LÍNGUA PORTUGUESA
“Quem inputou que desinpute”, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 3/11/03
“Quando ouvi aquilo pela primeira vez, achei que era só uma excentricidade. Mas a primeira vez deu lugar à segunda, a segunda à terceira, sempre com falantes diferentes. A quarta ocorrência me encontrou preparado: claro, claro, demos agora para conjugar o verbo ?inputar?, estrangeirismo formado de modo regular pela junção do inglês ?input? (o ato de enfiar, de pôr para dentro, ou aquilo que se põe para dentro) com o sufixo ?ar?. Parente, já se vê, de ?deletar?, ?printar?, ?ressetar? e outras ações realizadas diante de uma tela e um teclado. Paciência. Macaco velho não inputa a mão em cumbuca e sabe que, se o Vale do Silício ficasse em Jacarta, importaríamos nossas palavras do javanês.
O problema é que passou o espanto inicial e o diabo do ?inputar? continuou incômodo, resistente a todas as argumentações lingüisticamente avançadas sobre estrangeirismos. Passada a décima audição, ainda está atravessado na garganta. A necessidade de sua criação simplesmente não se me inputa na cabeça. Sim, eu sei que as línguas, organismos vorazes, sempre fizeram valer aquele dito popular: o que não mata, engorda. Sei também que o estrangeirismo de ontem é o vernáculo de hoje, basta lembrar que na virada do século 19 para o 20 sofremos do francês um bombardeio semelhante ao que agora nos chega do idioma de Bill Gates. Graças a ele nossas casas se encheram de abajures, ora veja, viva o progresso.
Por fim, sei também que a imagem de uma língua portuguesa acamada, lívida e dodói como uma donzela romântica, e portanto necessitada da proteção de um cavaleiro quixotesco com seu elixir antiestrangeirismo, é um absurdo que só se explica pelo misto de ingenuidade e demagogia que cerca o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo (projeto que, de comissão em comissão, caminha para uma aprovação apoteótica em Brasília). No entanto, se sei de tudo isso, por que ?inputar? se recusa a tomar assento na língua do dia-a-dia como ?deletar?, seu primo enturmadinho?
Alguns diriam que é porque ?deletar? tem antepassados nobres. Certa vez fui chamá-lo de estrangeirismo – o que de fato é – e despertei ondas de indignação. Vários leitores me escreveram dizendo que está tudo em casa porque o verbo ?to delete?, em inglês, vem do latim ?deletum?, forma nominal de ?delere?. Os leitores estão certos, mas e daí? Desde quando ancestrais comuns deletam a estrangeirice dos estrangeirismos? Em português, ?delere? veio a se tornar ?delir?, que, além de pouco usado, não dá conta do sentido informático de ?deletar?. E é exatamente este sentido que o torna um forte candidato à perpetuação em nosso vocabulário. Quem deleta não apaga simplesmente – apaga no computador. O significado é mais preciso, e a precisão costuma vencer.
Apliquemos então o teste da precisão: haverá alguma em ?inputar?? ?Input? é um vocábulo de diversos usos em inglês. No sentido econômico refere-se àquelas coisas, como dinheiro e trabalho, que metemos num negócio para que ele funcione – e costuma ser traduzido por ?investimento?. No sentido fabril tem a ver com matérias-primas, e a necessidade de um equivalente nacional levou à cunhagem do neologismo ?insumo?, que foi parar no Aurélio em 1975 e hoje está consagrado. No sentido informático, ?input? é a informação com que se alimenta um computador. Para passar tal idéia, usamos duas soluções: quando ação, a expressão ?entrar com (os dados)?; quando substantivo, ?informação? mesmo.
Vê-se, portanto, que precisão não é o forte de ?inputar?. A elegância eu nem comento. Falta falar apenas do problema ortográfico, que os mais perspicazes já terão observado: o espírito do português se contorce todo diante dessa grafia, com o ene antes do pê. Se vingasse em nossa língua, é bastante provável que ?inputar? acabasse transformado em ?imputar?, com eme – verbo já existente, como se sabe, e de largo emprego jurídico com o sentido de ?atribuir responsabilidade?.
Deve ser por uma mistura de tudo isso que ?inputar? se recusa a soar bem. É um estrangeirismo que carece de nexo sob todos os aspectos, exceto, talvez, o da subserviência macaqueira ao idioma mais forte. Mesmo sabendo que desse modo inputo em minha crônica os riscos da futurologia, ouso prever vida curta à novidade. Com ou sem a interferência de Aldo Rebelo. A lei que a condena, velha de séculos, nunca precisou ser escrita.”
“Palavras Que Machucam E Divertem”, copyright Jornal do Brasil, 3/11/03
“Um delegado do Piauí queria saber se o governador o chamara de ?abestalhado? ou de ?abestado?. Governava aquele Estado o hoje senador Francisco de Assis de Moraes Souza, o Mão Santa, um dos mais folclóricos da Casa. O delegado procurava sutis diferenças entre as duas qualificações. Seu propósito era claro: ?quero saber qual dos dois dói menos?.
Questões assim transcendentais são corriqueiras em todo o Brasil. Temos um desesperado amor por nossa língua e manifestamos admiração por quem sabe falar e escrever corretamente. Ou de um modo que o povo considera correto. Provavelmente a fama e os votos de Jânio Quadros devem muito a seu português insólito, porém escorreito.
Outro político muito célebre, João Neves da Fontoura, ao elogiar alguém, creditou-lhe ?linguagem escorreita e fluente? e ?lógica inamolgável?. Inamolgável é o que não se pode amolgar, amolecer. Amolgar veio do latim ?admollicarre?, tornar ?mollis?, mole. Daí a qualificação de molenga, dirigida a pessoa sem energia, preguiçosa, indolente.
Quando o capitão Wilson Machado e o sargento Guilherme Rosário, oficiais do Exército, levaram uma bomba para explodir no Riocentro, em abril de 1981, coube ao coronel Job Lorena de Sant?Anna fazer o relatório do incidente, que resultou na morte do sargento, em cujo colo a bomba estourou, e em ferimentos no capitão. O relatório foi uma farsa, mas como o Sant?Anna utilizara o verbo ?empolgar?, vários jornalistas caíram na armadilha e, deixando um pouco de lado a gravidade do que ali houvera, passaram a discorrer sobre o significado de ?empolgar?.
Empolgar e empolgação remetem a declinações do latim ?pollex?, polegar, indicando, entre outros, o exercício do poder. Sem o polegar, como agarrar?
O coronel utilizara o vocábulo no sentido de tomar com as mãos. E não com o significado costumeiro de entusiasmar-se, como o Jornal do Brasil registraria em 13 de novembro de 1986: ?a rápida chuvarada que caiu… só fez aumentar a empolgação, e guarda-chuvas abertos ensaiaram um frevo?. Na campanha de 2002, o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou o Riocentro como metáfora, advertindo o então presidente Fernando Henrique Cardoso para não creditar a crise às eleições ?porque isso poderia ter o efeito da bomba do Riocentro, poderia estourar no colo do próprio Governo?.
O Aurélio não registra abestado. Registra apenas abestalhado. O Houaiss consigna os dois e tira a dúvida do comissário que se julgou ofendido, mas queria saber qual das duas formas fazia estrago maior. Abestalhado pode ter o significado de admirado. Abestado limita-se a comparar o ofendido a uma besta.
Abestalhados devem ter ficado os colegas senadores quando Mão Santa declarou que o ?Brasil é grandão porque o povo do Piauí expulsou o interventor português?. Referia-se o senador à Batalha de Jenipapo, travada no dia 13 de março de 1823, por ocasião da guerra entre portugueses e brasileiros pela Independência. E o Ceará foi parar na variação dialetal que nossa língua apresenta no Piauí, que é a expressão ?ai vai?, indicando admiração. Está abonada na Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês, de Paulo José da Cunha, ex-repórter do Jornal do Brasil, ?o único piauiense com certificado de garantia?, segundo o escritor, também de lá, Cineas Santos. ?É uma exclamação de surpresa. Ai vai, menina! Quer dizer que ?Iracema? do José de Alencar era piauiense? Era sim, tá lá no romance: ?além, muito além daquela serra nasceu Iracema…?A serra é a da Ibiapaba, que separa o Ceará do Piauí. Além, muito além daquela serra é o Piauí…?.
E jóia rara, que na Bahia e no Rio indica pessoa ou coisa de alto valor, no Piauí é sinônimo de tratante, trambiqueiro.”