MEMÓRIAS DO CARANDIRU
Vidas do Carandiru ? Histórias Reais, de Humberto Rodrigues, Geração Editorial, São Paulo, 2002, pp. 296. Preço: R$ 25
A implosão do Carandiru não enterrou as lembranças dolorosas de um jornalista preso e condenado injustamente, que usou os 514 dias passados atrás das grades do maior presídio da América Latina para desenhar o retrato dos personagens com quem conviveu. O resultado desta sofrida experiência está agora no livro Vidas do Carandiru, da Geração Editorial.
Quem espera conclusões amargas deste enredo kafkiano se surpreende: Humberto foi capaz de encontrar resquícios de esperança e humanidade entre criaturas que, apesar de toda a dor, não desistiram da vida.
A descida ao inferno começou para Humberto Rodrigues na tarde de 23 de maio de 2000, quando, aos 65 anos, foi levado por policiais, jogado numa cela infecta e, em seguida, para sua perplexidade, condenado por crime que não cometera. Era um jornalista respeitado, acostumado ao sucesso, aos melhores hotéis e restaurantes ? e viu-se reduzido a quase nada. Ao contrário de outros relatos célebres da perda da liberdade ? como Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, Pavilhão 9, de Hosmany Ramos, e Estação Carandiru, de Dráusio Varella ?, Vidas do Carandiru é um depoimento otimista.
Por trás dos muros
A população carcerária do Carandiru, antes de sua extinção, era de 7 mil presos, o dobro da capacidade ? 80% deles tuberculosos e um em cada seis aidético. Mas Humberto optou por falar das pessoas por trás dos números.
O ponto central do livro são as histórias de homens que chegaram à mais extrema degradação. A primeira parte conta a saga do próprio Humberto em forma de diário: primeiro, os 43 dias numa cela de delegacia ? “universidade da violência” ?, depois os 471 no Carandiru ? “um paraíso”, comparado à vida no xadrez do Depatri, onde conheceu o espancamento, a tortura e um tratamento que reduz a zero a dignidade humana. No presídio Humberto deu aulas de Português e Matemática, escreveu seu livro e concluiu que sem uma completa reforma dos sistemas prisional e ? principalmente ? jurídico, tudo o que se faz no combater à violência é mero paliativo. Na segunda parte do livro, Humberto conta a história de 12 companheiros de infortúnio.
“É indispensável para a saúde da sociedade que o que está
escondido por trás dos muros seja trazido à tona”, diz Luiz Fernando
Emediato, dono e editor da Geração Editorial. “Vejo com bons olhos
a literatura que se tem produzido nos presídios, por isso estamos lançando
mais dois títulos nessa linha.”
ENTREVISTA / HUMBERTO RODRIGUES
Copyright Geração Editorial <http://www.geracaobooks.com.br/releases/entrevista_humberto.htm>
Como é estar em liberdade de novo?
Humberto Rodrigues ? Depois que se perde a liberdade e a reconquista, os valores mudam completamente. A gente ganha mais humildade, começa a dar valor à folha da árvore que cai com o vento, o pastel com cana se torna delicioso. As coisas mais simples têm um enorme valor. Ganha-se humildade, compreensão e aprende-se a meditar. Aprende-se a dar muito valor a coisas como a amizade, a família, a solidariedade. Embora traumática, a prisão foi uma experiência muito valiosa.
Pois é, uma das coisas que surpreendem em Vidas do Carandiru é que não se trata de um relato amargo e ressentido. Ao contrário, mesmo na cadeia o senhor fala a maior parte do tempo sobre coisas positivas. Como o senhor conseguiu isso?
H.R. ? Eu já era um cara positivo, mas não tão intensamente como sou hoje. Mas penso que psicologicamente eu estava preparado, tinha estrutura. Não busquei a saída pela religião porque sempre pensei que Deus é a natureza, e não mudei isso. O que mudou muito é que, antes de ser preso, tinha salário de 40 mil, era executivo, tinha cavalos de corrida, comia nos melhores restaurantes, ficava nos melhores hotéis; na cadeia, cheguei a ter que lavar a cela e o banheiro com 50 presos dentro porque não tinha 3 reais para pagar a faxina. Na prisão, uma camiseta é uma dádiva. Hoje vivo com R$ 600 por mês e é para mim mais do que suficiente. Além disso, o hábito de ler ajudou muito. Sempre li bastante. Quando você me ligou para a entrevista, eu estava lendo.
O quê?
H.R. ? As Memórias de Casanova, que também esteve preso, na Veneza do século 16 para o século 17. O que era uma situação ainda muito pior que a minha.
E escrever na cadeia, ajudou?
H.R. ? Apesar de ter sempre trabalhado como jornalista ? fui diretor da Gazeta Mercantil, da Abril, do Globo, da Manchete e outras ?, não tive formação acadêmica, pois na época nem havia. Sou formado em Publicidade. De modo que a dificuldade em escrever um livro foi muito grande. O h&aacaacute;bito da leitura foi a minha formação. Sabia que tinha que ser bem objetivo e tornar útil o meu tempo na prisão. Muitas vezes, como descrevo no livro, me sentia um pesquisador trabalhando na cadeia. Não é fácil entrevistar um preso. Quando eu saí, tinha uns 10 cadernos manuscritos. Depois copidesquei tudo, sem mudar a força que aquilo tinha, pois ainda está tudo muito vivo dentro de mim.
Além das histórias de vida que você conta ? sua e de outros presos ? Vidas do Carandiru também aponta as falhas do sistema prisional e judiciário do país. Fale a respeito.
H.R. ? Assim que você chega na cadeia fica sabendo que existe uma lei chamada LEP ? Lei de Execuções Penais. O preso sabe que têm direitos, mas essa lei, em muitos casos, não é cumprida. Daí começa a sensação de injustiça. Quanto mais o tempo passa, mais o ódio aumenta. A prisão não regenera ninguém. Lá é tudo cinza, drama, tristeza. Quando eu saí, tinha para onde ir ? a casa da minha ex-esposa ? e R$ 300 no bolso. E se não tivesse isso? Imagine sair só com uma calça bege, sem dinheiro e sem perspectiva nenhuma.
Mas aí não é ser muito condescendente com o bandido?
H.R. ? Uma infância e uma vida miserável tornam a pessoa embrutecida. Não estou fazendo apologia do crime, mas conheci gente na prisão que tem bondade no coração. Que precisa ser tratado como ser humano. Pra que tratar como bicho? Tudo bem, a gente sabe que lá tem 10% que é sangue ruim mesmo. Outros 20% são bandidos graves. O resto, é vítima de uma sociedade cruel. E o que resolve tratar mal a todo o mundo? Existe um serviço na prisão que é feito por psicólogos, para avaliar os detentos, os seus direitos na LEP. Todos aguardam com a maior ansiedade. Vi muitas vezes psicólogos debochando de presos, e fazendo um teste que exigiria muito critério, em um ou no máximo dois minutos. Aí o preso é reprovado, perde os direitos e planta-se o ódio em seu coração. Isso sem falar na superpopulação de um sistema prisional feito para 65 mil presos, no estado de São Paulo, e que hoje abriga 100 mil. Fora os 270 mil que estão na rua com mandado de prisão expedido.
Quer dizer que o perfil do preso é diferente do que conhecemos aqui fora?
H.R. ? Pois lá tem gente que chora, que se preocupa com os filhos e esposa, que procura trabalhar, estudar. E muitas vezes nem isso é dado. O preso fica zanzando para lá e para cá, e mente vazia é a oficina do diabo. Quem conhece a realidade lá de dentro ? e eu mesmo antes não sabia que era assim ? sabe que há muita limpeza, solidariedade, respeito aos idosos. Há gente ruim, claro, como aqui fora também. Veja o caso da menina que matou os pais. Mas é justo julgar todo o mundo por causa de alguns? É justo que 150 pessoas tenham apanhado feio por causa de um, como aconteceu no Depatri e eu narro no livro? O que a gente vê é que o perfil do preso é da faixa etária de 23 anos, jogados lá sem esperança e perspectiva nenhuma.
Como foi adequar-se à lei da prisão?
H.R. ? Tem que ter um senso de percepção muito agudo. A lei dos presos é mais rígida do que a daqui de fora. Tem que saber proceder. Se não respeitar, morre. Vi 40 mortos lá dentro. Mas, em geral, mesmo em celas com 50 presos há limpeza e não há desavenças. Eu encontrei muita solidariedade. E muito respeito por ter dado aulas de Português e Matemática para eles.
Um dos verdadeiros “infernos” que o senhor relata no livro foi uma insistente e grave gastrite enquanto esteve na cadeia. E agora, o estômago melhorou?
H.R. ? Agora está legal. Estou fumando, tomando caipirinha, comendo feijoada e o estômago não reclama. Era tudo psicológico.