Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Teoria do caos e invocação da ética

GEORGE SOROS & CLÓVIS ROSSI

Luiz Weis (*)

Duas semanas atrás, quando o presidente uruguaio Jorge Battle viu divulgada a enormidade que cometera ao declarar a um jornalista que os argentinos são todos "una manga de ladrones", a sua primeira reação, antes de chispar para Buenos Aires e se desmanchar em lágrimas de arrependimento diante do seu colega Eduardo Duhalde, foi sacar de uma desculpa mais velha talvez do que os tipos móveis de impressão de Gutenberg: o comentário tinha sido feito em off, portanto ele não imaginava que viria a público, portanto, se imaginasse, jamais diria o que disse etc e tal ? como se isso alguma diferença fizesse para seus ofendidos vizinhos.

Também a uma variante do mesmo recurso agarrou-se o megainvestidor húngaro-americano George Soros, de 71 anos, depois que o repórter Clóvis Rossi publicou na Folha de S.Paulo, na edição de sábado (8/6), o que dele ouvira, em Nova York, "na chuvosa noite da quinta-feira", quando ambos conversaram "durante jantar organizado pelo Council on Foreign Relations", uma das incontáveis entidades americanas que reúnem cabeças pensantes locais e convidam outras tantas do exterior ? como, no caso, o veterano profissional da Folha ? para discutir assuntos de peso da realidade internacional. (Dessa vez, a pauta era o mundo pós-11 de setembro.)

Crachá de jornalista sobre o paletó, Rossi instou Soros a falar da eleição brasileira ? e o que registrou deve tê-lo feito engolir a sobremesa sem mastigar para livrar-se o quanto antes do regabofe e transmitir à Redação o ouro puro que acabara de garimpar. Pois o SuperSoros havia afirmado, como Deus e todo mundo ficaria sabendo dois dias depois, que "o Brasil está condenado a eleger José Serra ou a mergulhar no caos, assim que um eventual governo Luiz Inácio Lula da Silva se instalar". (As aspas, aqui, servem para indicar o texto da Folha. Na Folha, a frase de Soros saiu sem aspas.)

Seis parágrafos adiante ? e deixando claro que se tratava de uma conversa, não de uma sessão de perguntas e respostas ? Rossi escreve que "a Folha ponderou a Soros…". A ponderação consistia em qualificar de antidemocrático o mecanismo pelo qual os mercados acabam perversamente obrigando um governo de esquerda a dar o calote da dívida, "na medida em que", lê-se no jornal, "impede que os eleitores, teoricamente soberanos, elejam quem bem entendam".

A réplica de Soros é uma das raras passagens do diálogo citada ipsis litteris. Também pudera. O homem que peitou o Banco da Inglaterra e parece ver o mundo nos termos estritos de que chora menos quem pode mais, disparou: "Na Roma antiga, só votavam os romanos. No capitalismo global moderno, só votam os americanos, os brasileiros não votam".

Foi o escarcéu que se viu. A oposi&ccedilccedil;ão entendeu que o sabido Soros não estava dando uma opinião ou fazendo uma previsão, mas pressionando os brasileiros a eleger o tucano Serra para prevenir o caos. Lula chegou ao extremo de dizer que o governo tinha perdido a auto-estima porque não mandara o financista "calar a boca".

Pouca gente atentou para o fato de que a matéria de Clóvis Rossi, nos finalmentes, credita a Soros "propostas que, se implementadas, minariam as chances de especular contra o Brasil. Propostas antigas, todas relativas à reforma da arquitetura do sistema financeiro internacional". E, mais importante ainda, que ele recomendava para o Brasil o alívio da dívida, "com uma (improvável) intervenção direta do Tesouro dos EUA".

Argumentos substantivos

A radiação liberada pelas palavras de Soros no Brasil provocou conseqüências nos dois lados do Atlântico Norte. Em Londres, uma semana depois de seu diálogo explosivo, o miliardário disse ao repórter João Caminoto, da Agência Estado, lamentar que as suas "ponderações" tivessem sido usadas na campanha eleitoral brasileira. "Eu não fiz o comentário público naquele dia e não vou fazê-lo agora, porque não quero influenciar [o processo eleitoral]", anotou o repórter, em matéria publicada apenas na edição eletrônica do Estado de S.Paulo.

Se ficasse por aí, Soros teria se desembaraçado com elegância da situação. Mas ele preferiu atirar no repórter da Folha ? a exemplo do que faria, em carta de 39 linhas-coluna publicada pelo jornal, no domingo [16/6], o presidente do Council on Foreign Relations, Leslie H. Gelb.

Soros e Gelb acusam Rossi de quebra de confiança. Soros disse que o jornalista "escutou conversas privadas durante a reunião do Council que tem uma regra que determina que elas sejam confidenciais". Gelb, tomando as dores de Soros, escreveu que o jornalista "violou a política de não-atribuição do Council, que foi declarada pessoalmente e por escrito a todos os participantes do evento". E mais: "Nossa política de não-atribuição se aplica não apenas às sessões propriamente ditas mas, conforme ditam o bom senso e a tradição, também às conversas informais e particulares mantidas nos corredores e nas salas de reunião".

Ao investidor, Rossi respondeu que a sua afirmação "não corresponde aos fatos", porque o repórter não ouviu "conversas privadas", mas conversou com ele durante um jantar e não durante uma sessão do Council "que, de fato, impõe a reserva do nome dos expositores". Ao presidente da entidade, respondeu que o veto ao uso e à atribuição de informações, que lhe havia sido transmitido previamente, restringia-se a informações "recebidas durante as reuniões".

Além disso, o repórter argumenta que o assunto da "conversa particular" com Soros, em um jantar, "não dizia respeito à sessão" (que tratava do terrorismo), portanto, "não me pareceu coberta pelo veto".

Este observador, por mais que leve em conta "o bom senso e a tradição" invocados por Gelb para sustentar que nenhum participante do seminário tinha a liberdade de informar quem disse o quê a respeito do que nele se tratou, não consegue deixar de dar razão a Clóvis Rossi.

O seu aguçado instinto de repórter o levou a fazer a coisa certa, sem transgredir nenhuma norma ética. O interlocutor sabia, literalmente, com quem estava falando: com um jornalista. E o primeiro compromisso de todo jornalista que se preze é levar a verdade ? dos fatos e das palavras ? ao público.

Esse compromisso, para funcionar, exige do profissional que se comporte de acordo com a regra segundo a qual "tudo o que não for explicitamente proibido é permitido". Se sentir mais à vontade com a regra oposta ? "tudo o que não for explicitamente permitido é proibido" ? melhor fará mudando de profissão.

Rossi seria um mau jornalista se guardasse para si o que Soros lhe declarou ? seja pelo que foi falado seja por quem falou. E beiraria o ridículo se despachasse uma matéria com aqueles mesmos dizeres, só que, em vez de dar o nome ao boi, a ele se referisse como "um grande investidor" ou "uma fonte familiarizada com os mercados financeiros".

Ele não pode ser responsabilizado pelas bobagens com que Lula e outros oposicionistas reagiram às "ponderações" ? e é disso que se trata ? de George Soros, em vez de contrapor-lhes outros argumentos igualmente substantivos.

Enfim, se Soros não quisesse que o mundo soubesse o que ele acha que pode acontecer com o Brasil por causa da eleição presidencial, deveria pensar duas vezes antes de se abrir com um repórter. Ou tomasse a iniciativa de proibir, a qualquer momento da conversa, que o interlocutor divulgasse as suas idéias ? algo que um jornalista íntegro como Clóvis Rossi respeitaria escrupulosamente.

(*) Jornalista