Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tempo, dinheiro e qualidade da reportagem

JORNALISMO INVESTIGATIVO

Antônio Sampaio (*)

No dia 18 de novembro ocorreu na PUC-Rio um painel de palestras sobre o jornalismo investigativo, para marcar o lançamento do livro O grito dos inocentes, ao mesmo tempo em que lembrava o aniversário do jornalista Tim Lopes, que estaria completando 53 anos. O livro aborda a cobertura da mídia sobre temas relacionados a abuso sexual de crianças e adolescentes, e partiu de pesquisa da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) que avaliou mais de 700 matérias, de vários jornais do país, segundo parâmetros como adequação de fontes, exposição de causas e conseqüências dos crimes ocorridos (e não só os crimes em si), o contexto dos crimes etc.

Os resultados, mesmo que tal avaliação não possa deixar de ser extremamente subjetiva, mostraram um quadro alarmante no jornalismo brasileiro: numa escala de 0 a 100, o jornal mais bem posicionado (dos 50 avaliados) foi a Folha do Paraná, com uma nota indigna de um bom aluno: 48. Estatísticas ajudam a ilustrar o quadro: 50,9% não revelaram a idade das vítimas de abuso, todas menores de idade, o que caracteriza crime (omissão contraditória até do ponto de vista comercial, pois é um dado impactante, que "vende"); 70% não mencionaram o quadro social e econômico em que viviam as vítimas; 67% focaram no ato violento em si, como descrever o ocorrido e a investigação policial, sem contextualizar. Apenas 9,9% das matérias abordavam políticas públicas sobre a violência sexual contra menores.

Desmistificando o monstro

Entre os termos, no mínimo curiosos, encontrados em algumas matérias e destacados pelo livro, encontra-se "felizmente ainda era virgem", entre outros que ilustram um quadro medieval na maneira de caracterizar vítimas e criminosos.

Para Veet Vivarta, representante da Andi, a má qualidade da cobertura é mais do que uma vergonha para o jornalismo: "Não estamos instrumentalizando a população para entender o problema e ajudar a resolvê-lo". Ressaltou que o jornalismo brasileiro é considerado como tendo padrões de Primeiro Mundo quando se trata de cobertura política ou econômica, mas em termos de violência sexual é retrógrada. Pior acontece em relação às drogas, segundo ele. Em prosseguimento a O grito dos inocentes está sendo feito um trabalho sobre drogas, também com foco na cobertura da mídia. A média dos jornais, seguindo Veet, foi ainda menor.

Estiveram presentes ao encontro os vencedores do Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística, para pautas relacionadas ao tema. Clarice Dias, do jornal Correio Brasiliense, venceu com a pauta de um caderno que previa entrevistas tanto de vítimas como de molestadores, ajudando a desmistificar a figura do "monstro" ? como ficou claro na apresentação, pode ser qualquer um. Quer dizer, não são apenas loucos desvairados ou desempregados, ressaltou Marlene Vaz, socióloga do Instituto WCF Brasil.

De tirar o sono

Clarice tocou num tema importante. Ela disse que, após ganhar o concurso, cujo generoso prêmio permitiu a realização da matéria, teve oportunidade de fazer algo a que geralmente não está acostumada no dia-a-dia: viajar, investigar profundamente, contar com recursos para passagens e estadas e, principalmente, tempo, artigo raro nas redações.

Esse comentário, quase um aposto na palestra, foi a chave para se entender o problema da cobertura jornalística de assuntos delicados, como a violência sexual: os jornalistas simplesmente não têm tempo nem recursos para as apurações e as investigações necessárias a matérias tão boas quanto as que foram apresentadas no dia 19. Muitos deles se infiltraram em pontos de prostituição, coletaram dados sobre violência e prostituição, ouvindo vários especialistas e acompanhando instituições que assistem e prestam serviços às vítimas, e, como a própria Clarice, viajaram para pontos distantes.

Clarice contou que viajou para sete estados diferentes para mostrar um amplo panorama do assunto. Se não tivesse uma pauta vencedora de um concurso sério, com recursos doados e um compromisso de publicação, a pauta, não duvido, teria caído rapidinho, ou sido reduzida a um recorte muito menor. Mais uma vez desandamos para o problema que tira o sono (ou não) daqueles que lutam por um jornalismo mais justo e ético: a falta de preocupação com padrões qualitativos durante o processo de apurar três, quatro matérias no mesmo dia, dependendo do caso. A solução da questão passa por aí.

(*) Editor do Orbital <www.orbital.blogger.com.br>