Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tratos à língua e pauladas na mãe

NA GUERRA E NA PAZ

Deonísio da Silva (*)

Talvez tenha sido Millôr Fernandes o autor original da espirituosa advertência de que a República não aboliu a Regência, incomodado com tantos atentados contra a gramática. As transgressões da norma culta podem constituir-se em recursos indispensáveis a romancistas, contistas, poetas.

Aos casos mais célebres. Jorge Amado, empenhado, na vaga do Romance de 1930, em registrar os diálogos dos personagens tal como eram proferidos na realidade documental que procurava espelhar em seus romances, foi chamado de analfabeto. Graciliano Ramos fez outras opções frente a dilemas semelhantes e mostrou como podem ser conciliados norma culta e registros documentais semelhantes. Erico Verissimo, entre tantos outros exemplos, mostrou que o gaúcho empregava "le" em vez de "lhe". Duas décadas mais tarde, João Guimarães Rosa cunhou o dito famoso de que pão ou pães era questão de "opiniães". Antes, ainda nos anos 1920, os modernistas questionaram duramente a rigidez da norma culta, entre outros atrevimentos. Nos anos 1970, no que se convencionou denominar boom do conto, jornalistas, publicitários e centenas de autores estrearam em livro para expressar, na literatura, o que lhes estava impedido em outros discursos, dados os temas de que se ocupavam e o império da censura. A metáfora, a alegoria e outras figuras de linguagem despontaram como grandes recursos.

Mas e agora? Quem está obrigando a escrever textos que são, além de confusos e dispensáveis, verdadeiros crimes de lesa-língua? E quais os motivos de tanta omissão e descaso diante do quadro tenebroso? É freqüente que intelectuais, misericordiosos com quem erra tanto, defendam os transgressores em nome de um vago respeito ao povo e aos que, às vezes sem procuração, falam e escrevem em nome dele. Às vezes, o absolvido não é o pecador, é aquele que se pôs no lugar do confessor que, assim procedendo, legitima o escrito desjeitoso do outro num pacote completo ? que inclui, naturalmente, também a sua crítica absolutória.

Recurso desnecessário

Do simples ao complexo. Machado de Assis cobria o Senado. Nossos jornalistas, hoje encarregados de ofício semelhante, lêem o homem? Tornou-se usual "fazer colocações", "comentar sobre" e usar "onde" como coringa da língua portuguesa, utilizando-o, não como advérbio e pronome com funções previamente especificadas, mas até mesmo na substituição de "quando".

Pequeno exemplo. Diário de S.Paulo (30/3/03, pág. A12). Título: "Tropa de elite controla da agenda até o que o presidente Lula fala". Claro, não?

Terá sido pressão ocasional da tropa de choque da polícia? Influência tardia da tropa de choque que no Congresso tentava sem sucesso evitar discursos, intervenções e procedimentos que fatalmente levariam à deposição do presidente Fernando Collor? Como podemos conceber, no caso, uma tropa de elite? O autor conhece as palavras que está usando? Sabe o que é elite, sabe o que é tropa?

Tal como no caso da regência, seria conveniente, em caso de dúvida, consultar mestres, gramáticas, dicionários. A tecnologia facilitou muito tais pesquisas. No computador, às vezes um simples toque numa tecla baixa o "claro raio ordenador", tão desejado por ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade.

Com efeito, a tal "tropa de elite" é composta de apenas três pessoas, identificadas por nomes e fotos a seguir. São a arquiteta Clara Arnt, o filósofo e teólogo Gilberto Carvalho e a engenheira Miriam Belchior, ex-mulher do prefeito de Santo André, Celso Daniel, assassinado em janeiro do ano passado.

Como este artigo deve ser curto, limito-me a profundar um dos exemplos. Tropa entrou para a língua portuguesa no século 17, mas existia no francês desde o século 13. Provavelmente foi em troupe que o português se inspirou para adotar tropa. E os franceses terão recebido troupe do germânico throp, que no alemão consolidou-se como Trupp e Truppe. Não é indispensável, porém, e talvez nem necessário o recurso à etimologia para verificar que em se tratando de pessoas, como é o caso, tropa pode designar multidão, ainda que organizada, como no caso de forças militares. E que três não é um número suficiente para formar uma tropa. Por que o autor não consultou um dicionário? Houve revisão de seu texto ou ele foi publicado na versão em que chegou à redação?

O artigo está ficando comprido. Deixo elite, palavra que veio também do francês, radicada originalmente no latim ex legere, escolher, para outra oportunidade.

Protegida, defendida, estudada

Ler é escolher e colher significados sugeridos pela etimologia
do vocábulo. Li e colhi outros exemplos. Na cobertura da
guerra EUA x Iraque, o assunto é bem mais complexo. Lembram-se
dos tempos em que o ditador da Líbia não saía
do noticiário? Tinha vários sósias e assemelhados
no próprio nome. Seu nome era escrito Kadafi, Khadafi, Kadhaphi,
Gadhafi, Ghadafi. Seu nome, como o do Outro, era Legião.
Pois agora estão aparecendo nomes de pessoas e de localidades
que confundem o leitor.

Minha pequena colheita teria uma chave de ouro. Lendo a Folha de S.Paulo (30/3/03, pág. A2), encontrei em latim, no título de uma das colunas, a expressão "pelas mães" declinação da palavra latina "mater" (mãe), acentuada: "mátribus". Leitor de Carlos Heitor Cony ? em encontros de escritores, tenho tido o gosto de dizer-lhe que a sua coluna é o primeiro texto que leio na Folha, pois encontro sempre ali o granus salis do cronista, por enfadonho que às vezes esteja o resto do texto, já que ninguém mata um leão por dia ? minha decepção aumentou. O mesmo acento repetia-se no corpo do texto. A frase latina é bella matribus detestata (as guerras são detestadas pelas mães). Eu lembrava que tinha citado recentemente a frase, mas onde? Ao gravar este artigo ? "salvar como" está escrito na versão portuguesa do word, que pode inspirar tema de outra coluna ? para o Observatório, vi de repente, ex abrupto, a mesma frase em meu artigo da semana passada [veja remissão abaixo]. Fui correndo à edição para me certificar outra vez de que Luiz Egypto não tinha acentuado o que não tem acento.

Não tomem por jactância, facúndia ou tique do professor Astromar. Em Roque Santeiro, de Dias Gomes, o famoso personagem, ao chegar à casa da namorada, perguntava antes de entrar: "Posso penetrar?" Mas aqui não acentuamos a expressão latina. A Folha de S.Paulo, que aboliu por conta própria o trema, tirou acentos que o português tinha e tem, e colocou acento que o latim não tinha e não tem. Como nos hospícios, nem todos os que são, estão. E nem todos os que estão, são.

Não vou assinar este artigo como Simão Bacamarte,
mas O Alienista e Machado de Assis, entre outros, precisam
ser lidos constantemente. É freqüente que nossa imprensa
apresente textos escritos por indivíduos quase ágrafos.
Indivíduos ou elementos? A polícia diz sempre elementos.
Eles costumam evadir-se, em vez de fugir. Não é esta
a linguagem que queremos. Mas pelo amor de Deus, se quem escreve
não é botânico, trate de cuidar da jardinagem
com as devidas cautelas. O leitor não tem tal obrigação.
Ele merece que nos façamos entender sem desjeitosas submissões
aos ignaros e ágrafos. Se fosse para escrever de qualquer
jeito, por que o Estado e outras instâncias, incluindo nossa
família, gastaram tanto com instrução? E se
queremos ser entendidos, por que apelar para um tipo de linguagem
entendida somente pelos que fazem colocações em congressos.
Bem, o galináceo desconhece a influência espanhola
da ponencia e faz suas colocações em forma
de ovos.

Nossas universidades, especialmente nos cursos de Letras, estão lançando ao desemprego milhares de jovens que poderiam prestar bons serviços na luta contra esses abusos. Há também aqueles profissionais de Letras que, temerosos das leis que assolam as reformas, tornaram-se aposentados precoces no serviço público. Poderiam ser contratados outra vez. Na imprensa, nas empresas e nas instituições públicas. Se a língua, além de nossa mãe e símbolo de nacionalidade, é também instrumento de cidadania, que seja protegida e defendida. E, principalmente, estudada.

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