Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tambores da guerra vs. cultura da paz

BELICISMO & PACIFISMO

Alberto Dines

Há três semanas, aos sábados,
mais gente vai às ruas do mundo para manifestar-se contra
a guerra no Iraque. No entanto, a guerra foi iniciada há
quase uma semana, está cada vez mais encarniçada
e, a cada dia, aumenta o apoio interno aos governos beligerantes.

Alguma coisa está errada com a pregação
a favor da paz. Uma causa humanitária, teoricamente inquestionável,
apesar da intensa mobilização não está
conseguindo os resultados esperados.

** Hipótese: os pacifistas teriam esquecido de priorizar o pré-requisito da não-violência. Algumas manifestações são extremamente agressivas e confrontam princípios elementares da doutrina antibelicista.

** Hipótese: os pacifistas esqueceram que o pacifismo compreende neutralidade absoluta.

** Hipótese: as passeatas transformaram-se em happenings narcisistas. Acabada a manifestação, os manifestantes vão encarar os últimos combates no monitor de TV.

Não adianta culpar a imprensa nem procurar conspirações. Parte da mídia americana pode estar envergando o uniforme de combate mas outra parte, talvez a de maior prestígio, não está. Prova irrefutável são as grandes manifestações pacifistas em Nova York, Chicago e San Francisco.

A grande imprensa inglesa, sobretudo a BBC, está fazendo uma cobertura competente e equilibrada. E, no entanto, a opinião pública está firme no seu apoio à coalizão com os EUA.

O caso do Brasil é exemplar: a imprensa brasileira comporta-se de forma correta apesar dos vícios habituais de caráter técnico (a fragmentação do noticiário, por exemplo). Tem sido generosa a cobertura das manifestações pacifistas, mas as que acontecem no Brasil estão longe de impressionar em matéria de números. Resultado: a reação do governo brasileiro ao ataque anglo-americano foi apenas discreta.

A terrível verdade &eacuteacute; que a lógica da guerra impôs-se ao espírito da paz. As novas tecnologias de comunicação (sobretudo os videofones e as câmeras digitais) trazem os combates para dentro das casas, ao vivo, em cores, com todos os sons, gritos e ordens.

Esta lógica da guerra leva os pacifistas mais sensíveis, preocupados com a questão humanitária, a desejar uma guerra breve. Não se dão conta de que, com isso, apostam na capitulação do Iraque e/ou sua devastação. Os pacifistas mais engajados politicamente esperam que a resistência iraquiana (depois da exibição de soldados aprisionados ou mortos) consiga desmoralizar o comando americano. Não se dão conta que apostam na exacerbação da fúria.

Nunca é demais repetir que o pacifismo é antitriunfalista por natureza. Este é um compromisso e um ônus que nem todos os pacifistas percebem.

Os esquemas políticos que se confrontam nesta guerra podem ter bases institucionais diferentes mas são rigorosamente iguais nas convicções: são totalitários e fanatizados. Desgraçadamente, esta percepção escapa a um grande número de opinionistas. Sobretudo os nacionais. E aqui pode estar escondida uma das falhas da pregação pacifista: está apelando para a violência. Verbal por enquanto, em algum momento poderá alimentar outra, efetiva.

Se uma famosa cronista da Folha proclama que jamais tomará Coca-Cola em represália ao unilateralismo de Bush só pode ser aplaudida: o nosso guaraná, sem dúvidas, é muito melhor (domingo, 23/3, chamada na Primeira Página).

Preocupante é quando um comentarista político com lugar cativo há anos na página de opinião do mesmo jornal escreve o seguinte:


"…O cidadão comum dos Estados Unidos tem a cultura específica da luta, da violência. Não por acaso, o único gênero que o norte-americano criou no cinema foi faroeste, a briga entre o mocinho e o bandido…" etc. etc. (sábado, 22/3, pág. 2)


Abstraindo a desinformação no tocante à história do cinema, o imortal escritor está dizendo que o povo americano, o conjunto de "cidadãos comuns", é tão violento quanto Bush. Assim como o "cidadão comum" do Iraque não pode ser generalizado e estigmatizado como clone de Saddam, assim também o "cidadão comum" ianque que come um sanduíche na lanchonete enquanto assiste pela CNN às imagens dos bombardeio de Bagdá não pode ser visto de forma tão totalitária e injusta.

Como em todo momento de grande comoção, está em vigor o marketing da indignação ? por meio do qual aqueles que têm pouco a dizer ou preguiça de elaborar reflexões apelam para a vociferação simplista e reducionista. A leitura da seção de cartas dos jornais mostra que o "cidadão comum" brasileiro é, às vezes, mais sofisticado do que alguns que são pagos para esclarecê-lo.

Por mais detestável que seja a trupe de Bush, o antiamericanismo é tão condenável como o antifrancesismo, o antigermanismo, antiarabismo ou antijudaísmo. São manifestações preconceituosas e racistas (lato sensu) que, em situações de paroxismo como a de agora, podem produzir resultados extremamente perigosos. Convém não esquecer que apesar da celebrada cordialidade brasileira, em 1942, quando os nazistas afundaram navios brasileiros, turbas excitadas pelos jornais lincharam até a morte cidadãos alemães que aqui viviam pacata e legalmente.

Os EUA não prestam, a imprensa americana é uma droga, então vale tudo. Este tipo de raciocínio de terra arrasada, hoje bastante freqüente em certos bolsões do jornalismo pátrio, não estimula a capacidade de reflexão. Um pacifismo montado com este tipo de ingrediente sujeita-se a ser confundido com belicismo.

Nestes mesmos bolsões da imprensa nota-se uma visível complacência com o regime de Saddam Hussein. Na medida em que o ditador iraquiano consegue encarnar o antiamericanismo seus crimes são paulatinamente esvaziados e enfiados debaixo do tapete.

Elio Gaspari denunciou no último domingo (23/3, Globo, Folha e Zero Hora) um preocupante episódio de "branqueamento" do ditador no Congresso brasileiro na última semana. Quando o embaixador de Bagdá em Brasília foi à sessão conjunta das comissões de Relações Exteriores da Câmara e do Senado, os representantes do povo brasileiro deram a entender que o regime de Bagdá é legítimo, generoso, decente. Nada lhe foi perguntado sobre direitos humanos em seu país. Além da monumental ignorância em matéria internacional, nossos legisladores desvendaram algo ainda mais grave: esta ignorância resulta das publicações que fazem as suas cabeças.

Na cultura da paz embute-se a noção da catástrofe iminente. O pacifista pode pintar a cara, mostrar o bumbum, carregar pôsteres, entoar cantos ou preces. Mas não pode dispensar a peça principal do seu equipamento espiritual: o senso trágico. [Texto finalizado em 25/3, às 10h]