Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Truculência contra rádios comunitárias

BICUDA FM, RIO

Raquel Paiva e Muniz Sodré (*)

Estamos habituados a criticar o que faz a mídia, ou seja, a analisar as suas produções. O que dizer, porém, daquilo que ela censura ou recalca? A questão aparece agora, quando é tempo mais do que suficiente, um mês, para que um órgão qualquer da grande imprensa fizesse ao menos um comentário sobre o fechamento da Rádio Comunitária Bicuda FM, um dos projetos sociais mais importantes do Rio de Janeiro, por agentes da Polícia Federal e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Nada, porém: o grande público não ficou sabendo nem da truculência da ação, nem da importância do projeto violentado.

Vinculada à entidade Bicuda Ecológica, a Rádio Comunitária Bicuda FM funcionava na Vila da Penha, subúrbio do Rio. Como geralmente acontece com emissoras comunitária, a Bicuda foi criada na trilha de uma mobilização popular, com objetivos locais. No caso, tratava-se de uma organização de moradores da Zona Leopoldina, em meados dos anos 1990, com vistas ao abastecimento de água nas partes mais altas daquela região. O movimento ampliou-se para objetivos ecológicos, que incluíam a preservação da Serra da Misericórdia, uma das poucas áreas verdes remanescentes na Zona Leopoldina, no entanto sob ameaça constante de desmatamento e desequilíbrio fundiário.

A rádio FM 99,3 MHz, também conhecida como Onda Verde da Vila, chamava-se Bicuda em homenagem à Pedra da Bicuda, uma das faces da Serra da Misericórdia. Era gerida de forma voluntária por donas de casa, professores, estudantes, aposentados e moradores locais. Objetivos declarados: organizar a população local como sujeitos políticos ativos, preservação ecológica, desenvolvimento de projetos pedagógicos de saúde em morros vizinhos e fluxo de informação comunitariamente útil. Em outras palavras, tentava-se dar a palavra a cidadãos comuns destinados a não ter voz ativa numa sociedade regida por mercado e por mídia comprometida apenas com mercado.

O que diz a lei sobre esse tipo de comunicação? Primeiro há a Constituição brasileira que, em seu artigo 5?, inciso IX, garante o direito de livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença. Em seguida, existe a Lei Especial 9.612/98, que regulamenta o funcionamento das rádios comunitárias no país. Toda rádio comunitária é obrigada a habilitar-se junto à agência reguladora, a Anatel, para obter autorização de funcionamento.

Voz de prisão

Isto é o que está no papel, isto é a ordem jurídica em sua proverbial abstração. Na realidade, os processos ficam anos parados na Anatel, sem maiores satisfações ao solicitante, apesar do reconhecimento e das parcerias que administrações federais, estaduais e municipais estabelecem com rádios comunitárias para divulgação de seus programas sociais. Nesse tempo em branco, a Anatel e a Polícia Federal prendem pessoas e apreendem equipamentos, sob a alegação da prática do crime de atividades clandestinas de telecomunicações, previsto no artigo 183 da Lei 9.472/97. "Esquecem-se" apenas que esta lei não inclui as rádios comunitárias, sujeitas à Lei Especial.

Foi assim que, às 11h30 da quinta-feira, 29 de agosto, dois carros da Polícia Federal, com nove policiais armados de fuzis e metralhadoras, cercaram a casa onde funcionava a Rádio Bicuda, logo prendendo e algemando o locutor Jovanir Gonçalves e mais dois companheiros (todos voluntários), além de apreenderem os equipamentos ? que haviam sido financiados pelo Ministério da Saúde…

Não é preciso muita reflexão para se concluir que uma ação arbitrária com tal aparato e truculência só poderia servir a interesses de um poder que ultrapassa as políticas parcelares do Estado liberal, com suas instituições supostamente democrático-representativas. A grande mídia empresarial é um governo que não ousa confessar o seu nome. Basta mencionar o fato de que a realidade de apenas seis empresas de TV aberta controlarem no conjunto 97 veículos (jornal, rádio e TV) torna letra morta o artigo 220 da Constituição, que proíbe o monopólio dos meios de comunicação. E este é apenas um dos muitos aspectos assumidos pelo que se chamou, décadas atrás, de "monopólio da fala".

Só às 23h daquele dia 29 de agosto, após pagamento de fiança, os militantes da cidadania foram liberados da prisão. Permanece o prejuízo dos equipamentos confiscados, inclusive telefones-celulares de uso pessoal; na memória, a cena absurda das armas apontadas; nos ouvidos, o eco da ordem de prisão dada a Jovanir Gonçalves: "Pára, se não a agente atira!"

Sim, de fato, a grande imprensa recalcou o fato dessa violência, mas o problema continua.

(*) Jornalista, professores da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro