Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tem que esfregar na cara

Vera Silva (*)

Um amigo me perguntou por que a prostituição total e proporcional no Brasil é tão alta, conforme estudo recentemente publicado. Ele achava, o que me honrou, que eu poderia esclarecê-lo já que entendo dessas coisas. Confesso que senti um frio na espinha. Pergunta de amigo é como pergunta de filho, tem que ter resposta precisa porque amizade se mantém com a verdade da alma.

Fui, então, reler duas mulheres magníficas, que na década de 80 se puseram a pesquisar a sexualidade brasileira, Rose Marie Muraro e Marilena Chauí. Fiquei de cara (como dizem os adolescentes hoje) com o que reli! Elas me fizeram descobrir o papel da mídia na difusão do novo catecismo: sexo não é mais pecado, os exageros é que o são.

Em seu livro Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil, publicado em 1983, Rose Marie Muraro escreve as conclusões de uma enorme pesquisa sobre a sexualidade em três classes sociais, o campesinato, o operariado e a burguesia.

Nas conclusões de seu livro podemos ler que “…a sexualidade, o corpo é realmente, em última instância, o locus onde o poder se exerce [……….] O corpo é preparado logo que nasce para assumir o lugar que o socius lhe designa dentro do sistema produtivo”. No corpo de cada um de nós, portanto, o poder inscreve os seus valores, os seus interditos, os seus “mandos”, através da forma como as nossas necessidades, desde que nascemos, são atendidas.

Exemplificando, um bebê que chora de fome e não é atendido aprende desde pequeno a não ter as necessidades atendidas. Outro bebê, que sempre que chora de fome é atendido, aprende a ter suas necessidades atendidas. Esses dois bebês ao crescerem vão ocupar lugares específicos no setor produtivo: o excluído e o incluído.

Ser desejante

Podemos ler ainda no livro de Rose Marie Muraro: “O que é o desejo? (…) ele também é produzido. (…) São os homens dominados também que dão aos atributos físicos da mulher maior valor erótico. Quanto mais excitante o físico, mais condições dá à sexualidade masculina, mais localizada no físico, de “funcionar melhor”.

Essa conclusão começa a explicar por que a prostituição por aqui é tão alta. Se o corpo é preparado para ocupar seu lugar no sistema produtivo, o desejo que surge para suprir uma falta também o é. Dependendo do lugar que se ocupa, a falta a ser suprida é diferente, condicionando o desejo ao prazer permitido.

Assim, os homens dominados pelo poder, em seus vários estágios de dominação, quanto mais dominados mais valorizam os atributos físicos da mulher como instrumentos de prazer, e que lhes provocam maior ereção quanto mais próximo esse corpo estiver do padrão erótico do momento.

Rose Marie avança mais em seu livro quando conclui que “(…) quanto maior o domínio do homem pelo homem, maior, também, o da mulher pelo homem”. Num sistema baseado no poder do mais poderoso sobre o menos poderoso, o homem tem sido o símbolo do poder maior porque é aquele fisicamente mais forte, podendo encarnar o domínio da força econômica sobre o prazer. Assim, é fácil entender por que quanto menos domínio o homem tem sobre o econômico mais poder ele precisará exercer sobre a mulher para restaurar seu equilíbrio como ser desejante.

Em troca do perdão

Mas o que faria uma distorção tão grande do desejo ser aceita sem revolta por tanto tempo, perguntei-me. Fui procurar respostas no livro Repressão Sexual: essa nossa (des)conhecida, publicado em 1984 por Marilena Chauí. Nesse livro ela discute as origens da repressão sexual no Brasil, assinalando o papel da religião católica no estabelecimento e na manutenção desta repressão.

Escreve ela que “(…) o encontro matinal da puta, voltando do trabalho, com a freira, indo à missa, é uma espécie de síntese da imagem feminina brasileira para o olhar masculino (…). Do ponto de vista moral, portanto, a repressão sexual opera de modo duplo: pela criação de obstáculo ao vício (educação da vontade) e pela mostração de, se incorrigível (…)”. O papel da religião para manter o prazer escravizado é ensinar cada um a dominar a vontade de suprir a falha gerada pelo desejo, através da aproximação de Deus e do exercício da castidade. Como o bebê de nosso exemplo, cada um deve aprender que não é para atender ao que o corpo quer, porque assim fazendo estará mais próximo do reino dos céus.

Contudo, seria necessário mostrar o que ocorre com aqueles que, incorrigíveis, se entregam ao “prazer”, no caso as prostitutas. São proscritas, confinadas às zonas, ou aos classificados dos jornais, transformadas em prestadoras de serviços sexuais. A elas se nega o reino dos céus, e, por conseguinte, o amor do homem, e do Cristo, que a freira, porque casta, pode obter. Paradoxalmente a prostituição indicaria o caminho da castidade ao homem e à mulher.

Entre o poder e a religião, o medo do desconhecido faz com que cada um troque o prazer aqui na terra pelo reino dos céus que não se pode ver. É claro que não estamos dizendo que Deus existe ou não existe, estamos dizendo que para se controlar o comportamento do homem se tira dele o amor e se faz com que ele genitalize o prazer e consuma o desejo, a pretexto de alcançar a justiça divina. De quebra se tira da mulher o exercício do direito ao prazer. Ambos, homem e mulher perdem o direito à sexualidade em troca de um suposto perdão divino.

(Des)vestindo meninas

Vamos começar a explicar nossa afirmação inicial de que a mídia está difundindo o novo catecismo e com isto contribuindo para o aumento da prostituição no país.

O reino dos céus demora muito a chegar, e os pobres têm que enfrentar duras provações, a classe média tem que trabalhar duro para comprar seu apartamento e seu carro, então… É necessário providenciar algum prazer para uns e outros não desistirem e partirem para uma revolução que provoque mudanças na chamada pirâmide social, que no Brasil mais parece um picolé quadrado com palito curto.

A mídia passou a (des)vestir as meninas, tornando-as cada vez mais parecidas com as prostitutas que se oferecem nas ruas: seminuas, barrigas à mostra, saias curtas e apertadas o bastante para entrever as curvas do bumbum e o desenho da calcinha, blusinhas apertadas sem soutien, bocas bem pintadas, unhas vermelhas, cabelos ouriçados. Além disso, treina à saciedade as meninas na dança rala-rala-bate-coxa-na-boquinha-da-garrafa. Tanta exibição de corpo em movimento como se gozasse, fica tão parecida com o ritual da prostituta que atrai freguês que nenhum homem vai se sentir responsável ou amoroso em relação a elas, porque prostitutas não têm direito ao amor e ao casamento.

Licença para a violência

O homem dominado ao vê-las tão atraentes tem garantidos ereção e prazer. Mesmo os pais se desfazem de seu papel sem remorsos, porque a mulher que ele vê foi feita para seu prazer e domínio, aumentando casos de estupro de filhas e enteadas pelos pais. E ainda nos espantamos com o aumento dos casos de gravidez na adolescência!

O novo catecismo é lido na imagem da TV. Aquilo que ele mostra é que o sexo não é mais pecado, já que passa na TV. Pecado hoje, segundo a TV, são os excessos sexuais: o homossexualismo, a recusa à maternidade, o uso da camisinha, pegar doença sexualmente transmissível, machucar seriamente a parceira, parecer uma freira, parecer gorda, escolher o parceiro, amar… Assim, o homem pobre e o burguês atormentado podem exercer o poder, que cada vez está mais centralizado e mais voraz. Para o homem, e para a mulher, por tabela, o consumo do sexo substitui o consumo dos objetos globalizados ou a eles se associa. Prazer se compra, quando se tem poder, é o novo catecismo.

O desejo produzido não vê mais a pessoa, mas o corpo, adequadamente preparado para o consumo. E como fazer sexo e gozar não é mais pecado, ninguém precisa se confessar e estamos todos salvos.

Neste contexto a prostituição tenderá a aumentar cada vez mais, pois o sexo é mais um produto de consumo, permitido aos que podem pagar. E há modelos para todos os bolsos: de crianças de rua a R$ 5 a prostitutas de luxo para a elite.

Quanto aos excluídos, a eles só é permitida a violência, pois não é preciso pagar por ela.

(*) Psicóloga

 

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