Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ubiratan Brasil

ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro


E-BOOK / ROGER CHARTIER

"Chartier e a pluralidade de existência dos textos", copyright O Estado de S. Paulo, 20/05/01

"A notícia foi divulgada com pompa na segunda edição do Electronic Book, salão do livro eletrônico, que se realizou em setembro de 1999, em Washington: o desaparecimento definitivo da publicação em papel acontecerá até 2030, simbolicamente representado pela última edição do jornal The New York Times. ?Acredito que seria uma lástima?, contesta Roger Chartier, pesquisador francês especializado em história do livro e da leitura. ?O texto vive uma pluralidade de existências; a eletrônica é apenas uma dentre elas.?

Autor de A Aventura do Livro – Do Leitor ao Navegador (Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 160 páginas, R$ 34), Chartier viaja constantemente pelo mundo divulgando sua utopia ingênua, em que tanto incentiva a criação da biblioteca eletrônica como a preservação da ?material?. Hoje, às 16h30, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, o historiador debate a linguagem e a leitura eletrônica. E, a partir de terça-feira, participa do seminário Os Desafios do Texto, no Centro Cultural Banco do Brasil, também no Rio. Antes de viajar, concedeu a seguinte entrevista ao Estado, por e-mail.

Estado – O senhor vê a difusão dos textos pela Internet e por meio de e-books como uma segunda revolução da comunicação, algo semelhante ao que aconteceu com a invenção da imprensa?

Roger Chartier – Não se pode comparar a revolução do texto eletrônico com a invenção da imprensa. A técnica inventada no século 15 transformou profundamente a reprodução de textos e a produção de livros, mas herdou, de uma forma livre, o códice (manuscrito em pergaminho), difundido no Ocidente a partir dos séculos 2, 3 e 4. Tal como a revolução do códice, que substituiu o rolo dos gregos e romanos, a revolução eletrônica modifica tanto as formas e a materialidade do suporte dos textos como os gestos e a prática da leitura. Une, pela primeira vez, uma mutação da técnica de inscrição e a transmissão dos textos, das estruturas dos suportes e do modo de ler.

Estado – O que se pode esperar de mudanças no comportamento, além das socioeconômicas, que virão com a nova realidade?

Chartier – A dimensão socioeconômica é fundamental, uma vez que uma maioria de leitores, em especial os analfabetos, não tem acesso à tecnologia virtual. Não devemos confundir o virtual com o real. Para os que participam da nova textualidade, modificam-se a relação com os textos (que, na forma digital, ficam móveis, maleáveis, brandos), a definição das obras (que não se identificam mais com os objetos escritos que a transmitem) e a relação entre a escrita, as imagens e a oralidade (já que os suportes multimídias os mesclam). As telas atuais têm uma identidade contraditória – por um lado, estão ocupadas pelos textos, que diferem daqueles que estão em telas de cinema ou televisão. Nesse sentido, reforçam, e não destroem, a cultura escrita. Por outro lado, como telas, abrem-se a uma leitura de textos que modificam o hábito do ?zapping? em frente às imagens. Assim, crescem a tendência à fragmentação dos textos e os novos hábitos de leitura.

Estado – Em suas pesquisas sobre as práticas de produção, circulação e leitura de livros nas sociedades antigas, como se estabeleceu o vínculo entre a história do livro e a história da leitura?

Chartier – A fórmula que esclarece esta vinculação é simples. Sempre os livros impõem, por seu texto e sua forma, um sentido, um uso, uma ordem. Mas os leitores podem sempre apropriar e subverter o que foi imposto. Estudar os livros é analisar as co-ações que se devem submeter ao leitor. Estudar as maneiras de ler é analisar a resistência dos leitores a tal submissão e a invenção de sentindos novos outorgados por suas competências, tradições e formas de leitura.

Estado – O que se pode esperar de mudança no ato de leitura? É possível existir, por exemplo, a mesma meditação que se tem hoje ao ler um livro?

Chartier – A leitura dos textos eletrônicos frente a uma tela não me parece, até agora, uma leitura meditativa. O que a caracteriza é a busca da informação, a construção efêmera de vínculos hipertextuais, o desejo enciclopédico. Mas, para uma imensa maioria de leitores, não é uma leitura de continuidade, de familiaridade com o texto. O importante é reconhecer a adequação (ou inadequação) entre tal e tal gênero textual e tal e tal forma de livro. Os leitores eletrônicos lêem com proveito e velocidade as vozes desvinculadas de uma enciclopédia, mas preferem o livro impresso para a novela, o ensaio ou a história.

Estado – Com a possibilidade de um leitor consultar, por exemplo, em sua casa e via computador, um original de Cervantes ou de Proust, qual deverá ser o futuro das bibliotecas?

Chartier – O futuro das bibliotecas é definido a partir de três funções: permitir o acesso e o conhecimento do patrimônio escrito em suas formas originais, manuscritas ou impressas; difundir o conhecimento das novas tecnologias e restaurar os intercâmbios concretos ao redor da cultura escrita. Ainda assim, como a leitura dos textos digitais pode ser feita em um espaço privado, as bibliotecas devem desempenhar um papel cultural e cívico essenciais. São lugares privilegiados na relação com o passado, no aprendizado do presente e na compreensão da vida em sociedade.

Estado – Atualmente, detemos a metodologia necessária para conservar livros tradicionais. Em relação às novas tecnologias, é possível dizer a mesma coisa? Ou seja, a vida útil de um CD-Rom ou um de DVD permite a conservação das informações por um longo tempo?

Chartier – Há especialistas que acreditam e temem que os novos suportes não podem assegurar uma conservação de larga duração dos textos – e mesmo aqueles que estão mais seguros dizem que não existem suficientes máquinas capazes de lê-los. Mas, além disso, a questão dos arquivos se impõe. Como conservar uma parte dos intercâmbios interpessoais que caracterizam o ?e-mail? ou os ?chats?? Já é tempo de auxiliar os historiadores do futuro e pedir a definição de critérios estáveis para assegurar a conservação e o acesso aos diversos gêneros e usos do texto eletrônico.

Estado – Em recente edição do salão do livro eletrônico, em Washington, previu-se o desaparecimento definitivo do papel em 2030, ironicamente com a edição derradeira do jornal The New York Times. O que o senhor pensa disso?

Chartier – Acredito que seria uma lástima ler o mesmo artigo quando deslocado da forma impressa, que situa cada texto em uma continuidade física, material, com todos os outros textos publicados em um mesmo número, ao contrário da forma eletrônica, em que se lê a partir das arquiteturas lógicas que hierarquizam campos, temas e rubricas. Na primeira leitura, a construção do sentido de cada artigo particular depende, ainda que inconscientemente, de sua relação com os outros textos que o antecedem ou o seguem e que foram reunidos dentro de um mesmo objeto impresso por uma intenção editorial perceptível. A segunda leitura tem origem, a partir de uma organização enciclopédica, do saber que propõe ao leitor textos sem outro contexto que não o de sua pertinência a uma mesma temática. No momento em que se discute a possibilidade, ou melhor, a necessidade de as bibliotecas digitalizarem suas coleções (particularmente de jornais e revistas), tal observação lembra que, por mais fundamental que seja este projeto de numerização, nunca deve relegar à destruição os objetos impressos no passado.

Estado – O homem possui uma memória do papel aliada a uma percepção de espaço – uma pilha de folhas sobre uma mesa, por exemplo, demonstra a quantidade de trabalho acumulado. Como deve mudar a percepção humana com as modificações tecnológicas?

Chartier – Na cultura impressa tal como a conhecemos, a ordem dos discursos se estabelece a partir de uma relação visível entre tipos de objetos (livro, jornal, revista), categorias de textos e forma de leitura. É essa ordem dos discursos que se modifica profundamente com a textualidade eletrônica. Trata-se agora de um único aparelho, o computador, que faz aparecer na frente do leitor as diversas classes de textos tradicionalmente distribuídas entre os objetos distintos. Todos os textos, seja qual for o gênero, são lidos em um mesmo suporte (a tela do computador) e das mesmas formas (geralmente aquelas decididas pelo leitor). Cria-se assim uma continuidade que não diferencia mais os diversos discursos a partir de sua materialidade própria. Dali surge uma primeira inquietude ou confusão dos leitores, que devem enfrentar o desaparecimento dos critérios imediatos, visíveis, que os permitam distinguir, classificar e hierarquizar os discursos. Por outro lado, é a percepção da obra como obra que se torna mais difícil. A leitura frente à tela é geralmente uma leitura descontínua, que busca a partir de palavras-chaves ou rubricas o fragmento textual do qual se quer apoderar (um artigo de jornal, um capítulo de um livro, uma informação de um ?web site?) sem que necessariamente sejam percebidas a identidade e a coerência da totalidade textual que contém este elemento. Em um certo sentido, todas as entidades textuais no mundo digital são como bancos de dados, que procuram fragmentos cuja leitura não supõe, de nenhuma maneira, a compreensão ou percepção das obras em sua identidade singular. É o principal desafio lançado às nossas categorias, percepções e hábitos pelo texto eletrônico.

Estado – O senhor acredita que o homem, diante de um computador, deixará de ser apenas um leitor para também ser documentarista, editor e até bibliotecário?

Chartier – No mundo digital, confundem-se as diferenças dos diversos papéis da cultura impressa. O leitor pode transformar-se em editor, bibliotecário, autor, etc. Daí a dificuldade de se distinguir entre os textos que cada um, livre e gratuitamente, põe em circulação na rede e os produtos da edição eletrônica que se supõem pagos, a fixação do texto e a impossibilidade do leitor de copiá-lo ou transformá-lo. Tal observação conduz a uma reflexão sobre as condições para que se possa proteger tanto os direitos econômicos e morais dos autores como a renumeração ou o proveito da edição eletrônica. Esta necessidade conduzirá sem dúvida a uma transformação profunda do mundo eletrônico tal como o conhecemos agora. Surgirão duas formas de publicação: a que vai seguir oferecendo textos abertos, gratuitos, e a que resultará de um trabalho editorial que necessariamente tornará restritos os textos publicados para o mercado. Talvez dois tipos de aparelhos vão corresponder a cada uma dessas formas: o computador tradicional para a primeira e o e-book, que não permite envio, cópia ou modificação dos textos, para a segunda. Assim, por bem ou por mal, vai-se reconstituir na textualidade eletrônica uma ordem dos discursos, que permitirá diferenciá-los segundo sua identidade e autoridade próprias."

LEI REBELO

"Breves considerações sobre a lei do idioma", copyright O Globo, 20/05/01

"Fico observando essa discussão sobre a lei Aldo Rebelo e sua repercussão. Há os que a acusam de anacronia, de xenofobia, e de outras ?ias? mais. No entanto, o fato é que chega uma hora em que a questão da identidade tem que falar mais alto; afinal de contas, a língua é a nossa pátria!

Disto sabem bem os franceses que, há décadas, legislam em defesa do francês e da francofonia. A anglicização galopante do português no Brasil perverte e desnatura a mais bela de todas as línguas latinas (e perdoem aqui a minha jactância luso-brasileira). Da mesma forma decreta, por desuso, a morte de palavras belíssimas como, por exemplo, ?cancioneiro?, substituída, parece que definitivamente, pelo malfadado ?song-book? como, com muita propriedade, já reclamara o mestre Antonio Callado.

Nesta linha de raciocínio, chega a ser engraçado que a compilação da obra do grande compositor de música popular brasileira Cartola, carioca por excelência e com indiscutíveis raízes africanas, seja chamada de song-book pelos próprios brasileiros, como bem aponta Marcos de Castro no seu livro ?O caos na ortografia?. Os portugueses, com certeza, não cometeriam tamanha impropriedade.

Mas, fazendo cá comigo essas ilações, acabei passando por uma situação que bem ilustra a questão. Dia desses, entrei numa dessas lanchonetes com pomposos nomes em inglês. Queria comer alguma coisa leve, e minha opção estava lá no painel assim descrita: Cheese, Ham and Egg. Chamei o garoto que estava servindo e, fiel à última flor do Lácio, mandei: ?Ô rapaz, me vê aí um Queijo, Presunto e Ovo.? Ele me olhou sem reação, como se eu tivesse me dirigido a ele em sânscrito ou num patoá qualquer. Diante da sua perplexidade, insisti na língua de Saramago: ?Meu filho, eu quero um Queijo, Presunto e Ovo.?

Inutilmente. Fez-se uma pausa desconfortável, ao final da qual o rapaz, tentando assumir o controle da situação, sentenciou: ?Olhe moço, só tem o que está escrito ali, ó?, apontando num gesto largo o cardápio afixado à parede, que mais parecia um texto shakespeariano do que uma simples lista de guloseimas.

Eu, maldosamente, fingia não entender, e insistia no meu bom portuguesinho: ?Exatamente, meu filho, e é mesmo por estar ali no cardápio que estou te pedindo: quero um Queijo, Presunto e Ovo.? Em vão. Uma senhora do meu lado, atrasada pelo tempo que eu tomava ao rapaz, lançou-me um olhar furioso, e eu estava a ponto de desistir da minha cruzada filológica quando a gerente, vendo o impasse posto, acudiu a tempo do outro lado do balcão: ?Oh Severino, o que o homem tá querendo é um Cheese, Ham and Egg.? E repetiu enfatizando cada sílaba, num inglês fluente e sotaque irretocável de Connecticut: Cheese, Ham and Egg!

Severino, então, abriu no bom rosto de nortista um largo sorriso aliviado: ?Ah, entendi, o que o senhor quer é um Cheese, Ham and Egg!! É pra já, doutor.? E em voz alta comandou sem mais delongas ao cozinheiro: ?Tião, salta ligeirinho um Cheese, Ham and Egg aqui prô my brother!!!!?"

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