IMPRENSA & SUPERFICIALIDADE
Gibran Lachowski (*)
O olhar do jornalista é direcionado para o alvo falso, de foco mínimo, algo micro. Ele é impelido a acertar na falsa mira falsa. Péssimo para quem o lê, o vê, o escuta, sente sua sensibilidade (ou a falta dela).
O olhar é diminuto, reduzido, apequena-se na matéria, mantém um padrão que desagrada a quem reflete. Tende a esmagar o tamanho da situação a uma caixa alegre, que encante o consumidor. Isso faz parte da maquinaria, da engrenagem ideológica da indústria de produção em massa, a mídia convencional, a que considera a notícia uma mercadoria (diz a Cremilda Medina, estudiosa do processo noticioso) e não um bem social (como ressalta a Beth Costa, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas).
Alberto Dines, editor-responsável pelo Observatório, afirma que a simplificação/generalização corresponde ao "mais perigoso dos subprodutos da homogeneização que domina a mídia brasileira", e reduz os fenômenos a seus aspectos ["Os perigos da simplificação", manchete deste Observatório (10/6/2003), remissão abaixo]. Ele fala que esse recurso, em vez de facilitar, adultera o envoltório e falsifica o conteúdo.
A descoberta e o escondido
Acresço que essa prática, efetuada de forma consciente ou não, integra a prateleira de artifícios utilizados pela engenharia jornalística comprometida com o poder, e não com a verdade (a repleta por "cães de guarda", como grafou Paul Nizan em 1932). Sugestão de leitura: Os novos cães de guarda, de Serge Halimi, editora Vozes, 1998.
Essa arquitetura noticiosa produz a cultura burguesa de opressão lingüística, que se trata, no caso, da apropriação da linguagem jornalística voltada para a reprodução dos interesses das elites e de seus amigos e inimigos circunstanciais, que estão próximos ou em lugares opostos conforme as conveniências. Ou seja: a transformação da conduta intelectual (da escolha do assunto à produção do texto) em porta-voz dos discursos oficiais. Entenda por oficial não o que se refere ao poder público, mas o que tem a ver com a hierarquia de poderes na sociedade ultra-capitalista, a exemplo da brasileira.
A "metonímia enganadora", mencionada pelo professor Muniz Sodré [remissão abaixo], é mais um recurso que denota redução de foco, uma opressão de raciocínio materializada na esfera da linguagem verbal. Para o estudioso, a estratégia está sendo desenvolvida contra o funcionário público, bode-expiatório da Previdência.
Entendo que esse viés frouxo se sustente jornalisticamente numa compreensão errada de o que seja a notícia. Notícia não é o novo, a novidade. Notícia é o relevante. Parece óbvio, mas não é. Não quero entrar no debate acerca dos múltiplos ângulos que uma notícia pode ter, só estou assinalando a missão jornalística como algo público, de interesse coletivo e estabelecendo um contraponto com o produto qualquer, a mercadoria insignificante, o consumível que não faz diferença (e que quando faz não passa de uma sensação efêmera, aquilo que afeta, mas não envolve, não transforma, não conscientiza, não discute, não reflete, não ultrapassa a linha da superficialidade, e quando ultrapassa, não avança para a linha da complexidade).
A empresa noticiosa se debruça sobre o vislumbre, a descoberta, o escondido. Entretanto, esse cheiro de recém-fabricado, esse gosto de recém-dimensionado, tudo isto são, na maioria das vezes, outras coisas que não novidades.
Frieza e ignorância
Em grande parte dos casos o novo já foi previsto, debatido, anunciado, contudo não estou querendo dizer que a recepção ao caos e às crudelidades sejam vistas como naturais e deixem de gerar indignação. Apesar do potencial de comoção, agregação ou divisão do que nos é mostrado via jornalismo, não estamos tratando de uma novidade, mas, sim, de uma "falsa novidade", "pseudonovidade", "aparente novidade".
Por que a insistência nesse ponto? Por que a crença de que o jornalismo é a busca do novo centraliza a atenção do estudo noticioso em aspectos isolados, em ilhas, encerra a explicação do todo em partes, enfatiza trechos mais inteligíveis, relega a planos inferiores o que se apresenta cheio de obstáculos para a compreensão, joga luzes no que causa mais espanto instantâneo, mais contradição instantânea, mais riso ou tristeza instantâneos.
A concentração do esforço jornalístico no novo é um constante estímulo à construção de histórias tendo por base micro-contextos, contextos imediatistas, contextos com uma margem de abrangência tão curta e atraente quanto ao fato central que motivou a cobertura.
O que significa esquecer o novo e partir para o relevante? Significa "desindividualizar" a dinâmica noticiosa, canalizar energias para contar histórias formadas por cernes coletivos, linhas que tentem abarcar o interesse público (algo tão difícil de ser delimitado, todavia que pode ser traçado no dia-a-dia por meio do debate). É alargar os contextos, enfocar as circunstâncias que possuem relação com os acontecimentos e não, apenas, se contentar em esgotar o assunto em si.
Portanto, abandonar a visão tosca de notícia significa admitir que o fato não é a notícia, porém que o fato corresponde a uma conseqüência lógica de um processo deflagrado há muito, isto na maior parcela das situações. Quer dizer, o fato enfocado agora é uma resposta a uma série de acontecimentos anteriores, inúmeras vezes ignorados pela imprensa ou por ela divulgados de forma fria, sem concatenação com o derredor, sem apontamento explícito para possíveis reações.
Sem o mais importante
Então, a notícia é todo o caminho percorrido, além o fato explosivo/o acontecimento demarcatório. E não somente a última parte. E também não adianta edificar ao ponto máximo o último fato e fazer "suítes", cronogramas, "historicozinhos" para explicar as razões pelas quais a gravidade passou a fazer parte da nossa história. Geralmente, essas reminiscências se atêm somente a informações visíveis, fáticas, deixando de lado o que as engendraram. As formas de abordar os temas devem tender para o totalizante (veja bem, não estou falando de absoluto), o realmente contextualizador.
Antes de citar análises do que a mídia fez, menciono algo que eu, enquanto membro da imprensa, fiz errado. Em meados de 2002, no Diário de Cuiabá, jornal mais tradicional da capital e um dos mais antigos de Mato Grosso, fiquei comovido com o caso de uma moça que recebera uma conta de energia altíssima. Tratava-se de uma morada com duas peças e dois bicos de luz, que ficavam acesos de 2 a 3 horas por dia. Foquei o absurdo que a concessionária Rede Cemat estava cometendo contra ela. Hoje vejo que deveria ter ido mais fundo, e a considerado um símbolo da carestia de um serviço básico norteado por acordos de cunho antipopular entre o governo brasileiro e um setor empresarial multinacional e especializado e mantido a partir de um sistema que não incumbe da fiscalização a esfera mais próxima do cidadão ? a municipal ? e que mantém o poder estadual (Procon) com a mesma estrutura física e pessoal, apesar do aumento da impessoalidade no contrato consumidor/firma (privatização).
Além dessa matéria, outras tantas minhas poderiam ter se erguidas acima da mediocridade.
Nos dias 8 e 9 de junho, os meios de comunicação de Cuiabá e Várzea Grande (MT) noticiaram que Divino Ferreira da Silva, 35 anos, havia morrido dias antes por falta de vaga em UTI do SUS depois de uma espera de 24 horas. E pararam por aí. Pensaram que a notícia fosse a morte do homem. Não era, não é. O grande fato repousa na seguinte contradição: o sistema público criado para salvar está matando, e há vários anos.
No fim da matéria dedicada à resposta da responsável pela central de regulação de vagas do SUS, o dado mais importante: faltam pelo menos 98 leitos em UTI nos hospitais ligados ao sistema público na capital.
Ordem perversa
Quinze dias atrás a manchete foi a revelação de que um deficiente mental internado no Adauto Botelho, unidade especializada em Cuiabá, houvera sofrido abuso sexual. Por quem? Por um outro deficiente, porém criminoso. O crucificado? O agressor. Não pesaram a barra sobre as gestões estaduais ? nem a atual nem as anteriores ?, que mantiveram juntos universos tão conflitantes. Perderam a oportunidade de analisar que visão temos a respeito dos deficientes mentais, de que forma eles se relacionam com a "sociedade sadia", qual a atual política de saúde voltada para eles, quais as falhas e as propostas para melhoria de seus tratamentos.
Em tom retumbante a secretaria de Saúde anunciou que em 90 dias os deficientes mentais criminosos serão transferidos para um presídio e lá terão as condições de tratamento adequadas. Serão adequadas? E outra: enquanto a transferência não ocorre, o que muda no Adauto? Isso foi pouquíssimo explorado.
Esse mesmo tipo de jornalismo é o que nos leva a "ler" (leitura de mundo) que a ofensiva contra o Iraque foi uma guerra e não um massacre, que os discordantes do PT são radicais e não lúcidos, que as vaias contra Lula partiram de poucos descontentes e não de um grupo coeso, decidido e prejudicado.
O que proponho é o rompimento com o padrão tridimensional da notícia, quer dizer, o informativo, o interpretativo e o opinativo. O primeiro funciona como a vedete e, por isto mesmo, apenas mostra os contornos dos enlaces e desenlaces sociais. O segundo, também chamado de reportagem, fica para os fins de semana e as revistas. O terceiro tem espaço bem menor, bem menos destacável e quase sempre opera sob a responsabilidade do autor (uma forma de diminuir, e muito, uma visão transformadora).
Não ao império dos "seis gritos iniciais" (o que, quando, como, onde, por que, para que)! Não à hierarquização da informação calcada no entendimento formal de o que seja notícia (novidade)! Não à redução de foco! Não à opressão lingüística que chama aposentados de inativos (imagem de inúteis), estadunidenses de americanos (brasileiros também são americanos), que grafa prefeitura com letra maiúscula!
Para subverter essa ordem jornalística perversa, sustentada em boa parte pelos modelos estadunidenses, é necessário que a empresa jornalística brasileira seja humanizada. Ou seja, que os jornalistas deixem de ser robôs que saem a fazer matérias, capturam dados fechados, distribuem-nos em compartimentos pré-delimitados e pronto. Os jornalistas têm de governar o ritmo robótico, têm de estar acima dos padrões, têm de utilizar variedade de modelos, e não se aprisionar em alguns que deram certo ("circulação circular da informação", expressão de Pierre Bourdieu, sociólogo, assinalada no livro Sobre a televisão, Jorge Zahar Editor, 1997).
Porta-vozes das elites
Optar pelo jornalismo reflexivo em vez do vislumbre das fissuras dos mundos político, econômico, cultural… pressupõe apurar menos notícias, tratar de menos assuntos. Menos dinheiro? Não. Na verdade, uma escolha inteligente inclusive quanto à concorrência. Pois enquanto a grande parcela continuar a disseminar impressões da realidade, os meios que apostam em reflexões atrairão pelo embate, pela discussão, pelo questionamento interno, pelo chamamento à utilidade social de quem lê o mundo.
Um método a ser levado em conta: os assuntos de relevância (conforme debate interno na empresa) ficarão a cargo de jornalistas que terão mais tempo durante o dia para pesquisá-los e que desenvolveram matérias maiores e com mais destaque. Os temas menores serão postos em notas. Isto é, também haverá profissionais, de preferência em rodízio, que se dediquem aos microrrelatos do cotidiano.
Mas subverter a ordem das coisas é o mesmo que acertar o coração da cultura burguesa, que rege a mídia brasileira e que dela se beneficia sobremaneira, nos campos do pensamento, da conduta! Exatamente. Esse é o patamar máximo da batalha ? e ela existe. E deve ser iniciada pelos jornalistas, principalmente os que permanecem nas firmas convencionais. Deles é que deve partir a ojeriza à subserviência jornalística de atuar como porta-voz dos desejos da elite e seus apaniguados.
Fecho o ensaio com palavras de Robertinho Boaventura, autor da cartilha Veja lidera bombardeio contra MST ? um ano depois da edição de 10 de maio de 2000, Cadernos Populares/Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso, 2001. Ele escreve ao fim do estudo que:
"Estes meios e veículos de comunicação, porta-vozes das elites político-econômicas, têm exatamente essa tarefa no sistema capitalista. […] Daí a urgência de a sociedade lutar pela democratização dos meios de comunicação no nosso país. Enquanto esse estágio não for atingido, os empresários e os políticos que detêm a hegemonia dos meios de comunicação vão continuar defendendo a situação atual".
(*) Jornalista em Cuiabá
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