Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Suspender ou adiar é o mesmo que censurar?

DOSSIÊ PERFÍDIA

No texto "Fui manchete do Globo ", reproduzido abaixo, este Observador refere-se ao caso ocorrido em 14 de dezembro de 1968, um dia depois do AI-5, quando a direção do Jornal do Brasil decidiu não circular a edição seguinte como protesto pela ordem de prisão ao diretor do jornal. Estava censurando (repórteres, redatores, editores e colaboradores) ou denunciando uma situação de constrangimento?

Quando no fim de janeiro de 1998 o semanário Newsweek suspendeu a matéria de capa sobre o affaire Monica Lewinsky, explicando que ainda não possuía os requisitos indispensáveis, estava censurando o repórter que iniciou as investigações? Claro que não: a direção simplesmente não sentia-se suficientemente informada e tranqüila para tornar público aquele escândalo. Coisa que fez na semana seguinte [clique aqui para ir ao OI de 5/2/98].

Em 10 de fevereiro último, os jornais do mundo inteiro (inclusive daqui)
noticiaram a celeuma na Alemanha em torno do livro A indústria do
Holocausto
. No noticiário está mencionado que dias antes (5/2),
a TV alemã (estatal) suspendeu a exibição
de um documentário sobre o assunto considerando que poderia criar perigosos
mal-entendidos. A autorização para exibir o documentário
devidamente editado foi dada no dia 9. Nenhum veículo
alemão ou internacional considerou o cancelamento ou suspensão
como censura ao documentário, ao livro ou seu autor
. (A.D.)

 

Fui manchete do Globo!

Alberto Dines

Até agora não consigo atinar por que o responsável pela edição da última quinta do vibrante ex-vespertino brindou-me com tamanho destaque. Seis colunas com o meu nome, como se eu pertencesse ao mundo das telenovelas ou fosse amigo da Xuxa, puxa, é generosidade demais. E numa página política no momento em que o país está convertido numa liça onde um senador acusado de corrupto e um senador acusado de toda sorte de violências enfrentam-se numa briga de morte. É demais para tão modesto personagem.

No entanto, minha primeira reação – perdoem a fraqueza – foi considerar-me merecedor da honraria. Afinal, há uma semana eu denunciara no site Observatório da Imprensa, com enorme destaque e profusão de detalhes, o complô da mídia para abafar a repercussão do livro Memórias das Trevas – Uma Devassa na Vida de Antonio Carlos Magalhães, de João Carlos Teixeira Gomes, o Joca. Mas não, o editor de plantão naquela noite queria pimenta. Talvez pelo verão inclemente, insuficiência do bônus de fim do ano, gastrite, dor de cotovelo ou simples vendeta – esse motor implacável dos critérios jornalísticos -, o responsável pela edição do jornal armou uma manchete para acusar-me de ter censurado na TVE um autor que eu (com a inestimável ajuda da IstoÉ), uma semana antes, havia tirado das malhas de um concatenado boicote.

Durou pouco a gangorra de sentimentos: dia seguinte, ontem, sexta-feira, O Globo publicou extensa e cuidada entrevista, 16 linhas maior do que a matéria do dia anterior, na mesma página oito, com menos destaque porém muito mais amor à verdade. Esse jornal sabe ser fidalgo mas, no caso, reparava uma tremenda injustiça e uma premeditada perfídia que se estendia da tal manchete à última linha do texto.

Para o leitor não familiarizado com o universo e a praxis mediática brasileira, algumas informações adicionais: o Observatório da Imprensa é um projeto que está completando cinco anos e desdobra-se em dois veículos – um site no portal iG (www.teste.observatoriodaimprensa.com.br) e um programa de televisão transmitido pela rede da TVE e TV Cultura de São Paulo com o mesmo nome. Seguindo os procedimentos, uma semana depois de denunciar no site a tal conspiração de silêncio, armamos um programa – o primeiro depois das reprises de verão – com o mesmo tema e tendo como convidado a própria vítima do boicote, o Joca.

Acontece que o site não tem dono, gerido por um colegiado de jornalistas, aberto a qualquer cidadão desde que identificado e disposto a discutir o desempenho da mídia. Teoricamente livres, apesar da "’demissão’" recente do UOL pelo fato de comentarmos a venda de parte de seu controle a acionistas estrangeiros.

Mas a TVE tem dono, é do governo federal, embora o projeto em curso seja convertê-la em rede pública. O Executivo paga e manda, ao contrário da TV Cultura, onde o governo paulista paga mas não manda, como Mário Covas não se cansa de repetir com aquela maneira abrupta e engraçada de dizer as coisas. E o governo federal vive uma crise política protagonizada justamente pelo senador ACM (teoricamente aliado e, portanto, "sócio" da TVE). Acresce que dos nove comentaristas políticos convidados para participar do programa, apenas um aceitou, Tales Faria, da IstoÉ em Brasília, ele mesmo uma vítima das perseguições de ACM. Os outros oito recusaram sob os mais variados pretextos, o que evidentemente eliminaria qualquer possibilidade de isenção com uma saraivada de críticas ao senador durante uma hora de programa. Críticas, diga-se, não apenas à sua truculência mas à profícua convivência com empresas jornalísticas e jornalistas.

Acresce ainda que o programa coincidiria com o início da gestão do novo presidente da TVE, o jornalista Fernando Barbosa Lima, uma das grandes figuras do telejornalismo brasileiro, um dos poucos – talvez o único – capazes de tirar a televisão educativa da crise em que se encontra. Mais: a TVE da Bahia (um feudo do senador ACM) ao longo daquela terça-feira deu sucessivos indícios de que não retransmitiria o Observatório, criando um "imbróglio" político que respingaria no presidente recém-empossado.

Diante disso, decidi não levar o programa ao ar. E para não configurar-se como ato censório ou autocensório, suspendi as apresentações televisivas do Observatório até que se criassem as condições de tranqüilidade indispensáveis à continuação do projeto, conforme os termos do comunicado inserido em nosso site no horário do programa. Comunicado esse que a diligente repórter-robô, os competentes editores que a pautaram e os responsabilíssimos profissionais que produziram a manchete exemplar não se deram ao trabalho de consultar. Como também não se deram ao trabalho de, ao entrevistar-me três vezes em menos de uma hora, atender ao comezinho dever de mostrar ao acusado o nome do acusador e o teor da acusação.

Agora respondam: quando o Jornal do Brasil naquele terrível sábado 14 de dezembro de 1968, um dia depois da promulgação do AI-5, diante da ordem de prisão do seu diretor, o embaixador José Sette Câmara, decidiu suspender a edição seguinte, estava censurando os seus repórteres, redatores, editores e colaboradores (como Alceu Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Castello Branco) ou lavrava um protesto?

O verdadeiro censor precisa do silêncio para que o leitor não perceba a manipulação que sofre. Ora, se o adiamento de um programa faz-se com enorme estardalhaço isso é censura ou denúncia?

A verdade é que O Globo e a Folha de S.Paulo (para citar os casos mais aberrantes), ainda não purgaram ou expurgaram suas culpas em matéria de autoritarismo ou cumplicidade com os censores. O Grupo Globo, como o Juquinha da piada, tem uma fixação arrevesada que Freud explica: tacha de censura qualquer tentativa de defesa da sociedade contra a degradação televisiva. E assim esqueceu o próprio silêncio que durante 15 dias impôs aos seus editores e colunistas no tocante ao livro sobre ACM.

Isso passa: a notoriedade a que me condenaram durante algumas horas e, depois, corrigiram com a elegante matéria-errata, teve o mérito de revelar que alguma coisa está mudando nas entranhas e alma do gigante (Continua).

(*) Copyright Jornal do Brasil, 10/2/01

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