ECOS DO NAZISMO
Alberto Dines
O Supremo Tribunal Federal vai continuar na quinta-feira, 26/6 (com transmissão ao vivo pela TV Justiça), o julgamento do editor gaúcho Siegfried Ellwanger acusado de promover o racismo com os seus livros de propaganda nazista, abertamente anti-semita. É um caso da maior importância que firmará jurisprudência aqui e no exterior e, por isso, interrompido duas vezes (dezembro de 2002 e abril de 2003).
Já condenado em duas instâncias, Ellwanger defende-se com um sofisma que precisa ser desmascarado sob pena de consagrar uma aberração moral e jurídica: como é consensual que os judeus não constituem uma raça sob o ponto de vista morfológico, a intensa atividade anti-semita do editor não fere os preceitos constitucionais que proíbem a promoção do racismo e, portanto, não constitui crime.
A tese foi acolhida pelo relator, ministro Moreira Alves (o último juiz do STF indicado pela ditadura), que aposentou-se em abril. O presidente Lula indicou para substituí-lo o jurista negro Joaquim Benedito Barbosa Gomes, que na sabatina no Senado, instado a manifestar-se, declinou por tratar-se de caso ainda não encerrado. Mas deu claros sinais de que é favorável à criminalização desta forma de preconceito.
O novo magistrado estará impedido de votar porque o seu antecessor já havia votado neste caso, mas seus dois novos colegas farão sua estréia na histórica sessão. O ministro Maurício Corrêa, que pediu vistas ao processo no ano passado e, na sessão de abril, proferiu um voto considerado antológico contra as alegações do editor Ellwanger é agora o presidente da corte suprema.
Para jornalistas e comunicadores é importante registrar
que não está em discussão a liberdade de expressão
mas o teor do que foi expresso. A difusão do preconceito
religioso, cultural e étnico é tão danosa quanto
o preconceito racial proibido pela Constituição.
A criminalização do anti-semitismo é um dos aspectos do julgamento de quinta-feira. O que está em jogo é a erradicação total dos remanescentes do nazismo em nosso país. Junto com ela, a consagração da unicidade da raça humana.
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ASPAS
“Guerra e símbolos” [excerto], copyright Jornal do Brasil, 12/4/03
“O comportamento do ministro Moreira Alves no julgamento do editor nazista no STF, quarta-passada, não chega a surpreender. A inusitada agressão ao futuro presidente da suprema corte, Maurício Corrêa, acusando-o de utilizar pareceres de outros juristas, não pode ser debitada a um momentâneo mau-humor ou desespero diante de um fiasco iminente. A citação de pareceres nas altas instâncias do judiciário é universal, necessária, porque agrega juízos em questões que deverão firmar jurisprudência. Mas ao mencionar apenas o parecer do professor Celso Lafer (que é judeu), ignorando um parecer ainda mais extenso do ex-Ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, o quase-ex-magistrado Moreira Alves não apenas explicitou os perigos do preconceito racial como deu um colorido muito especial ao currículo do ministro remanescente da ditadura militar.”
“O STF e o racismo”, copyright Folha de S.Paulo, 8/6/2003
“Eram os idos de 1993, em Viena, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos. O ministro da Justiça, Maurício Corrêa, foi um chefe de delegação pró-ativo: todo dia havia briefings com 30 organizações da sociedade brasileira, em todo o espectro dos grupos vulneráveis, dos indígenas aos homossexuais e lideranças da oposição. Não eram conversas alcatifadas com ministro, em que não se diz nada, mas discussões francas.
Foi em Viena que se forjou o grande diálogo que o ministro se comprometera a realizar com a sociedade civil. Geralmente, promessa de ministro só engaja seus interlocutores, mas, mal chegou a Brasília, ele convocou uma grande reunião entre governo e sociedade civil para a preparação de uma vasta agenda de luta contra a violência e de aprimoramento do Estado de Direito. Nas propostas está quase tudo o que veio depois, como o Programa Nacional de Direitos Humanos, as ouvidorias das polícias, o Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas, a luta contra o trabalho infantil, os direitos dos homossexuais, a luta contra o racismo.
Por que essa volta à memória? Maurício Corrêa chega à presidência do STF (Supremo Tribunal Federal) e renovam-se as esperanças do engajamento decisivo desse tribunal na luta pelos direitos humanos. Entre os desafios-chave está um caso exemplar. Faz alguns anos, visitei Gramado. Fiquei perplexo ao ver, sendo vendida livremente em quiosques na praça central, uma enorme série de publicações anti-semitas e negacionistas do Holocausto, às escâncaras, junto com outros livros. Entre os que distribuem esses livros está o sr. Siegfried Ellwanger, proprietário da editora Revisão, que edita essas obras, da sua própria lavra e de terceiros.
Por isso foi condenado, pela prática de racismo, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul _sentença mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, agora em reexame pelo STF em um julgamento de habeas corpus. A defesa tem a expectativa de que o crime de racismo não alcance toda e qualquer forma de discriminação, não devendo merecer interpretação de racismo. Como os judeus não seriam uma raça, o condenado não poderia ser acusado por crime de racismo, assim seu crime estaria já prescrito.
Está mais do que claro, como lembrou Maurício Corrêa em seu voto, que a propagação de teorias anti-semitas nos livros publicados pelo réu disseminam idéias que, se executadas, constituirão sério risco para a convivência com a comunidade judaica no Brasil. A conduta do acusado, ao negar o Holocausto e ao imputar aos judeus a responsabilidade pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, incide em prática de racismo. E, portanto, imprescritível, muito bem definida na nossa na Constituição.
É inaceitável que, a essa altura da consolidação da democracia, pretenda-se reduzir o alcance do texto constitucional na definição de racismo, o que seria inadmissível na interpretação dos direitos e garantias individuais, como afirma Celso Lafer em seu parecer sobre esse caso. O conteúdo jurídico do crime da prática de racismo tem o seu núcleo nas teorias e ideologias e na sua divulgação, que discriminam grupos e pessoas, a elas atribuindo a marca de uma ?raça? inferior. Como afirmou em seu voto o ministro Celso de Mello, só existe uma raça, a espécie humana. E aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, movido por razões de cunho racista, ofende a dignidade de todos e de cada um.
A decisão desse julgamento tem um significado que vai muito além de punir um editor e seu crime de racismo. O que está em causa é a capacidade do Estado brasileiro de fazer valer a proteção constitucional dos direitos das minorias. Além do racismo arraigado contra os afrodescendentes, a decisão do STF, se seguir a clara indicação de Maurício Corrêa, diz respeito ao enfrentamento de outras formas de discriminação sistemática, de que também são alvo os homossexuais, os povos indígenas e as mulheres. Se não prevalecerem as teses da defesa, haverá alguma esperança para que se supere em nosso país a estigmatização e a discriminação contra os pobres, os portadores de deficiência física ou mental, os idosos.
Resta esperar que a chegada de Maurício Corrêa seja marcada com uma vitória contra o racismo e que sua presença à frente do Supremo seja tão promissora como sua participação em Viena, abrindo o debate da reforma do Judiciário à sociedade civil. Fazendo aprofundar a noção de que segurança pública para os cidadãos não significa continuidade da discriminação dos sem-poder e afrodescendentes, manutenção da tortura, execuções sumárias pelas polícias. E que a melhor proteção dos cidadãos está na defesa intransigente, pelo Judiciário, de um Estado de Direito que prevaleça para todos. [Paulo Sérgio Pinheiro, 59, professor visitante de relações internacionais na Universidade de Brown (EUA) e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, é expert independente sobre violência contra as crianças na ONU. Foi secretário de Estado dos Direitos Humanos do governo Fernando Henrique]”