GUERRA HUMANITÁRIA
Fábio de Oliveira Ribeiro (*)
Diante da inexorável conclusão de que, qualquer que seja o resultado do conflito, o ilegal ataque ao Iraque derrotará finalmente o cinismo anglo-americano, o tablóide The Sun resolveu apelar. Afirmou que estamos diante da primeira "guerra humanitária".
Que não me perdoem os sensacionalistas ingleses, sempre pródigos em sarcasmos estúpidos de obtusa inspiração, mas a expressão guerra humanitária não merece nem ser chamada de jornalística. Apesar de parecer poética, a saída encontrada pelo The Sun para justificar o inexplicável é cretina e repugnante. Cretina porque reduz o sofrimento a um efeito literário. Repugnante porque nega aos iraquianos alvejados pelos mísseis anglo- americanos a condição de vítimas de guerra.
A crueldade do The Sun não é eventual. É produto de uma cultura que mescla falsa polidez e refinada brutalidade. Ela não abre um precedente para a guerra total. É a própria totalidade da guerra já traduzida em palavras. Se não estou enganado, os tablóides ingleses têm larga experiência em humanizar as guerras coloniais daquela insuportável ilha. Afinal, já fizeram isto durante a Guerra dos Bôeres no início do século 20. Mas devemos perdoar os ingleses, só eles seriam capazes de inventar a teoria da superioridade racial (Thomas Buckle) ou de confinar em campos de concentração para morrer à mingua milhares de mulheres, velhos e crianças em razão de não conseguirem localizar e derrotar soldados nos campos de batalha.
Duplo filtro
A guerra nunca é humanitária. Guerra é sinônimo de destruição, de carnificina e, sobretudo, da absoluta falta de piedade diante do inimigo (a menos que ele esteja morto, é claro). O vocábulo "humanitário" opõe-se frontalmente ao conceito veiculado pela palavra que não ouso repetir. Desde que seja capaz de se colocar no lugar do outro e de proporcionar-lhe alegria, conforto e tranqüilidade, o ser humano merece ser chamado de "humanitário". Soldado humanitário é soldado morto, porque enquanto estiver vivo ele vai continuar a fazer aquilo para que foi treinado. Matar inimigos e preservar a própria vida a qualquer custo.
A julgar pelo seu conteúdo, The Sun certamente defende a tese de que Hitler autorizou a ocupação da Áustria por razões humanitárias, anexou os Sudetos por razões humanitárias e invadiu a Polônia também por razões humanitárias. Os bombardeios da Luftwaffe a Londres ocorreram por razões humanitárias. Também foi por razões humanitárias que a Força Aérea americana jogou bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Enquanto você lê este texto, militares anglo-americanos estão despejando milhões de toneladas de bombas e submetendo a assédio as cidades iraquianas. Mas até vencerem Saddam Hussein, ele será o único culpado pelo sofrimento dos civis. Afinal, as razões anglo-americanas são humanitárias.
O jornal The Sun está em guerra contra o jornalismo. Será que algum jornalista brasileiro terá coragem de combater este tipo de hipocrisia? Duvido muito. Parece que nossos escribas também ficaram fascinados com o show pirotécnico anglo-americano ou se deixaram convencer por esta conversa de "guerra humanitária" do The Sun. Cretinos lá, imitadores cá. Que fazer diante de tanto antijornalismo militante? Filtrar as notícias duas vezes. Haja paciência…
(*) Advogado e professor de Língua e Literatura Brasileira/Inglesa