JORNALISMO DIÁRIO
Ricardo Noblat
Primeiro tópico do capítulo 1 de A arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat, 174 pp., Editora Contexto, São Paulo, 2002
Cenário: uma banca de jornal no centro de uma cidade. Personagens: um jornalista que tenta comprar jornais e revistas e um cidadão de meia idade que lê as manchetes dos jornais expostos na banca.
Cidadão ? Eu acho que conheço o senhor… O senhor é jornalista, não é mesmo?
Jornalista ? É, eu sou…
Cidadão ? Já vi sua fotografia no jornal…
Jornalista ? É, ela já saiu algumas vezes…
Cidadão ? Posso lhe perguntar uma coisa?
Jornalista ? Veja, eu estou meio apressado… Mas pode perguntar, sim.
Cidadão ? Por que os jornais se parecem tanto?
Jornalista ? Como?
Cidadão ? Por que os jornais são tão parecidos? Por que tratam quase sempre dos mesmos assuntos?
Jornalista ? Porque notícias importantes interessam a todos eles. E são publicadas por todos.
Cidadão ? E quem decide que uma notícia é importante?
Jornalista ? Ora, nós sabemos quando estamos diante de uma notícia importante.
Cidadão ? Então são os jornalistas que decidem quando uma notícia é importante?
Jornalista ? Bem, digamos que seja…
Cidadão ? E se os jornais se parecem tanto é porque os jornalistas pensam da mesma maneira?
Jornalista ? Mais ou menos…
Cidadão ? Quem compra jornal pensa como a maioria dos jornalistas?
Jornalista ? Acho que não. Há pesquisas nos Estados Unidos que provam que não. Mas se compra é porque reconhece que os jornalistas sabem em geral escolher bem o que publicam.
Cidadão ? Então os jornais vendem cada vez mais?
Jornalista ? Não, a maioria dos jornais no mundo vende cada vez menos.
(O cidadão olha o jornalista com ar de espanto e se cala por alguns segundos. Quando vê que o jornalista faz menção de ir embora, retoma as perguntas.)
Cidadão ? Por que os jornais têm tantas páginas?
Jornalista ? Porque têm muitas notícias e anúncios.
Cidadão ? E as pessoas têm tempo para ler tanta coisa?
Jornalista ? Não. Cada vez elas têm menos tempo.
Cidadão ? E tem aumentado o volume de anúncios nos jornais?
Jornalista ? Pelo contrário.
Cidadão ? Então por que os jornais não têm menos páginas?
Não sei… Mas o senhor está começando a me irritar…
(O cidadão parece claramente confuso. O jornalista se empenha em fazer de conta de que está apenas irritado com tantas perguntas.)
Cidadão ? Jornal existe para quê?
Jornalista ? Para informar as pessoas. Também para instruí-las e diverti-las.
Cidadão ? Então tudo o que interessa às pessoas tem no jornal?
Jornalista ? Quase tudo. Ou grande parte.
Cidadão ? Os jornais publicam muitas notícias sobre política e economia, não é?
Jornalista ? Publicam, sim.
Cidadão ? Quer dizer que os leitores se interessam muito por elas?
Jornalista ? Não, elas despertam cada vez menos interesse. Pelo menos da forma como são escritas ou apresentadas.
Cidadão ? E que tipo de notícias desperta mais interesse nos leitores?
Jornalista ? Notícias sobre temas que afetam mais diretamente a vida deles. Notícias, por exemplo, sobre saúde, educação, sexo, ciência, políticas públicas…
Cidadão ? Mas os jornais não estão cheios delas, não é?
Jornalista ? É. Não estão…
(A essa altura, o jornalista e o cidadão estão rodeados por meia dúzia de pessoas que passavam por ali e se interessaram pela conversa.)
Cidadão ? Os jovens lêem jornais?
Jornalista ? Lêem pouco. E cada vez menos.
Cidadão ? Mas o que os jornais fazem para atraí-los?
Jornalista ? Não fazem muita coisa.
Cidadão ? Se não atraírem leitores jovens, no futuro os jornais não terão mais leitores, estou certo?
Jornalista ? Está, sim. É mais ou menos isso.
Cidadão ? Então a idéia dos jornalistas é acabar com os jornais…
Jornalista ? O senhor me desculpe, mas tenho que ir embora.
(O jornalista sai de cena. O cidadão e as demais pessoas ficam por ali comentando baixinho o que ouviram. A cortina baixa.)