MONOPOLY SHOW
James Görgen (*)
O modelo Marluce Dias de gestão das redes de TV comerciais pode acabar condenando as emissoras brasileiras a tocar um eterno samba de uma nota só. Se é que já não o fez. Em busca de resultados imediatos para a sustentação do "negócio TV", o grosso da grade de programação ficou refém da fórmula de sucesso do momento. A sangria movimenta toda a empresa, ampliando e repercutindo o modelo até forçar o telespectador a participar. E não adianta mudar de canal, como pregam os demagogos do mito da democracia dos controles remotos. Quando a doença virou epidemia com bom reflexo na receita, as demais redes passaram a se esmerar para criar suas variações do mesmo tema. Também não adianta trocar de mídia. O monopólio da programação ancorada no entretenimento já transbordou para os demais meios, sinalizando que a famosa convergência tecnológica não será capaz de trazer pluralidade de conteúdos enquanto estiver a serviço de uma realidade única.
A fábrica de reality shows, importada e tropicalizada de dois anos para cá, entronizou a uniformização da programação como estratégia de negócios. São eles o monopoly show do momento. Por obrigação contratual com os anunciantes, estão nos telejornais. Também dão assunto para programas de auditório, de entrevistas, humorísticos e até para espaços publicitários. Os carros-chefes da programação estão sendo revitalizados na carona dos reality shows. A guerra de audiência nos domingos foi reforçada por eles. Neste ano, toda a programação do horário nobre da Globo, por exemplo, teve que esperar o fim do Big Brother Brasil para ser colocada no ar. E voltou repercutindo a febre do momento. Outros projetos estão sendo represados por falta de recursos e interesse. Tudo virou um esforço concentrado para consolidar a "fórmula". Pode-se dizer, inclusive, que essas emissoras eliminaram as fronteiras entre suas atrações. A grade deixou de ser plural para ser monotemática.
Quando não assistimos ao próprio, acompanhamos o monitoramento constante do programa que monitora pessoas. Com isso, o star system também é abalado. Artistas de todos os escalões são convocados para falar com e das cobaias eletrônicas. Elogiando as façanhas individuais de seus colegas iniciantes, os deuses do Olimpo eletrônico avalizam o sucesso instantâneo dos confinados. A atitude iguala méritos e colabora para alimentar o desprezo da sociedade brasileira por valores como dedicação, esforço pessoal, honestidade e solidariedade.
Baixaria como espetáculo
O novo monopoly show inaugurou ainda um espécie de monopólio transnacional ao expandir negócios de TV por assinatura, internet e telefonia. Como o espaço comercial na televisão é algo finito, o jeito foi fazer como as empresas globais: gerar rentabilidade atingindo a maior escala de mercado possível para seu produto. No país do jogo proibido, todos podem apostar no seu escolhido. O curioso é que quem paga para ver não está concorrendo a prêmio algum. Apenas investe seus centavos para se sentir parte de um sistema político que tem no consumo e no lucro seus únicos candidatos. Levando os reality shows para outras plataformas de comunicação, a mídia brasileira inventou a democracia participativa de mão única, a interatividade cúmplice. Eles fingem que nos ouvem e nós pagamos para fingir que estamos sendo atendidos em nossas demandas.
Críticos falam que o fenômeno é sazonal e cíclico. Falam mais: os reality shows movimentam o lado mais raso e primitivo do ser humano, promovendo o que há de mais bizarro e esvaziado no público telespectador. Esquecem de dizer que as atrações promovem a relação social e o diálogo, por mais rasteiro que seja. Esquecem de observar que a tábua de salvação das emissoras vem mantendo o papel de integração nacional ocupado pelas novelas. Antes, assistíamos TV para matar tempo. Agora é a programação monolítica das grandes redes multimídia que assassinam nosso tempo.
Em grau menos dominante, o monopólio da programação é um modelo antigo. A constante reinvenção estética da televisão brasileira sempre se submeteu ao seu conservadorismo estrutural. O país vem experimentando os efeitos nocivos de um formato monolítico rebocando o conteúdo da TV desde quando os concessionários das principais emissoras optaram por ter os relatórios do Ibope como únicos indicadores de qualidade. Viabilizada a partir das redes nacionais de TV, a mídia brasileira enxergou no modelo das telenovelas um Eldorado que a sustentou ao longo de três décadas. A concentração da audiência e das verbas publicitárias nos horários em que divas e galãs se enroscavam diante de milhões de brasileiros tornava o "esquemão" intocável. Apesar dessa supremacia, os demais quadros da grade mantinham atrações com vida própria, que não precisavam parasitar o sucesso de audiência para consolidar seu espaço.
Com a redemocratização e a introdução do controle remoto nos aparelhos de TV, nos anos 80, o sólido esquema, engendrado 20 anos antes pelas redes Excelsior (hoje extinta), Record e Globo, sofreu seu primeiro golpe. Mesmo podendo olhar para fora da sua cerca, o Brasil ainda demorou uma década para enxergar que o monopólio melodramático das novelas não era a única alternativa de entretenimento. Com o estímulo de correr atrás da líder, os concorrentes mostraram à Globo que o mundo estava mudando. A questão é que não se tentou inventar algo para substituir a roda: a estruturação monolítica na grade de programação foi mantida. Cada uma fez apenas sua aposta para tentar abocanhar uma fatia nos números do Ibope. Enquanto a Bandeirantes apostou todas as suas fichas no mundo dos esportes, mantendo um jornalismo de alguma credibilidade, o SBT assumiu de vez sua abordagem popularesca, percebendo que shows de apelo sensacionalista seriam o filão dos próximos anos. Do alto de sua hegemonia, a emissora do Jardim Botânico observava tudo mantendo-se fiel à fórmula que financiou a expansão de sua rede.
O SBT provou a que veio quando conseguiu levar o entretenimento para dentro do jornalismo e vice-versa. Ao criar o telejornal Aqui Agora, a emissora paulista apoiou seus demais programas na divulgação sistemática da fórmula. A tática transformou profissionais carismáticos, como o repórter policial Gil Gomes, em estrelas de primeira grandeza. Reportagens sobre violência urbana ou sobre tragédias pessoais de anônimos viraram receita para programas de auditório, eram satirizadas nos humorísticos e repercutidas pelas demais emissoras e pela mídia impressa. Não demorou muito, as demais redes perceberam que o "mundo cão" vendia bem quando transformado em espetáculo.
De tudo um pouco
Sem comprometimento público por não deterem a responsabilidade da liderança de audiência, redes como a Record exacerbaram o modelo. Com seu Cidade Alerta, a emissora da Igreja Universal manteve a linha iniciada pelo SBT e foi além. Tornou nacionalmente conhecido o apresentador Carlos Massa, que exigia segurança e realizava julgamentos públicos vociferando impropérios para uma câmera. A pregação de Ratinho rendeu tanta polêmica e interesse que ganhou horário nobre. Era mais uma grade que capitulava frente a um novo monopoly show.
Os gritos e as provocações planejadas de Ratinho, que logo foi cooptado para os quadros do SBT, despertaram o gigante adormecido dos anos 80. A Globo tratou de fazer uma limpeza na casa quando o sensacionalismo popular mostrou-se um negócio rentável. Saíam os executivos românticos da década de 60 e entrava Marluce Dias da Silva, com carta branca até para rebaixar o famoso "padrão Globo de qualidade". O pragmatismo da diretora-geral da rede, formada no mercado financeiro, área que àquela altura já estava dobrada a um outro tipo de monopólio, tratou logo de aplicar as leis da economia de mercado à administração do grupo.
Assim como reduziu custos operacionais usando fórmulas convencionais de gestão, a executiva tratou de eleger uma nova atração para ancorar sua programação. Sem licença para desestruturar a grade da rede ? o risco era alto ?, Marluce optou por adaptar os modelos adotados pelos concorrentes. Tratou de inserir o formato que iria ancorar a programação em todos os horários possíveis. Teve alguns insucessos tentando "ratinizar" o conteúdo de programas globais em determinados horários-chave. Acertou a mão quando a alternativa dos reality shows caiu no seu colo a partir de um acordo com a Endemol ? produtora que inventou a febre na mídia eletrônica mundial. De lá para cá, tudo gira em torno da "fórmula".
A cegueira que tomou conta de executivos como Marluce Dias da Silva é a mesma que pode levar as redes de TV a dar um tiro no pé. Prova disso é o vazio que fica quando uma dessas atrações acaba e outra não é imediatamente posta em seu lugar. Os telespectadores ficam desnorteados. A migração da audiência para o reality show do canal concorrente é automática. Para não perder público, as emissoras já aprenderam que precisam maximizar as aparições dos famosos por 15 minutos. Por isso, eles estão em todos os programas, falando de tudo um pouco. As TVs conseguem prender o público sem perceber que acabaram presas a um círculo vicioso. E, assim como o Brasil, são vítimas de sua própria falta de opção.
(*) Jornalista e editor-adjunto do AcessoCom ? Jornalismo Especializado em Comunicação <www.acessocom.com.br>