Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Três guerreiros, um jovem triste

MARIO COVAS

Marcelo Aires (*)

Nos últimos 10 anos acompanhei, como alvo do bombardeio midiático, a morte de três ícones de nosso país: Ayrton Senna, Tom Jobim e, agora, Mario Covas.

No auge da carreira de Senna eu tinha pouco mais de 20 anos, e gostava muito (ainda gosto, pero no mucho) das corridas aos domingos. Mesmo observando um mundo que não compreendia muito bem, povoado por falsas-viúvas e jornalistas aproveitadores, reconheço que as sensações de felicidade das manhãs dominicais eram impagáveis. Um fato me fascinava acima de todos: a bandeira brasileira no alto e a dos demais países, sempre do Primeiro Mundo, a lhe prestar reverência. Ver as cores do Brasil tremulando na volta da vitória e, depois, no alto do pódio me emocionava. Entretanto, meu herói se foi, a mídia fez sua parte, e chorei naquele 1o de maio. Perdi um pouco do interesse pelo assunto, pois nunca mais ouvi o hino no domingo de manhã. Sinal de que o produto que realmente vendiam não era exatamente o evento. Pelo menos para mim.

Então era o hino!

Redescobri a música brasileira. Passei a me interessar profundamente por um sujeito que nunca aparece e que atende pelo nome de João Gilberto. Li algumas obras, comprei todos os discos e constatei que a música que ele interpretava também trazia as cores da bandeira. O amálgama aparentemente confuso formado pela união das obras de Chiquinha Gonzaga, passando por Pixinguinha, Orestes Barbosa, Pingarilho, Villa-Lobos, Noel, João Pernambuco, Luiz Gonzaga, Radamés, Caymi, Luiz Bonfá, Newton Mendonça (só para citar os que me vêm à cabeça neste momento) representava uma nova linguagem cujo tradutor, para os ouvidos básicos do cancioneiro popular, chamava-se Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, tendo como arauto maior o senhor misantropo já mencionado.

Os aproveitadores de plantão (como em Senna) logo surgiram. Empresários roubaram as músicas de Tom e usurparam seu talento. De repente, meu Maestro Brasileiro se foi. Mas ficou sua herança. Para mim, a marca de sua obra grandiosa ficou resumida num registro rápido feito por ele próprio: "A minha música é, basicamente, samba." Samba… expressão brasileira sem qualquer significado em outro idioma. Tinhorão não deixou que ele se transformasse em unanimidade, mesmo porque todas são mesmo burras, o que confirma a máxima rodrigueana. Com a ida do Maestro Soberano, triste, chorei, novamente, embalado pela cobertura lacrimejante e piegas da mídia.

Agora, Covas. Sei exatamente o que sinto em relação a ele, mas confesso, novamente em razão da pieguice da imprensa, que talvez tenha me emocionado além da conta (economizando nas lágrimas, desta feita). O que me levou a estas parcas linhas.

Covas conviveu com o que há de mais sórdido. Empresários desonestos, políticos mais oxigenados que falsas-viúvas e jornalistas aproveitadores. Soube, com a habilidade que só um homem completo pode ter, livrar-se deles, e saiu de tudo limpo e ileso, ao contrário de nossos dois outros heróis, esbulhados em razão da própria inocência. Não foi, ao que me consta, enganado por nenhum desses seres que infestam as altas rodas. Não convém tecer comentários aprofundados a seu respeito, pois a mídia séria (e a nem tanto) se encarregará disso. Do seu enorme legado cabe-nos apenas extrair a centelha que lhe fazia brilhar os olhos: a luta por um Brasil democrático. Se somente houvesse deixado essa mensagem já poderia morrer satisfeito. Mas todos sabem que ele foi bem mais que isso, por mais que esse fato, por si só, seja grandioso.

Dos três guerreiros, agora mártires, fica um ponto em comum. A brasilidade. Instiga o imaginário do cidadão-comum-sonhador a um quadro surreal, somente permitido nesse momento triste em razão do bom humor e da alegria que marcaram a vida dos três: Senna empunhando o estandarte, Jobim entoando os hinos da cruzada cívica e Covas a embalar a tropa com sua retórica perfeita; todos juntos à frente de um exército genuinamente brasileiro rumo à construção de algo realmente digno. Realmente brasileiro.

(*) Advogado, em Goiânia (GO)

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