Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Sérgio Rodrigues

HOUAISS vs. AURÉLIO

"Dicionário, adeus", copyright Jornal do Brasil, 9/09/01

"É a última vez. Depois disso ninguém vai me ver dedicando esta coluna ao novo dicionário Houaiss e muito menos a uma comparação entre ele e o Aurélio. Falou-se tanto no assunto nas duas últimas semanas – não faltaram críticas à mania besta e redutora que os brasileiros têm de transformar tudo em Fla x Flu, coisa de subdesenvolvido – que o leitor deve achar que chega. Chega mesmo, eu concordo. Mas permitam-me um balanço antes do ponto final.

Para começar, que tal parar com essa história de que brasileiro gosta de transformar tudo em Fla x Flu ou, dizendo de outra forma, em Emilinha x Marlene? A gente já tem pecados suficientes – reais demais – para ficar inventando outros. A humanidade é que gosta de transformar tudo em Fla x Flu, vamos combinar? Por que será que os Rolling Stones foram, desde o início, confrontados com os Beatles? Rebobinando ainda mais a história: por que os maníacos por ópera se dividem entre Verdi e Wagner? E a briga entre Shakespeare e Marlowe é o quê?

Todas essas oposições são simplificadoras, sim. Mas são também deliciosas, motivadoras de debate e de inteligência. Reparem que um lado joga luz sobre o outro. Desde que não se proponha a eliminação física do adversário – e não vi ninguém dizendo que os dias do Aurélio estão contados – a verdade é que não há nada errado com a briga Emilinha x Marlene.

Dizer que há espaço para os dois dicionários é o óbvio. Para eles e para quantos mais vierem. Como sempre houve espaço para Beatles, Rolling Stones e uma miríade de outras bandas de rock. Mais até do que isso, vamos falar claro: não existe a mais remota chance de o Houaiss, um dicionário culto e exigente, em muitos aspectos de leitura difícil, derrubar o Aurélio do posto de sinônimo de dicionário brasileiro. A simplicidade, a clareza e a facilidade de consulta da obra de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira devem lhe garantir a supremacia por muitas décadas.

Nada disso invalida o fato de que o Houaiss é – e dificilmente deixará de ser nos meses que restam – o grande acontecimento cultural do país em 2001. Ah, não? Será então que foi o show do Caetano? Cambaio? A antologia de poemas do Italo? Me desculpem, mas nada tem o fôlego de uma obra que, mesmo dirigida a uma elite letrada, ou por isso mesmo, promete atravessar o século contribuindo decisivamente para consolidar o português brasileiro como uma língua que não deve nada a qualquer outra.

Defeitos o Houaiss deve ter muitos. Que bom seria, aliás, se as comparações feitas na imprensa não tivessem ficado tão presas à lista aleatória de verbetes que eu, correndo contra o relógio, coletei para dois artigos publicados na primeira hora aqui no Caderno B. Pô, moçada, na próxima vez vamos dar uma folheada, que tal? Ainda há muitos méritos – e defeitos como aquele do Mallarmé ?parnasiano?, aliás grave, apontado pelo poeta Carlito Azevedo – a descobrir no vastíssimo Houaiss. Um mutirão não cairia mal.

É até possível que o dicionário, como seu autor, peque mesmo por certa prolixidade, como apontam algumas críticas. Tenho a impressão, porém, que esse juízo se deve principalmente a um mal-entendido. Um jornalista chegou a se desmanchar em elogios ao Aurélio porque, para definir maneiro, ele diz: ?V. bacana?. Isso seria um genial golpe de concisão. Calma, pessoal, aí não! Louvar justamente um dos maiores defeitos do Aurélio, o de abusar da sinonímia para substituir a definição, é brincadeira.

Maneiro não se confunde inteiramente com bacana, embora seja um sinônimo. Pode dar no mesmo para quem precisa tirar uma dúvida rápida – um sueco que esteja aprendendo português no Berlitz, por exemplo – mas não desqualifica uma tentativa de encarar de frente a palavra e defini-la pelo que ela é, em todas as suas nuances. Quem quer que tenha acompanhado este Mascando clichê ao longo dessas vinte semanas – ou de algumas delas – deve curtir palavras, suas muitas camadas de sentido, e sabe do que estou falando. É o que eu tinha a dizer."

 

"Completude de ?a? a ?zzz?", copyright O Estado de S. Paulo, 8/09/01

"Quando lhe perguntaram que obra ele gostaria de ter escrito, Jorge Luis Borges (diz a lenda) respondeu: ?A décima primeira edição da Enciclopédia Britânica.? Mas ninguém ainda teve a idéia – bom, talvez o Borges sim – de escrever um dicionário como se escreve um romance. Ou um romance em forma de dicionário, inventando verbetes e aproveitando as definições para desenvolver um enredo, atribuindo exemplos do uso da palavra a personagens recorrentes. Tipo:

?falbetim s.m. objeto cônico usado em jogos amorosos, citado por Moura quando interpelou Celina no terraço depois da festa do Ademar (ver bizizi) e disse: ?Não minta! Vi o falbetim no quarto?, fazendo-a corar e…?

Um dicionário assim, inventado e com diálogos em seqüência, ficaria mais parecido com o Aurelião, pois o Houaiss não dá exemplos e não cita ninguém.

Mas, talvez para compensar a falta de literatura alheia, é mais rechechê (ver abaixo) do que o Aurelião, como na sua primeira definição de saudade:

?sentimento mais ou menos melancólico de incompletude? -, o que nos leva, claro, a uma busca frenética à letra I, na secreta e maldosa esperança de que não conste incompletude. Consta. Sei que já houve reclamações, mas incompletude é um sentimento que ninguém pode ter depois de folhear o Houaiss, ou apenas, como eu fiz, pular, criticamente, de a a zzz. Só pelo peso dá para ver que não falta nada.

Sim, de a a zzz. O último verbete do Houaiss – depois de zwingliano referente ao zwinglianismo pregado pelo suíço Ulrich Zwingli, que provavelmente também envolvia objetos cônicos (e é o último verbete do Aurelião, pelo menos da edição que eu tenho), zwitterion e zwitteriônico, termos da química, e z-zero (bóson neutro, felizmente) – é zzz, ?cujo emprego mais comum?, diz o Houaiss, ?é interjetivo, p. ex., em legendas de histórias em quadrinhos?.

Zzz está no novo dicionário porque é o ruído que as pessoas e os animais fazem nos quadrinhos quando estão dormindo. O que me fez procurar argh, ruído de irritação, bleargh, ruído de vômito, cof, cof, ruído de tosse, grrr, ruído de raiva, paft ou paf ou pof, ruídos de soco, também dos quadrinhos. Sem sucesso.

Bang, ruído de tiro ou explosão, tem, e o seu abrasileiramento bangue, e bangue-bangue como sinônimo de faroeste. Mas por que outras convenções interjetivas não tiveram a mesma consideração de zzz? Desconfio que os três zês entraram no fim de improviso e por charme, um pouco como garis sambando atrás da escola luxuosa que passou, e que acabam sendo a coisa mais memorável do desfile. Ou um toque final de simpática frivolidade para mostrar que os autores também têm senso de humor e que pode haver mais riso num dicionário do que o quá-quá-quá entre quapóia e quáquer. Ou apenas uma provocação com o principal concorrente, que jamais se lembraria de listar zzz como palavra. Uma brilhatura para deixar o Aurelião fazendo grrrr.

Mineirices – A comparação com uma escola de samba não é vestidão (ver abaixo). O Houaiss (cuja pronúncia certa, segundo o Joaquim Ferreira dos Santos, deve lembrar vários mineiros se espantando ao mesmo tempo) é um luxo. Capas, papel, projeto gráfico – tudo de primeiro grupo. Como deve ser, porque um dicionário é como uma constituição. Ao mesmo tempo, um guia prático do que pode e do que não pode, um livro de instruções para o entendimento social e a solenização da experiência comum de uma nação, no caso, a experiência da mesma língua.

Portanto, além da impressão de completude, um dicionário precisa dar uma impressão de monumentalidade. Mesmo que, como a constituição, ele também saia em versões de bolso e em CDs, precisa ter uma versão oficial com peso, durabilidade e grandiosidade – nada, enfim, para se ler na cama sem o risco de afundar o esterno. E o Houaiss tem esse aspecto solene de algo que chegou para ficar – ao contrário das constituições brasileiras, que têm a solenidade mas não têm a permanência.

Um dicionário tem outras coisas em comum com uma constituição.

Discute-se o que deve estar na constituição e o que deve ser regulado por fora, e é a mesma discussão sobre que palavras merecem ser ?oficializadas? num dicionário, ou quando um estrangeirismo, um neologismo ou uma gíria podem sair da clandestinidade e ser enquadrados nas leis da língua. A gíria, principalmente, é um problema. Encontrar uma gíria que caiu em desuso e continua no dicionário (como ?brasa? usado como elogio) provoca o mesmo sentimento mais ou menos melancólico de encontrar artigos na constituição brasileira como os que estabelecem o limite dos juros e o que um salário mínimo deve valer – o sentimento de brasilitude (ver abaixo).

Nos dicionários, como nas constituições, há coisas que a gente nem imagina que existam. E os dois estão cheios de regras inaplicáveis e palavras difíceis significando nada.

Eu preferiria tipos um pouco maiores, mas isso é porque os meus olhos – para ficar só nos órgãos da cabeça – não funcionam mais como antigamente. Mas está muito bonito o Houaissão. E devidamente monumental.

Poderia haver um Dicionário Reivindicativo da Língua Portuguesa, não com todas as palavras que existem, mas com palavras que não existem e deveriam existir. Como as que usei acima, rechechê (elaborado, prolixo, um pouco preciosista, como em zzz, disse Celina, comentanto o discurso rechechê do conde Álvaro), vestidão (gíria, significando descabido, inadequado, exagerado) e brasilitude (o mesmo que brasilidade, mas no mau sentido). E coisas como flanfo, que, se existisse, seria claramente o nome de sujeirinha no umbigo.

Fica a idéia, Feith."

 

"O pai nosso", copyright O Globo, 8/09/01

"No meu tempo, a gente o chamava de ?pai dos burros?, sem se dar conta de que burro era esse tempo, pois o dicionário sempre foi uma indispensável e esclarecedora companhia para qualquer homem inteligente. Mesmo nas redações de jornais de antigamente, ele era objeto raro: era preferível perguntar discretamente ao vizinho ?como se escreve perturbar?? do que passar a ?vergonha? de ser apanhado em plena consulta a quem de fato sabe o que diz.

Se agora os dicionários viraram motivo de disputa comercial e sonho de consumo, o fenômeno pode ser considerado um bom indício, sinal de inteligência dos leitores brasileiros, não de burrice. Temos deles pelo menos três monumentais exemplos: o ?Aurélio?, com 22 anos de existência, o ?Michaelis?, que se atualizou depois de 15 anos, e o ?Houaiss?, que acaba de ser lançado. Os dois primeiros já são best-sellers (só o Aurélio já vendeu 13 milhões de exemplares) e o terceiro está provocando uma corrida às livrarias. É ou não é um bom indício cultural?

A lexicógrafa Marina Baird Ferreira, viúva de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, acha que, se os dois amigos estivesse vivos, Houaiss e seu marido, não haveria essa ?guerra forjada? entre os dicionários que levam os seus nomes. Ela tem razão, mas em compensação, em vez de se ficar discutindo para saber quem é pior, se Garotinho ou Cesar Maia, Barbalho ou Maluf, pode-se assistir a essa saudável briga para saber qual é o melhor entre os nossos excelentes dicionários. Convenhamos que é mais edificante.

O dicionário é um objeto lúdico. Como as palavras têm vida – nascem, envelhecem e, ao contrário da gente, podem renascer – uma boa diversão intelectual é observar como elas crescem, se desenvolvem, desaparecem, voltam. Quando em 1992 Dodô Brandão estava filmando ?3 Antônios & 1 Jobim?, um documentário sobre Tom, Houaiss, Cândido e Callado, assisti a uma cena memorável.

Tanto quanto Houaiss, Tom adorava as palavras e freqüentava assiduamente os dicionários (orgulhava-se de sua coleção em português e inglês). Como se esperava, a conversa entre os quatro começou por etimologia, semântica, lexicografia, radicais de nomes etc. Foi quando o compositor resolveu contar a história de alguém que na churrascaria Plataforma (certamente ele mesmo) queria provar a origem da língua portuguesa. O relato foi um show hilário de erudição vocabular:

?E rodava mais um chope?, Tom começou. ?E cada um tinha que dizer uma palavra de origem árabe: álgebra, alfarrábio, alcachofra, alcaparra, alcova, almofada, alcaide, almoxarifado, almoço, armazém, agulha, algibeira, alface, alfafa… E o negócio ia correndo bem, o chope era muito, o cara não estava agüentando mais… E tome chope, tome chope, então ele disse: ?com licença, eu vou al banheiro?.?

Houaiss ficou impressionado porque, segundo ele, Tom não errou uma só palavra, e elas saíram sem hesitação. Aliás, foi nessa entrevista que o nosso lexicógrafo se definiu, a si e à obra que já vinha desenvolvendo e que era sua paixão: ?Sou um operário da palavra, aquele que pega os tijolinhos e constrói o edifício que se chama dicionário.?

Além de edifício, o dicionário é também uma espécie de mapa vocabular do tempo. Pela posição de uma palavra num verbete, pelo espaço que ocupa, pelo destaque que recebe, pode-se deduzir como o mundo e as coisas mudaram. Possuo o último ?Aurélio?, o ?Houaiss? e uma edição do ?Michaelis?, de 1987, bem antiguinha. Comparar como certos termos se comportam em um ou outro dicionário ajuda a entender a época.

Tome-se, por exemplo, uma das palavras que mais metem medo hoje, pois dá nome a um dos piores flagelos de nosso tempo: síndrome. No meu exemplar de 14 anos atrás, ela ocupava não mais que duas linhas: ?Conjunto de sintomas que se apresentam numa doença e que a caracterizam?. Era isso e não mais que isso.

Hoje, ?Síndrome? ocupa 73 linhas no ?Aurélio? e 97 no ?Houaiss?. O mais sintomático não é nem a extensão, mas a variedade do conteúdo. Além da Síndrome de imunodeficiência adquirida (a Sida, como se diz em Portugal e na França, ou Aids, como é conhecida aqui e nos países anglo-saxões), aparece no ?Houaiss? uma diversidade assustadora dessas patologias. Há mais de dez para atormentar o homem moderno: de Estocolmo, Down, angústia respiratória, Adams Stokes, pânico, adaptação.

Nessa categoria de palavras que metem medo, há ainda outras, como vírus, seqüela, overdose, tráfico, tsuname, maligno, vaca louca, que são também sinais do tempo. ?Bala perdida?, por exemplo, não aparece no ?Aurélio?, mas já é uma acepção no ?Houaiss?. Nas próxima edições, corre-se o risco de que a expressão seja incorporada como mais uma síndrome."

    
    
                     

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