Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

TV e a cosmética das aparências

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COBERTURA

Quem se deu ao trabalho de ver pela televisão ou ler o que se publicou do relatório do senador Saturnino Braga sobre o episódio da violação do painel eletrônico de votação no Senado, não pode ter deixado de observar que sua argumentação baseia-se principalmente em matérias jornalísticas. Em outras palavras, o "real" que aparentemente serviu de lastro para o senador foi o discurso da imprensa.

Por sua vez, o presidente do Conselho de Ética, Ramez Tebet, ao abrir uma das sessões, pediu a seus pares que desligassem os celulares e atentassem para a postura, porque estariam falando para milhões de telespectadores.

Estes dois pequenos pontos não podem deixar de evocar um tema caro aos pensadores da pós-modernidade e que, duas décadas atrás, pareciam puro exagero: o desaparecimento do real. Na verdade, não é exatamente assim, pode-se argumentar, quando se leva em conta que os exemplos dados correspondem a um certo real: (1) o fato da violação do painel e suas circunstâncias; (2) as suas conseqüências de natureza política.

Algo mudou, entretanto. Desde que entrou no ar, em fevereiro de 96, a TV Senado vem alterando em muito o comportamento dos senadores. É que, diante da vigilância de um público potencial de milhões de telespectadores, mudou o tom dos debates, tornando-se os discursos mais agressivos e mais cuidadosos no que diz respeito ao apuro lingüístico, à qualidade da informação e à aparência física dos parlamentares.

Isto tem sido apontado pela imprensa escrita. Mas pouco se enfatiza que, na comunicação eletrônica, encena-se uma "outra" realidade. Foi precisamente a constatação deste fato que, em certo momento da vida brasileira, gerou suspeição sobre os atos das comissões parlamentares de inquéritos, corretas quanto aos objetivos institucionais, mas progressivamente voltadas para a produção de efeitos espetaculares. Em outras palavras, a mídia não é mais apenas um mero ator social dentre outros ? não é mais apenas "imprensa" ou "atividade jornalística" ?, mas um outro tipo de produção do social, que exerce poderes de condicionamento sobre as formas antigas de existência.

São poderes de ordem estética: plásticos, cosméticos, cenográficos, emocionais. Nesse novo ordenamento, as coisas flutuam, no sentido de que seguem mais o curso espontâneo ou caótico dos afetos do que a linearidade da razão argumentativa. E, com elas, os posicionamentos, que ficam ao sabor dos humores e dos ventos, como uma asa-delta sobre o abismo.

Não é que desapareça o real e sim que se deixe afetar por novas variáveis e, portanto, coletivamente construído de maneira diferente. Nessa construção, em que a mídia (mecanismo estetizante) torna-se progressivamente hegemônica, enfraquecem-se os antigos mecanismos de representação, onde desempenhava papel central a política, entendida como representação da vontade soberana do povo.

Assim é que o único traço significativo do apoio do PTB a Ciro Gomes foi publicamente descrito como "acréscimo de tempo televisivo" para aquele candidato à presidência da República. Nenhuma referência a conteúdo programático, a nada que implique representatividade popular: a televisão é a força.

É de fato aceitável a hipótese de que o encaminhamento da cassação dos dois senadores possa ter tido motivações mais midiáticas do que parlamentares stricto sensu. A mídia funciona por um chiaro / oscuro de iluminações e obscurecimentos: projeta seu foco sobre o estetizável televisivo (o emocionalismo, o choro, expressões faciais, a anedota individual, as miudezas da consciência subjetiva etc.) e deixa na sombra o fato social ? por exemplo, o sufocamento de uma investigação parlamentar sobre fatos de maior gravidade ou então o fato parlamentar de outras violações de segredo, que se configuram como uma prática coletiva (e não a mera excepcionalidade individual) dentro do sistema.

Desta maneira, a mídia também acerta as contas com um velho desafeto, não apenas em termos pessoais (na história pública do senador baiano, são vários os casos de prepotência para com jornalistas), mas também semióticos: o anacronismo do cacique regional (já debilitado partidariamente e, pelo visto, relegado a segundo plano pela rede hegemônica de televisão) frente à ordem do mercado e seus novos deuses.

Não há, no final de tudo isso, motivos de grande júbilo cívico. Inexiste aí qualquer vitória ético-política real. Houve, sim, cirurgia plástica, uma cosmética das aparências para a manutenção de um cenário que possa tornar-se mais convincente (ou de melhor gosto) do que a imagem de ratos roendo a bandeira. O lema de agora é "boa imagem ou morte". Sem ela, a política não vale sequer um real.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ.

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