LEITURAS DE VEJA
Jonas Medeiros
Sobre as eleições municipais do ano passado, Veja n.? 1.670, de 11/10/00, escreve na capa: "O PT cor-de-rosa ? Ao trocar o discurso ideológico pelo da moralidade e eficiência, o partido arrebenta nas urnas." Já na matéria principal, lê-se: "Atendendo a um anseio do eleitor, o PT distanciou-se da retórica vermelha e empunhou a bandeira da ética, da moralidade pública. Com isso, aproxima-se do eleitorado de classe média, que se assusta com os barbudos fazendo pronunciamentos incendiários. E, ao hastear a bandeira da ética, opta por um discurso desideologizado, anódino (…)".
A revista festeja a desistência do Partido dos Trabalhadores de insistir no discurso socialista (portanto ideológico) e a virada de prioridades: o discurso teria se centrado na ética. Se, por um lado, é importantíssimo para o país estabelecer que os políticos sigam obrigatoriamente a ética em todos os três poderes, campanhas e planos de governo não podem, e nem devem, limitar-se a este discurso anticorrupção.
É consenso entre todas as pessoas conscientes que a corrupção é inaceitável e que a moralidade pública é um pressuposto para que o Brasil se desenvolva. Mas, quando se esquece do lado "ideológico" da política, as divergências e o pluralismo de idéias se esvaem, pois são substituídos por um discurso único ? lógico, óbvio, racional e consensual ?, o da anticorrupção.
Percebe-se na edição de Veja n.? 1.725, de 07/11/01, uma atenção muito grande por parte da revista ao tema da corrupção, em diversas frentes. São citadas "as virtudes da intromissão" da imprensa brasileira no passado de políticos para avaliar a sua moralidade. Sem dúvida, "nada mais saudável". Mas a cobertura política da revista não pode se resumir a vigiar as ações de políticos. O lado "ideológico" (escrevo assim, com aspas, pois há uma confusão por parte de Veja entre o conceito de ideologia e o conjunto de ideais que formam a visão de mundo de um partido) e político (esta palavra não pode ser usada apenas com a conotação negativa, esta, originada de casos do passado recente, desde Collor até ACM e Jáder) não devem ser esquecidos.
Tirando as matérias que nada têm de políticas, a grande maioria das reportagens têm um cunho moral. "O enriquecimento de Brizola no governo", "A farsa das eleições de 1994" (sobre a campanha eleitoral da atual governadora do Maranhão, Roseana Sarney ), "Os tentáculos do lobista chegam ao Planalto", "Gravações complicam Olívio Dutra" (sobre a possível ligação entre o governo estadual do Rio Grande do Sul com o jogo do bicho) e "Projeto de Aécio restringe a imunidade". Estes são os títulos de cinco matérias que procuram evidenciar casos de corrupção em diversos governos.
Enquanto prega a transparência nas ações políticas, Veja nega tal transparência em sua cobertura política, pelo manto da imparcialidade. Nas duas matérias que falam sobre política mas não utilizam o discurso moral como o centro da reportagem, a revista não é tão neutra quanto diz ser. "Nada de Fla-Flu" e "Em estado de graça" são os títulos destas matérias.
Na primeira reportagem, lê-se: "Como credencial mais forte para entrar no jogo sucessório, Paulo Renato de Souza [ministro da Educação] tem a apresentar a revolução que promoveu na educação brasileira. Elevou índices de permanência na escola, baixou taxas de analfabetismo, criou bons programas de incentivo educacional, como o Bolsa- Escola". Para começar, a revista se contradiz, já que em 31/10/01 (a edição anterior) afirma que "Paulo Renato Souza já comunicou pessoalmente a FHC que não vai à convenção do PSDB como pré-candidato à Presidência da República. Suas pretensões foram abatidas pela greve dos professores universitários e pela paralisação de seus índices nas pesquisas de intenção de voto". Uma semana antes de mostrar ao leitor um forte candidato tucano (em matéria de quase uma página), Veja mostra o ministro sem qualquer pretensão ou chance eleitoral (em pequena nota).
Já na segunda matéria, lê-se sobre a viagem de FHC à França e seu discurso na Assembléia Nacional, Veja tenta provar duas coisas: que Fernando Henrique é "o homem certo, com os homens certos, na hora certa", como diz o cientista político Fernando Abrucio, da FGV; e que "o eleitorado gosta deste tipo de viagem". Sobre a questão de viajar, duas opiniões convergem na opinião da revista: a dos dirigentes do Primeiro Mundo e a do povo brasileiro.
A revista escreve: "Nesse quesito, o candidato com mais chances nas próximas eleições presidenciais é Ciro Gomes, do PPS. Um levantamento do Vox Populi, feito no fim de setembro, mostra que 55% dos eleitores acham que Ciro Gomes é o candidato que melhor representaria o Brasil no exterior (…) Só 37% acham que Lula faria boa figura lá fora". Sem dúvida nenhuma, é uma honra para o presidente brasileiro discursar no parlamento francês e ser aplaudido diversas vezes. Mas a revista desconsidera dois fatores essenciais: a discrepância entre o que FHC diz lá fora e o que ele faz aqui dentro; e que a opinião do eleitorado a um ano das eleições sobre a possível imagem do futuro presidente brasileiro no exterior seja um argumento para desqualificar Lula (possível candidato do PT).
A cobertura de Veja sobre as eleições presidenciais de 2002 promete ser vigilante em relação à ética dos candidatos e dos políticos. Em 24/10/01, a revista escreve: "(…) sinal de que a sucessão de 2002 pode ser um jogo bem mais pesado e sujo do que se imaginava", sobre uma possível ligação entre José Serra (ministro da Saúde) e as acusações de corrupção envolvendo Medeiros, deputado pelo PL, numa empreitada que serviria para abalar uma coligação que estava sendo discutida entre PT e PL. Já na reportagem sobre Roseana Sarney (PFL-MA), a revista escreve que "tudo indica que a temporada será de lama". Parece haver uma torcida pelo tal jogo sujo nas eleições, em que as propostas políticas e "ideológicas" seriam deixadas de lado, para que o discurso anticorrupção surja como salvação, havendo material de sobra para a revista vender muitos exemplares.
A língua portuguesa
Nos outdoors de Veja espalhados pela cidade lê-se algo como: "A língua portuguesa é como videocassete: a gente usa, mas não conhece nem metade dos recursos". A reportagem de capa da revista desta semana se intitula "Falar e escrever bem, eis a questão" e conta ao leitor a necessidade de conhecer a norma culta da língua para que haja chance de "subir na vida".
Aqueles que discordam da opinião da revista e do professor Pasquale Cipro Neto são chamados, mais uma vez, de relativistas: "Elas [as críticas à Pasquale] ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desserviço à língua. De acordo com essa tendência, o certo e o errado em português não são conceitos absolutos. Quem aponta incorreções na fala popular estaria, na verdade, solapando a inventividade e a auto-estima das classes menos abastadas. Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular ? inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do ?povo?".
Existe primeiro uma desqualificação por parte de Veja dos argumentos dos tais "relativistas" a partir de sua própria ótica, dando grande espaço para o professor Pasquale (vedete da mídia) e nenhuma chance dos críticos de exprimirem a sua opinião. No livro "Preconceito lingüístico", de Marcos Bagno (Edições Loyola), o autor afirma que considerar a gramática como um padrão, algo a ser seguido como o certo e tudo o que está em desacordo com ela, errado, é um dogma (pois a considera absoluta) e uma distorção da realidade. A língua existe "em si". A gramática deveria ser apenas um indicador de tend&eciecirc;ncias de um meio de comunicação em movimento, com vida (já que não existe língua sem seres humanos), não uma maneira de estabelecer um ideal.
Assim como na última edição, Veja parece ser escrita apenas para funcionários de empresas multinacionais, que trabalham no meio corporativo. Talvez a revista os tenha como principais leitores, mas a abordagem do meio não pode se resumir a mostrar a visão de mundo de uma certa população para ela mesma, em um círculo fechado. É preciso abrir horizontes.
Os "relativistas" são chamados de tortos, esquerdistas de meia-pataca, alienados e alienantes, sem nem mesmo serem ouvidos pela reportagem. O debate deveria ser feito, mas a revista insiste em contar apenas a sua própria visão, correspondente à de Pasquale. "A mobilidade social é possível se a classe mais pobre tiver o domínio da linguagem culta". Marcos Bagno rebate esta afirmação com três argumentos:
1) Se isso fosse verdade, as pessoas que melhor dominam a norma culta (os professores de português) formariam o topo da pirâmide social. Como sabemos, isso não é verdade.
2) Afirmar isto é o mesmo que pregar que o aumento de policiais e de penitenciárias reduziria a violência, um discurso recorrente na direita (coincidentemente, oposição ao relativismo de esquerda), que esquece o lado social.
3) Esta face social e humana não pode ser esquecida, pois qual a vantagem para uma pessoa que não mora em uma casa decente, e que não tem acesso a luz elétrica, água encanada e rede de esgoto, saber a norma culta de sua língua materna?
Os tigres asiáticos
Em 31/10/01, Veja escreve que a ascensão do Terceiro para o Primeiro Mundo "não é impossível. Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e Cingapura a realizaram". A revista esquece de tratar o tema historicamente. No site Brasil Independente encontra-se um excelente texto, chamado "Coréia do Sul, Cingapura e Taiwan ? democracias ditatoriais" <www.brasilindependente.hpg.ig.com.br/43f-MCdoSulCingapTaiwan.htm>.
No texto, lê-se que o Japão escolheu Taiwan e Coréia do Sul para lá fabricar produtos mais baratos, pois sua mão-de-obra era barata e desqualificada, ao contrário do trabalhador japonês (qualificado e caro). Os produtos japoneses, antes caros devido ao alto custo com salários, se tornaram novamente competitivos, às custas de longas jornadas de trabalho e baixos salários de coreanos e taiwaneses. Nos últimos anos, a economia coreana tem alternado altos e baixos índices de crescimento, tendo sido auxiliado pelo FMI, no maior empréstimo já feito a um país até hoje.
Veja deveria considerar como ocorreu este ?desenvolvimento? dos Tigres Asiáticos, antes de exaltá-lo como modelo para os países emergentes. Longas jornadas de trabalho, baixos salários e destruição do meio ambiente não são formas aceitáveis para que um país se desenvolva.
Ciência e riqueza
Em duas reportagens vemos os temas "ciência" e "riqueza" juntos. A primeira é "Quanto mais tarde, mais difícil", que fala sobre as possibilidades de a mulher engravidar após os 40 anos. A matéria parece querer conscientizar as mulheres que não podem adiar a sua gravidez indefinidamente pois, quanto mais avançada a idade, mais difícil será realizar o seu sonho, o seu projeto de vida: "Primeiro se formar. Depois fazer carreira. Em seguida casar. Daí aproveitar ao máximo a vida a dois. Por fim, com a profissão e o casamento estabelecidos, chega a hora de ter filhos."
Além de partir deste modelo de vida planejada, Veja restringe ao máximo o público da reportagem: as entrevistadas são apresentadoras, executivas, secretárias, empresárias, administradoras ou psicólogas. A escolha das pessoas através das profissões se deve ao fato de que a maneira mais eficiente para a mulher com mais de 40 engravidar é a fertilização in vitro, o mais caro entre todos os tratamentos (segundo a reportagem, o custo é entre 5 e 12 mil reais). Por que Veja não fala de casos de mulheres que engravidaram mais cedo, ou que têm muitos filhos, ou que querem engravidar, mas não conseguem e não têm dinheiro para fazer uma fertilização in vitro?
A segunda matéria é "Adrenalina ? Por que corremos riscos", em que Veja promete dar respostas ao fato de pessoas arriscarem a vida pelo prazer de esquiar, mergulhar ou pular de aviões. A revista, não satisfeita com as respostas dos entrevistados (aqueles que realmente passam pela experiência e, supostamente, sabem o que e por que estão fazendo aquilo), recorre à ciência para explicar a prática de esportes de alto risco.
Os entrevistados geralmente falam que os esportes dão "um prazer muito grande", "uma sensação muito boa". A revista escreve: "Hérica Sanfelice (…) quando pode, se arrisca em corridas de aventura. "O medo funciona para você se concentrar e ficar mais atento", acredita" e, um pouco antes: "A descarga de emoção que Freitas, Sabiá e seus colegas radicais perseguem é, fisicamente falando, uma reação bioquímica que envolve a liberação no cérebro de três substâncias: a conhecida adrenalina, a endorfina e a dopamina".
Sutilmente, Veja dá a entender que o que Hérica falou é a opinião dela (o que ela acredita), mas "a verdade" é encontrada nas substâncias liberadas no cérebro. A revista, portanto, tem uma visão cientificista, que só crê que algo seja verdade, se estiver baseada na ciência, na explicação científica. Além de tratar de uma modalidade esportiva elitista, em que apenas uma minoria da população tem dinheiro e oportunidade de dedicar uma parte de seu tempo aos esportes radicais, a abordagem é simplista e pouco antropológica.
Para finalizar
Veja considera que a sua cobertura política não pode ser engajada, ideológica, enfim, verdadeiramente "política", mas só verificamos isso quando o assunto é a ética. A defesa da moralidade se torna um discurso consensual, impossibilitando que a abordagem de assuntos políticos vá além do óbvio e se torne plural. Entretanto, às vezes, a revista comete lapsos, e elogia abertamente FHC e Paulo Renato (ministro da Educação).
A revista acredita que apenas com o domínio da norma culta é possível a ascensão social, desconsiderando o caráter transitivo da língua e a face humana da desigualdade social. Na semana passada, a revista Veja havia estabelecido a Coréia do Sul como modelo para o desenvolvimento dos países emergentes, esquecendo as condições históricas (de exploração dos trabalhadores e destruição do meio ambiente) que tornaram aquele país uma das maiores taxas de crescimento do PIB.
E, finalmente, há, no discurso de Veja, uma associação constante entre riqueza e tecnologia (produto da ciência). Primeiro, as pessoas que não têm acesso à tecnologia de fertilização in vitro, por causa de seu alto custo, são esquecidas; e, segundo, a revista buscou explicar exclusivamente pela ciência, porque pessoas (uma minoria) que têm tempo e dinheiro o gastam com esportes radicais.