisher no colo de Jacqueline Kennedy e pôr o finado marido desta à beira de uma tumba, ao lado do irmão Bob Kennedy e do pastor Martin Luther King, no ano em que estes dois foram assassinados.
Maluco – O sujeito que criou a Esquire já era esperto no nome, David Smart. No início, parecia apenas maluco. Como lançar uma nova revista em plena Depressão e cobrar por ela 50 centavos, quando a Saturday Evening Post custava dez vezes menos? Mas só ele parecia saber da existência de um público jovem, esperançoso e sofisticado à espera de uma publicação que explorasse com brilho e vivacidade a cultura contemporânea.
Foi para esse segmento que, no outono de 1933, Smart e seu editor, Gingrich, lançaram Esquire, que por pouco não se chamou Stag, Trim e Beau.
Esky. Era este o nome do venerável senhor, inspirado em Gingrich, que nos 12 primeiros anos protagonizou todas as capas da revista. Virou sua mascote, a exemplo do Eustace Tilley da New Yorker, sendo depois deslocado para o logotipo, e por fim reservado para esporádicas aparições hitchcockianas.
O reinado de Gingrich, que se afastou da redação durante seis anos (1946-1952), por discordâncias editorais com Smart, durou até 1977. Mas nos anos 60, quem deu as cartas, editorialmente, foi Harold Hayes, ex-repórter da UP contratado pelo próprio Gingrich para sintonizar Esquire com as loucuras da era de Aquário e da guerra no Vietnã. Há quem diga que nunca houve um editor de revista mais ousado e criativo do que ele. Hayes aposentou-se em 1973 e morreu, em 1989, de um tumor cerebral. Àquela altura Gingrich também já não estava mais lá. Nem Clay Felker, que comprara a revista em 1977 e a passara nos cobres, dois anos depois, para a dupla Phillip Moffitt-Christopher Whittle, que investira U$ 10 milhões em sua yuppização, para afinal vendê-la ao grupo Hearst.
Voltemos aos anos 30. Gingrich pede um conto a F. Scott Fitzgerald. O escritor negaceia, se diz sem idéias. ?Então escreva um artigo?, sugere o editor. Nada feito: Fitzgerald se dizia derrocado pela Depressão para escrever qualquer coisa. ?Você só vai sair dessa se puser para fora os seus sentimentos sobre a nossa derrocada?, insiste Gingrich. E foi assim que nasceram as histórias que iriam compor a coletânea The Crack-Up with Other Pieces and Stories, publicada em 1936 e aqui traduzida com o título de A Derrocada e Outros Contos e Textos Autobiográficos.
Saltemos para os anos 40. Helen Lawrenson publica um longo artigo, intitulado ?Os Latinos São P&eeacute;ssimos Amantes?, desmistificando a tão propalada superioridade sexual dos latin lovers. Talvez tenha sido o texto mais lido e polêmico da revista em toda sua história. Até o governo cubano protestou. Lawrenson não tinha papas na língua e enfrentava qualquer tabu.
Já era uma provecta dama quando, para a edição de maio de 1977, escreveu um pequeno ensaio sobre felação.
1950 – Quem cuida da correspondência e das assinaturas da Esquire é um rapaz franzino, cujas ambições profissionais são frustradas pela direção da revista. Um dia, ele pede um aumento irrisório.
Não lhe dão; ele se demite; pega dinheiro emprestado, e, numa redação improvisada em sua cozinha, edita o primeiro número de uma revista chamada Playboy.
Hugh Hefner foi um dos muitos ases do jornalismo americano que passaram pela Esquire.
Anos 60 – Noitada jazzística no Five Spot do Greenwich Village. Crente que os dois já se conhecem, o dono da casa senta Clay Felker na mesa de Norman Mailer. Meio de porre, Mailer discute com a mulher, Adele, ainda mais bêbada e agressiva que o marido. No meio da briga, Felker, constrangidíssimo, não sabe o que fazer. De repente, Adele pega a bolsa e vai embora, deixando o marido com cara de tacho. Para desanuviar o ambiente, Felker vira-se para Mailer e pergunta o que primeiro lhe vem à cabeça: ?Você já escreveu sobre política?? ?Sobre política, no duro, não?, responde Mailer. ?O que você acha de cobrir a próxima convenção dos democratas??, emenda Felker. Mailer topou, e sua cobertura da Convenção dos Democratas em 1960 transformou-se numa das reportagens mais comentadas da década. E num dos pilares do Novo Jornalismo.
Na gestão Felker, uma descoberta surpreendente: 25% dos leitores da revista eram do sexo feminino. Essa informação chega aos ouvidos da filha de um veterano casal de roteiristas de Hollywood, que sugere ao editor Lee Eisenberg uma coluna diferente sobre mulheres. A moça se chamava Nora Ephron. A coluna, com divertidos comentários divertidos sobre seios, fantasias femininas, política sexual, sacanagem e gênios de saias como Dorothy Parker, foi o abre-te-sésamo dela para a fama jornalística e seu trampolim para a comédia cinematográfica.
Esquire nasceu trimestral. Daí seu slogan: ?A revista trimestral do homem.?
Na capa do primeiro número não se lia outubro de 1933, mas outono de 1933.
Nela, três cavalheiros esportivos saíam de uma canoa para embarcar num hidroavião. Estreou com artigos de Ernest Hemingway, Nicholas Murray Butler, Gilbert Seldes, Ring Lardner Jr., Gene Tunney, e contos de John Dos Passos, Erskine Caldwell e Dashiell Hammett, os cobras daquele tempo. Manteve a tradição enquanto pôde ou lhe foi conveniente. Há várias décadas deixou de custar 50 centavos. Talvez não valha os US$ 3 que hoje cobram por ela. A velha senhora, infelizmente, exagerou na plástica e esclerosou.”
A ERA DO ESCÂNDALO
“?Corte-e-costura? não contribui para debate jornalístico”, copyright Folha de S. Paulo, 13/09/03
“O que fazem no mesmo livro o advogado do banqueiro Salvatore Cacciola, o médico do governador Mário Covas e a atriz Glória Pires? Segundo Mário Rosa, autor de ?A Era do Escândalo?, os três têm em comum o enfrentamento de ?crises de imagem?.
Cada um deles -assim como o ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge, o ex-ministro da Saúde Alceni Guerra e personagens de outros cinco casos de repercussão- dá seu depoimento em um capítulo, ao fim do qual Rosa, jornalista e consultor de imagem, procura extrair lições.
Na segunda parte do livro, o autor analisa o trabalho da imprensa. Defende a idéia de que existem hoje mais e maiores escândalos do que no passado. Acredita na especificidade do ?escândalo brasileiro?. O problema desse corte-e-costura que junta relatos pessoais, dicas para não ?perder a batalha de relações públicas? e crítica de mídia é jogar no mesmo saco coisas muito diferentes.
Respondendo à pergunta inicial, o drama de Glória Pires com os boatos que envolveram sua família não tem nenhum parentesco com as dificuldades do advogado que defendeu Cacciola durante a CPI dos Bancos, assim como o calvário de Alceni após o ?escândalo das bicicletas? não é comparável ao desgaste sofrido pelo governo FHC durante o apagão, ou à onda de reclamações de usuários quando da instalação da Telefonica, ou à guerra de mercado entre AmBev e Coca-Cola.
Não se trata de aqui estabelecer certo e errado em cada caso, apenas de observar a precariedade da ?crise de imagem? como denominador comum. Arquivá-los na mesma pasta, ainda que de forma subliminar, serve apenas para dar corda à ladainha contra a imprensa – para a qual ?o negativo é sempre notícia; o positivo, quase nunca?, conforme reclama na orelha do livro o marqueteiro Duda Mendonça, sócio de Rosa.
É lógico que existe um debate a ser feito sobre a atuação da imprensa, mas, para que ele tenha um mínimo de seriedade, deve-se começar por reconhecer que, em vários dos episódios narrados no livro, os interesses de ?quem viveu a crise? nem sempre coincidiram com o interesse público.
Para ?dar densidade ao rarefeito ambiente de discussão sobre escândalos no Brasil?, como pretende Rosa, convém lembrar que, nas ?batalhas de relações públicas?, informação isenta está longe de ser o centro das preocupações. Busca-se, isso sim, operar jornalistas para promover os negócios de X e atrapalhar os de Y.
Felizmente, para descontentamento de consultores e clientes, o melhor jornalismo sempre tentará escapar desse roteiro.
A Era do Escândalo, Autor: Mário Rosa, Editora: Geração Editorial, Quanto: R$ 47 (528 págs.)”
CELA FORTE MULHER
“Um repórter no presídio feminino”, copyright O Estado de S. Paulo, 14/09/03
“Os motivos que levaram o jornalista Antonio Carlos Prado a ser voluntário em penitenciárias femininas de São Paulo e, posteriormente, escrever o livro Cela Forte Mulher – que retrata justamente personagens desse universo -, podem ser explicados no divã. Ainda hoje, Prado tem nítido na memória dois momentos marcantes de sua infância: quando leu A Lei Quer Que Eu Morra, de Caryl Chessman, e quando assistiu ao filme Quero Viver, de 1958, com a atriz Susan Hayward, no papel de Barbara Grahan. Tanto Chessman quanto Barbara foram condenados à morte, sob a dúvida da inocência.
?Tenho claro para mim que Chessmann morreu antes de eu nascer, mas quando eu li o livro, parte da minha infância foi com ele, como se eu não pudesse salvá-lo?, analisa. Prado foi tomado pelo mesmo sentimento em relação ao destino de Barbara Graham.
E como num gesto de redenção perante os dois, o autor resolveu fazer parte da vida de prisioneiras, depois de visitar a Colônia Feminina do Hospital Psiquiátrico do Manicômio Judiciário, em 1996, por causa de uma reportagem que estava fazendo para a Revista Isto É.
?Fiquei com isso na cabeça. E entre chorar e ajudar, resolvi ajudar.? O jornalista tornou-se voluntário em três presídios femininos em São Paulo, onde é um ombro amigo e ponto de referência das presas. É para Prado que elas correm quando estão alegres e desabafam em momentos de tristeza. Diante delas, o autor se comporta como um amigo, daqueles que orientam, alertam, dão broncas, muitas vezes, sem meias palavras, como se quisesse mostrar para suas pupilas desregradas que existem certos limites na vida.
?Não julgo nenhuma delas, porque não me relaciono com delitos e sim com pessoas?, reflete. ?A gente convive, há uma troca de dor, de alegria, de solidariedade.? As presidiárias são a vida de Antonio Carlos Prado, o que fica muito claro em cada linha de seu texto, que beira certas vezes ao poético, no livro Cela Forte Mulher (Labortexto Editorial, 216 págs., R$ 35).
Antonio Carlos Prado diz ter escrito Cela a pedido das próprias detentas. Não era um assunto que ele tivesse planejado transformar num livro. No entanto, talvez ele também tenha o feito numa nova tentativa de exorcizar seus antigos fantasmas. Na obra, Prado retrata, de forma delicada e com admiração, o universo das mulheres encarceradas em penitenciárias de São Paulo, onde presta trabalho voluntário até hoje. São ?5 mil TPMs (tensões pré-menstruais)?, como ele graceja para designar as 5 mil que formam o sistema penitenciário feminino de São Paulo, para as quais ele cede sua atenção, empresta livros, trabalha com música e, muitas vezes, doa até dinheiro.
O livro não se pretende uma grande reportagem, mas um espelho do convívio entre um voluntário homem e muitas, muitas mulheres. Por isso, a predileção do autor pelo texto na forma de diálogos. São sobretudo histórias de personagens, com seus arrependimentos, dissabores, esperanças. Histórias comoventes de mulheres que caem no crime pela circunstância, pelo meio em que vivem, carregadas pelos companheiros ou simplesmente porque querem sentir a ?adrenalina? de cometer atos condenáveis perante a sociedade. Para o jornalista, o problema é que ainda há quem não as encarem como criminosas, que não aceitem como elas são, o que prejudica sua reabilitação. Muitas vezes, fica realmente difícil aceitar que personagens como Scarlet, filha da classe média e com possibilidades de ter uma boa vida, tenha envolvimento com a criminalidade.
No livro, Scarlet é nome fictício, dado pelo autor com aprovação da personagem real, cuja identidade verdadeira manteve-se preservada. Foi inspirado numa cena do filme Quero Viver, na qual a Barbara Grahan de Susan Hayward gostaria de ir para a câmara de gás com um vestido cor escarlate. Daí o nome adotado por Prado para caracterizar uma das maiores seqüestradoras do Brasil.
Na prisão, ela divide a cela com a namorada agressiva, é submissa e, segundo a definição do próprio jornalista, ?imantada?. Prado explica o significado do termo para Scarlet, num de seus diálogos do livro: ?Você e outras poucas mulheres eu defino como imantadas. Todos nós temos uma dose de poder, você tem esse poder amplificado, infinitos watts de potência. Dose de sedução tripla. E sem gelo.? Se depender do jornalista, imantadas ou não, elas sempre terão o benefício da segunda chance na vida.”