GUERRA & TERROR
"Sugestão: por segurança, todos viajariam nus", copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 27/12/01
"Na esteira da tentativa de atentado ocorrida no sábado, por um terrorista louco com explosivos no seu tênis, estou pensando em fundar minha companhia aérea, que se chamaria Naked Air (em inglês, naked significa nu). Seu lema:
?Todo mundo viaja nu e ninguém se incomoda.? Ou então: ?Naked Air – onde a única coisa que você veste é o cinto de segurança.?
Se todos viajassem pelados, não apenas você nunca precisaria preocupar-se que o passageiro ao lado estivesse portando estiletes ou explodindo sapatos, como também nenhum fundamentalista religioso de qualquer matiz seria encontrado voando nu ou na presença de mulheres nuas. Só isso já impediria que muitos seqüestradores em potencial viajassem de avião. É muito mais civilizado do que fazer distinções por raça. Além disso, tenho certeza que não demoraria muito para as empresas aéreas oferececem lavagem a seco gratuita de suas roupas enquanto você viaja.
Bem, você entendeu: se os terroristas vão continuar usando a tecnologia para ficar cada vez melhores, como nos proteger contra isso, e, ao mesmo tempo, manter uma sociedade aberta, sem que todos os viajantes aéreos se dispam?
Quero dizer, qual o benefício de ter-se uma América livre e aberta quando é fácil alguém embarcar em um avião em Paris trazendo uma bomba no salto do sapato ou planejar um atentado suicida ao World Trade Center de uma caverna em Kandahar e depois mandar executá-lo?
Este é o problema central dos Estados Unidos hoje: uma sociedade livre é baseada na abertura e no partilhamento de determinados códigos de ética e de honra para manter a ordem, mas agora estamos intimamente conectados a muitas sociedades que têm governos que não conseguem manter a ordem e a povos que não respeitam nossos códigos de ética e de honra.
Para que os Estados Unidos continuem sendo os Estados Unidos, uma sociedade livre e aberta intimamente conectada ao mundo, o mundo precisa se tornar um lugar muito mais ordenado e controlado.
Portanto, eis o nosso dilema: ou nós nos tornamos menos abertos como sociedade ou o mundo ao qual estamos agora conectados tem de tornar-se mais controlado – por nós ou pelos outros – ou, ainda, simplesmente aprendemos a viver com um nível muito mais alto de risco do que estamos acostumados.
Ou, então, viajemos todos nus."
"Tradução de fita de Bin Laden omitiu frases", copyright Folha de S. Paulo, 22/12/01
"O vídeo divulgado pelos EUA na semana passada em que o saudita Osama bin Laden assume a autoria dos atentados terroristas de 11 de setembro teve passagens omitidas pelo Pentágono, segundo os jornais ?The Washington Post? e ?The Independent? e as redes de TV CNN e ABC.
A principal omissão foi apontada pelo diário britânico ?The Independent?, que diz em sua edição de hoje que a tradução do Pentágono não incluiu trechos que seriam embaraçosos para um aliado estratégico dos EUA: a Arábia Saudita.
A nova versão traz afirmação de Bin Laden de que o sucesso do ataque foi recebido com entusiasmo por religiosos sauditas. Ainda pela nova tradução, o xeque Khalid al Harbi, que aparece ao lado de Bin Laden no vídeo, conta que entrou no Afeganistão com ajuda de um membro da polícia religiosa do governo saudita.
Já a análise da fita apresentada pela rede americana ABC aponta que o mesmo xeque chegou ao Afeganistão pelo Irã, com apoio da polícia religiosa daquele país.
Outra novidade diz respeito ao número de sequestradores citados por Bin Laden na gravação. Segundo o Pentágono, o terrorista saudita citou apenas o nome de Mohamad Atta, que estava em um dos aviões que se chocou contra o World Trade Center.
A ABC e a CNN afirmam que outros nomes foram citados, como os irmãos Nawaf e Salem al Hazmi, também envolvidos nos atentados. Segundo a CNN, Bin Laden disse os nomes de mais nove sequestradores.
A resposta americana
Victoria Clarke, porta-voz do Departamento da Defesa dos EUA, afirmou que os EUA nunca tiveram intenção de omitir informações na versão oficial da gravação, divulgada no último dia 13.
A porta-voz afirmou que a fita era de baixa qualidade, o que dificultou o trabalho dos quatro tradutores independentes contratados para preparar o material. Clarke acrescentou que a versão original da fita, em árabe, também foi liberada à imprensa para evitar acusações de manipulação.
?Em geral, quando eles [os tradutores? ficaram inseguros sobre alguma frase, colocaram a palavra ?incompreensível? ou simplesmente não traduziram?, declarou a porta-voz.
Ainda segundo ela, o Pentágono nunca disse que era completa a tradução que apresentara da fita de quase uma hora de duração. Clarke negou que os tradutores tenham sido pressionados para apressar o trabalho, mas acrescentou que eles poderiam ter tido mais tempo.
?Eles fizeram o máximo que puderam dentro do tempo que tivemos. Tenho certeza de que, se tivessem mais uma semana ou dez dias, os tradutores provavelmente teriam compreendido mais palavras e sílabas.?"
"A verdade, ora, e seus fiadores", copyright Jornal do Brasil, 20/12/01
"Leio no site da BBC que a autenticidade do vídeo em que Bin Laden assume a autoria dos atentados de 11 de setembro divide opiniões entre os árabes. Uns concordam com W. Bush: a fita constitui a prova arrasadora de que o famoso milionário saudita é mesmo o culpado. Em favor dessa tese, falam cientistas, tradutores e a cúpula do governo americano. Outros contestam: o vídeo, de baixíssima qualidade, é suspeito, pode ser uma falsificação. Quem viu umas poucas cenas pela TV, ou trechos mais longos na internet, fica sem saber qual das duas teses é a certa. Por inércia, prefere dar crédito a Bush. De todo modo, intui, é esquisito que Bush precise de um vídeo como esse para que o mundo creia no que ele diz – e é igualmente estranho que o mundo precise do atestado do governo Bush para crer no vídeo que ele mostra.
A garantia da veracidade da fita magnética é a palavra de Bush. A garantia da palavra de Bush é a fita magnética. Não há como sair dessa sinuca. Nunca houve. Pense o leitor no drama que deve ter sido aquelas tábuas dos dez mandamentos nas mãos de Moisés. Ele dizia portar a palavra de Deus e esta palavra fazia dele um profeta. Mas quem é que podia assegurar que aquelas pedras traziam mesmo a lei divina? Ora, ele mesmo, Moisés. Não consta que alguém tivesse ido até ele conferir, ao pé das tábuas, a firma reconhecida de Javé. Hoje talvez isso ocorresse. Somos todos obcecados pelas comprovações científicas de todas as coisas – até mesmo daquelas que são matéria de fé (já que estamos aqui falando de Moisés). O alegado ?santo sudário? é assim: luta-se, dentro do próprio Vaticano, para que o tecido passe pelo crivo de uma autenticação de laboratório. A fé solicita comprovação científica, embora a ciência não se baseie na fé. E isso não se dá apenas na religião. O ateísmo é igual. Lembremos que o socialismo, nos tempos de Engels e Marx, tinha de ser científico para ser justo. O materialismo histórico se amparava na ciência e, depois de convertido em governo, tornou-se ele mesmo a base da ciência – e também da arte, do ?homem novo? e por aí vai. O partido operário era credenciado pela verdade histórica. Qual verdade histórica? Ora, mas que coisa, aquela que era desfraldada pelo proletariado.
A questão é clássica. ?O que é a virtude??, perguntava Sócrates. ?Virtude é aquilo que persegue o homem virtuoso?, respondiam seus interlocutores. E qual é o homem virtuoso? Elementar: aquele que persegue a virtude. A virtude é o paradigma do homem virtuoso e o homem virtuoso é o critério da virtude.
O que tem mesmo o vídeo do pobre Bin Laden a ver com isso? Simples: o vídeo é o principal produto dessa guerra toda, já que Bin Laden, o próprio, o real, o de carne e osso, este sumiu. É o vídeo, em lugar do famigerado saudita abastado em pessoa, que nos assegura que Bush não mente. Somos a civilização da imagem e, embora qualquer imagem possa ser falsificada pelos efeitos especiais, esse vídeo em particular mostra a verdade. É Bush quem garante.
É como acontece com o dinheiro: a moeda tem valor porque o governo (ou o Estado, vá lá) lhe garante o valor e o governo tem sustentação, sobretudo hoje, sobretudo no Brasil, porque a moeda tem valor. Porque ela não vira pó. Ou será por acaso que o governo brasileiro faz propaganda na televisão da nova nota de dois reais? (Atenção: dois reais. Por que não três reais, ou sete, ou 23? Não, dois reais. Nada mais sumamente necessário. A cédula de dois reais é uma vitória da economia brasileira.) Ouço Malan numa emissora de rádio. Ele diz esperar que a nota de dois reais tenha uma vida útil tão longa quanto a de uma tartaruga marinha. No reverso da cédula, vem desenhada uma tartaruga marinha. É o bicho. Parece que voa, que faz um looping. A nota, com seu tom azul de saldo positivo, comunica ao país que a moeda é musculosa, longeva, que é uma espécie preservada da extinção e que, portanto, o governo que lhe dá lastro é fonte de valor, de crédito e de credibilidade. O governo, de seu lado, tira partido da moeda. Por que não? É o governo que gera a estabilidade da moeda ou é a moeda estável que gera a permanência (e a reprodução) do governo? E cá estamos nós, de volta ao problema da verdade e seu fiador.
A presença da verdade – ou a ilusão da verdade presente, tanto faz – confere à vida cotidiana uma solidez e uma razão de ser. Sem isso, a existência do zé ninguém, de cada um de nós, adquire uma volatilidade insuportável. Eu tinha seis anos de idade quando ouvi a notícia, da boca de uma prima bonita, já mulher, de que o cruzeiro havia mudado de nome para cruzeiro novo. Era a nova moeda brasileira, que valia mil vezes mais que a anterior. Foi um apocalipse instantâneo dentro dos meus olhos. Eu me lembro do braço do sofá em que eu estava, das moedas de metal que ela me mostrou, das plantas tremulando no quintal. Nunca me esqueci. Foi como se me dissessem que Deus não se chamava Deus, mas Tibúrcio, e que não morava no céu, mas em Catanduva. Eu olhei as moedinhas, ouvi a voz líquida da minha prima e, quando voltei os olhos para o mundo à minha volta, ele estava completamente mudado, para sempre.
Acho que é essa a função que cumprem todas essas verdades e seus fiadores tautológicos. Todos existem para reafirmar a lógica mecânica da existência vegetal da massa. Que as tartarugas não morram jamais, que Bush nunca erre e que o vídeo do Bin Laden seja tão genuíno quanto uma nota de dois reais."