Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tempo de rescaldo

VENEZUELA, O DAY AFTER

Gilson Caroni Filho (*)

Passado o incêndio que lambeu as melhores redações, é tempo do rescaldo. Há que se ter cautela com alguns focos ainda relutantes. O saldo final é revelador da consolidação de algumas tendências que apontam para a editorialização de reportagens e articulistas prontos para o que der e vier. Os manuais de redação estão implorando revisão imediata. O fogo que, felizmente, não ardeu em Miraflores abriu um clar&atatilde;o no procedimento editorial da grande imprensa. A rigor não houve surpresas, embora tenham doído, e muito, algumas exceções.

A consciência crítica requer distância para uma reflexão menos pontual. A análise não pode descambar para um lamento ingênuo, nem prescindir da indignação como combustível. O que está em jogo não é uma questão conjuntural ou uma lamentável exceção que possa ser prontamente corrigida. O deplorável comportamento da imprensa face à tentativa de golpe em Caracas desnuda uma estratégia para a qual vínhamos alertando em vários artigos publicados neste Observatório: a rapidez com que o campo jornalístico vem homologando todas as ações do bloco de poder. De fiscal a cúmplice, bastaram 20 anos de ditadura e 8 anos de promiscuidade neoliberal. Mas, sob pena de incorrer em reducionismo, não podemos ficar restritos ao universo midiático.

Marca de nascença

Como desconsiderar aspectos históricos mais amplos? A imprensa tem os mesmos componentes constitutivos presentes na formação social em que atua. Fisiologismo, conchavo, falcatrua e propensão a ver no golpismo a melhor forma de regular conflitos não são monopólio das redações. Estão presentes em todas as dimensões do corpo social. Do político ciente do valor monetário do seu voto em projetos que interessem ao governo ao acadêmico disposto a abandonar suas mais firmes convicções por aumento de carga horária ou chefia de departamento. A formação patrimonialista que nos inviabiliza como república, o latifúndio que nos tolhe como nação e a cidadania próxima aos critérios censitários que a definiram na origem não poderiam gerar, milagrosamente, uma imprensa autônoma e cidadã. Se existisse, seria uma idéia tão fora de lugar como o ideário liberal que conviveu com o pelourinho. Não pode dar certo o que começa com Adam Smith empunhando um chicote.

Portanto, não estamos à procura de um resgate, mas gritando pela urgência de uma invenção. De uma nova imprensa que, dissociada do poder e dos interesses econômicos a ele atrelados, possibilite o surgimento de uma sociedade efetivamente democrática. Claro que não estamos solicitando uma nova ordem criada por "editores" esclarecidos, mas um contrato social onde espaços públicos não-estatais e jornalismo ético se reforcem reciprocamente. Essa briga é boa e é nossa. Dos leitores e colaboradores deste Observatório e de outros veículos democráticos.

O golpe, abortado em 48 horas, não nos mostrou nada de surpreendente na imprensa brasileira, e talvez isso nos tenha indignado com mais intensidade. Desnudar o modus operandi da TV Globo não trouxe nada de novo ao front. Só muita tolice para supor que o grande capital seja suscetível a súbitas conversões éticas. Quem comemorava a ruptura constitucional no país vizinho era a mesma emissora que serviu de suporte simbólico à ditadura militar por 20 anos. A velha senhora que ocultou uma bomba no atentado do Riocentro. A prestidigitadora que sabotou o movimento das diretas e, posteriormente, editou o debate entre Collor e Lula na campanha presidencial de 1989. A amiga com quem FHC sempre pôde contar em momentos críticos. Quem esquecerá 1998, quando a seca e os saques, à véspera das eleições, cederam lugar ao mico-leão-dourado e a toda a fauna marinha que emergia no Jornal Nacional? Esperar postura democrática da família Marinho é esquecer o DNA dos barões da mídia tupiniquim. E sua inequívoca contribuição para a fragilidade institucional do país. A rápida adesão ao golpe é evidente sinal de coerência. Marca de nascença irremovível

Baixíssima definição ética

Mais doloroso, mas não menos pouco surpreendente, foi acompanhar o procedimento do Jornal do Brasil nesse processo. Triste foi ler um jornalista que jamais se vergou ao regime militar e tem sua trajetória profissional marcada por um posicionamento ético irretocável escrever:


"Na realidade, o tiranete venezuelano derrubado na madrugada de ontem é um militar de meia-tigela. Especializou-se em quarteladas fracassadas e o seu populismo político vinha convertendo o país numa banana republic de meados do século passado. Seu grande admirador, nosso Lula da Silva, desenhou seu perfil de forma contundente, depois do encontro no final do ano passado: ?Ele pensa o que eu penso?."


Pelo respeito que lhe é devido, preferimos acreditar que o emocionalismo lhe turvou a visão profundamente crítica e humanista. A principal colunista política do Jornal do Brasil não se fez de rogada, e na edição de 13/4, embora "lamentasse" o golpe como condenável em "tudo e por tudo", acabava por legitimá-lo como solução engolida a contragosto:


"Mas anômala também foi a situação em que Chávez governou nos últimos três anos. Nada justifica golpes institucionais e justamente para evitar esse risco é que as sociedades devem estar atentas às qualidades e capacidades dos governantes que escolhem. A primeira desconfiança guarda relação exatamente com aqueles postulantes de palavra excessivamente fácil que elaboram soluções aparentemente lógicas, mas objetivamente inexeqüíveis ? pelo menos em curto espaço de tempo – dada a complexidade do embate de forças existente em todas as coletividades."


Não há nada de original no raciocínio da colunista. Além do alerta aos eleitores (repetindo o procedimento do Jornal Nacional do dia anterior) contra qualquer postulante que não seja do campo governista, seu texto dava continuidade à construção do que o professor Juán Toklatian, em artigo de rara felicidade, publicado no JB de 17/4, chamaria de "golpe benévolo". Aquele que a nossa consciência democrática aceita por ser um mal necessário. O império da razão cínica tornou-se manual de realismo político na imprensa brasileira.

O JB, contudo, não pararia por aí. Em editorial intitulado "Golpe no golpe" (16/4), a mesma condenação formal à quartelada e a incriminação da vítima como responsável por sua própria queda. Chega à melancolia quando afirma que "a interpretação desapaixonada dos fatos, sem contágio de febres ideológicas, conduz infelizmente a uma única resposta. Assim que a poeira assentar, tudo será como dantes no horizonte de Caracas". O jornal, que nos anos 70 era "tão bom quanto as verdades que dizia", estava desalentado com o restabelecimento da ordem constitucional. Mas o que deixa nosso editorialista furioso é a "incapacidade" das elites golpistas: "Incompetentes e corruptas, não conseguiram sequer levar a cabo o golpe de Estado. Foram com muita sede ao pote e acabaram golpeadas por dentro do próprio golpe." É o que podemos chamar de política de resultados. Onde a democracia, como já havia ocorrido com o gol no futebol, é apenas um detalhe.

Veja foi devidamente analisada no excepcional artigo de Luiz Antônio Magalhães ("Revista falastrona, cobertura beócia", remissão abaixo). Porém, julgamos fundamental acrescentar algo à sua análise. O leitor de Veja não é pouco inteligente. Discernimento ele tem de sobra. Sua opção pela revista é política. O que o jornalista não admite, por motivos absolutamente compreensíveis, é que há uma inteligência reacionária hegemônica no país. Foi ela quem autorizou a "festa imodesta" da imprensa e permite o êxito comercial. Compreender seus mecanismos de reprodução é imperativo ético-político. É o campo de batalha dos democratas que não toleram a glorificação do golpismo em edições de altíssima resolução gráfica e baixíssima definição ética.

(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro

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