TIM LOPES (1951-2002)
Nelson Hoineff (*)
Todas as homenagens serão agora prestadas a Tim Lopes. Lugares-comuns serão gerados de todo o Brasil, cartas impregnadas de pieguice serão lidas em muitas igrejas, estranhas correntes pela paz juntarão gente de branco, de mãos dadas, nos principais pontos turísticos das cidades.
Mas seria bom que em meio ao oba-oba que se aproxima, as questões essenciais não fossem desprezadas. E são muitas. Algumas derivam até do bombardeio que, ainda desaparecido, Tim e a Globo já vinham sofrendo e que talvez possam ser relacionadas de maneira objetiva.
1. O que Tim praticava era telejornalismo investigativo sim, e dos bons.
2. A Globo, como as pouquíssimas redes que encorajam esse tipo de jornalismo, não o impõe ao repórter; simplesmente dá condições para que jornalistas que honram a profissão (e não se contentam em reescrever releases e entrevistar autoridades) possam realizá-lo.
3. Há muito tempo o tráfico vem ameaçando jornalistas. Cristina Guimarães, hoje foragida da justiça dos bandidos, é apenas um caso entre muitos que se conhece dentro das redações.
4. O poder da bandidagem é crescente em quase todas as cidades brasileiras. Em algumas delas, supera amplamente o poder institucional ? e chega a ter nele um aliado. Esse poder está simplesmente fora de controle. A polícia, mesmo que quisesse, já não teria condições mínimas de enfrentá-lo. As forças armadas perderam o momento da ação e a única forma de enfrentamento, hoje, seria através de ataques aéreos ? o que está fora de cogitação, já que as perdas civis seriam absurdas. O Brasil corre mais do que o risco de se tornar uma Colômbia ? na prática, já se tornou há muito tempo.
5. Cada sociedade lida com questões políticas e sociais específicas, que são diferentes nos Estados Unidos, em Israel ou no Afeganistão. Uma das maiores questões sociopolíticas brasileiras é a sedimentação do poder paralelo ? seja dos bandidos que se escondem na Vila Cruzeiro ou que desfilam em Brasília. Com a falência gritante das instituições e o clamor das populações por alguma forma de defesa, o jornalismo investigativo da televisão assumiu este papel, não importa se gostando disso ou não.
6. Comparar esse tipo de jornalismo a programas sensacionalistas que fabricam notícias banais, caçam pobres-coitados ou cobrem pequenos incêndios em galpões vazios por horas a fio é um insulto aos jornalistas que estão autenticamente arriscando suas vidas para manter traços de cidadania nas populações. Compará-lo a reality shows, então, revela desconhecimento não só da prática do telejornalismo de investigação como da produção destes programas ficcionais estúpidos, travestidos de algum caráter documental.
Dito isso, é importante lembrar que dez anos atrás a televisão brasileira assumia calmamente sua postura oficialista como se nenhuma outra possibilidade lhe restasse ? e nenhuma responsabilidade social lhe coubesse. Essa situação, que inclui a relação promíscua com as fontes que pouco antes também era praticada com normalidade no jornalismo impresso, tem mudado lentamente ? mas tem.
Instituições em colapso
Se excetuarmos o jornalismo de opinião de grandes profissionais como Boris Casoy e alguns outros, é hoje a Globo ? que durante tanto tempo praticou um jornalismo nefasto e escamoteou as grandes questões sociais ? quem está na dianteira, simplesmente porque dá condições a alguns dos bons jornalistas que tem de produzir as investigações necessárias às grandes matérias. Matérias que estão cumprindo o papel de amparar uma população abandonada pelo Estado, que tem o dever constitucional de protegê-las.
É circunstancial o fato de que muitas dessas matérias envolvam a bandidagem que controla o tráfico nas favelas. Se isso acontece é porque essa é uma das questões sociais mais graves e visíveis do país. O Brasil não está em guerra com nenhuma outra nação ? portanto, relatos do que está acontecendo no Oriente Médio ou no Afeganistão, ainda que muito importantes, cumprem meramente um papel informativo. Já denúncias sobre a organização de um poder que virtualmente tomou toda a população brasileira como refém constituem um serviço prioritário e insubstituível.
Além disso, deve-se observar que o exercício investigativo na televisão brasileira não tem se limitado às favelas. Ele tem denunciado ? e provado ? a corrupção de políticos, juízes e empresários, seja em São Paulo, em São Gonçalo ou em Brasília. A utilização de microcâmeras é tão parte da organização narrativa dessas reportagens quanto a utilização de equipamentos de replay instantâneo o é para a transmissão de um jogo de futebol.
Na sua esmagadora maioria, a televisão aberta brasileira ainda é servil tanto às instâncias mais ínfimas do poder (o que dizer poder da intimidação) quanto aos patrocinadores, inclusive à permuta da churrascaria da esquina. Não aposta na ousadia porque o servilismo é simplesmente uma das formas de manifestação da sua acomodação a situações que ela simplesmente reconhece ? porque acredita sinceramente que não lhe cabe discuti-las e muito menos confrontá-las.
É assim que a televisão estimula ? ao invés de combater ? anacronismos como o gradual emburrecimento da população, que passa pelo não reconhecimento, pelo povo, de seus direitos essenciais, conseqüentemente de sua cidadania.
Uma pequena exceção é esse tipo de jornalismo investigativo, corajoso e responsável, que não começou na Globo mas é hoje na sua quase totalidade amparado por ela ? por mais improvável que, há pouco tempo, isso pudesse parecer.
O macabro episódio da captura, julgamento e execução de Tim Lopes não se encerra nas frases emotivas que estarão sendo repetidas esta semana. Ele impõe garantias de que o jornalismo de vital comprometimento com a sociedade ? que Tim praticava ? não aceitará a sentença do poder paralelo.
Por mais que seja difícil imaginar o esfacelamento desse poder, agora é particularmente importante que isso seja feito para que se possa imaginar, também, o fortalecimento de uma imprensa a quem caberá assumir o papel das instituições que entraram em colapso.
(*) Jornalista e diretor de TV