Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tragédia é perder a novela

Fabiano Golgo, de Praga

Não foi a morte dos bombeiros nem o vexame internacional. A maior preocupação da população russa durante o incêndio na segunda maior torre do mundo foi a perda dos capítulos da novela hispânica Manuela. Do edifício mais alto da Europa, com mais de meio quilômetro de extensão, são transmitidas as imagens de cinco emissoras de TV: a estatal RTR e a pública ORT, além das privadas NTV, TV6 e TVT,

Emissoras de rádio estatais passaram os dias em que a Torre Ostankino ardia lembrando à população que as novelas (além de Manuela, a brasileira Torre de Babel, uma venezuelana e outra argentina) seriam apresentadas normalmente assim que a situação fosse resolvida. Até psicólogos entraram na história, alertando para os perigos que causam a quebra de hábitos diários, como o de assistir a novelas. Conforme disse na ORT Sergej Kadirov, a mudança de agenda se manifesta inclusive com dores físicas, como entre viciados comuns.

O que inicialmente soa bizarro na verdade acontece. Não foram poucos os casos de ouvintes ligando para as rádios dividindo a dor da falta. Aproveitavam para fazer previsões do que aconteceria com os personagens da novela naqueles dias de privação. Na noite de segunda-feira, tinha gente gritando contra o presidente Putin por não fazer nada a tempo de se poder apresentar a novela. Na terça, as reclamações se repetiram.

O governo primeiro

A torre passou a transmitir na quarta-feira, 31 de agosto, de um ponto alternativo poupado pelas chamas, as imagens das duas emissoras ligadas ao governo em uma única freqüência, com programação combinada. Só que elas voltaram ao ar com um cardápio simples: notícias, alguns filmes antigos e as tais novelas. O resto dos programas vai ter que esperar. Os capítulos das amadas telenovelas podem ser vistos várias vezes durante a programação, para acalmar os nervos dos cidadãos que passaram dois dias sem sua "droga".

O alcance que a torre permite às emissoras dali difundidas a torna uma apreciada arma de propaganda. A torre permite que as duas estações ligadas ao governo atinjam os confins da Rússia e da Comunidade dos Estados Independentes, ao contrário das privadas, que não têm direito a mandar seu sinal para a imensidão do território do país. Obviamente isso assegura a chegada apenas da voz oficial a vários cantos da Rússia.

Ievgueni Kiseliev, diretor da NTV, acusa o governo de estar dando prioridade às transmissões da RTR e da ORT. O dono da emissora, o magnata Vladimir Gusinsky, recentemente protagonizou outra novela, esta russa, com direito a prisão injustificada e brutalidade policial. Agora, teve que fazer um acordo às pressas com um distribuidor de TV a cabo, cobrindo apenas Moscou e redondezas. Mikhail Mesin, ministro da Mídia de Massas, disse que cabe ao governo cuidar primeiramente do que lhe pertence, enquanto as privadas devem procurar alternativas próprias se quiserem uma solução mais rápida.

Vergonhas e derrotas

Também saíram prejudicados serviços de pager e alguns de satélite e telefonia celular. Além dos bombeiros, que usaram o elevador da torre em chamas e nele morreram, quem saiu mais queimado do acidente, no entanto, foi o governo.

Parece que o presidente Vladimir Putin passa por uma reviravolta da incrível sorte que teve desde o dia, há pouco mais de um ano, em que a "família" de Boris Yeltsin resolveu se agarrar ao nome dele para garantir uma sucessão que a livrasse de uma investigação criminal acerca de seus devaneios com o dinheiro público. Putin agradou facilmente ao paladar russo, que viu nele um homem jovem (basta compará-lo à procissão de líderes quase moribundos da história local), um ar fresco no Kremlin, ainda por cima cheio de patriotismo – como tanto gostam os russos –, mão firme, decisões sérias e "heróicas", tudo de acordo com a psique do eleitorado.

A guerra na Chechênia serviu de emblema e estandarte para sua entronação. Recebido o cetro, começou a amargar escândalos, mais adiante vergonhas e derrotas. Em janeiro o desaparecimento do jornalista Andrei Babitski foi o primeiro grito contra o novo homem do Kremlin. Tinha principalmente sotaque estrangeiro, mas também ouviu-se a voz corajosa da imprensa local e de pessoas engajadas na defesa dos direitos humanos. Em seguida começou-se a discutir se a Chechênia não viraria o Vietnã russo, em alusão à longa e malfadada guerra dos americanos nos 60/70. Bombas aterrorizando cidadãos em Moscou apenas serviram para lembrar que toda a retórica dos poderosos conjugada ao sacrifício de milhares de soldados mortos em combate (a maioria cumprindo serviço militar obrigatório) não impediria a eterna resistência chechena.

Centenas de perigos

Para piorar a situação e expor definitivamente o que o mundo já suspeitava, a tragédia do submarino Kursk ridicularizou as Forças Armadas de Putin, pondo em dúvida seu proclamado foco na área militar. As manchetes refletem a indignação geral, inclusive em veículos tradicionalmente alinhados ao Kremlin.

Como se não bastasse, veio mais esse fiasco: a torre que tanto orgulhava os russos pega fogo e as chamas não podem ser combatidas por simples falta de aparelhamento dos bombeiros, que ainda por cima provam não terem sido devidamente treinados, como mostra o caso do elevador.

Começa-se a suspeitar da capacidade de Putin de reaparelhar o país, incapaz de salvar o submarino ou a torre. Falta à Rússia e a seu líder o aparelhamento necessário para as mais essenciais tarefas. Uma colunista do Moscow Times, Ievgenia Albats, conta que, em 1991, o ex-chefe da KGB general Viktor Ivanenko disse que escrevera carta à cúpula do Kremlin avisando que 236 instituições-chave para o funcionamento da então União Soviética estavam em grande risco. Dentre elas, todas as plantas de energia nuclear, indústrias químicas, dutos de amônia e cloro, além de todo o complexo de defesa. Hoje, 189 das plantas listadas ainda fazem parte do território russo (as outras estão em terras da CEI e nos países bálticos). Apenas uma teve reparos.

A Rússia tem centenas de perigos que podem surgir a qualquer momento, nenhum deles com séria possibilidade de ser vencido. Falta ao país o que há de mais essencial em manutenção de seu arsenal nuclear e de suas indústrias químicas. A torre, o submarino, a Chechênia, a liberdade de imprensa e tantos outros fracassos podem ser apenas a ponta do iceberg.

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