Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um brinde às vítimas de sempre

"RESPONSABILIDADE SOCIAL"

Fernando Machado (*)

Creio que a primeira vez que me dei conta da farsa e do ridículo escondidos atrás das palavrinhas "responsabilidade social" foi, certa vez, ao assistir ao programa Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato. Já faz algum tempo, mas não me esqueço. Eram exibidas lindas mulheres com os seios de fora, todas elas siliconadas, como se diz. Fiquei surpreso ao vê-las desfilando tranqüilamente aqueles seios rígidos e empinados àquela hora da tarde. Tanto é verdade que desliguei o aparelho de som e aumentei o volume da televisão em busca de alguma explicação.

E de fato havia uma: ao lado do apresentador estava um médico, falando dos riscos e dos benefícios do silicone. Não era apenas mais uma maneira apelativa de elevar a audiência com sexo, desqualificando a televisão brasileira. Ingenuidade minha ter pensado isso. Tratava-se, como se gabava em esclarecer o apresentador, de material jornalístico de conteúdo socialmente responsável.

A presença do médico no programa era o que o cineasta americano Alfred Hitchcock chamava de mcguffin, um falso pretexto, uma desculpa qualquer para se colocar em cena aquilo que é o importante, no caso os seios empinados das modelos.

Inútil e vazio

As tais duas palavrinhas juntas, de uns tempos para cá, entraram muito na moda, ganharam peso. De maneira que hoje não há quem não as conheça ou se preocupe com elas. Em nome da responsabilidade social, grandes empresas promovem eventos sociais com renda revertida para crianças com câncer ou com Aids, atores deixam de cobrar seus cachês para propagandas na televisão (desde que todos saibam disso), socialites fazem festas com renda destinada às criancinhas com fome na África ? todos interessados em mostrar seus sentimentos comunitários. Grandes mineradoras exploram o solo e colocam em risco populações inteiras, mas têm um espaço reservado para a criação de micos-leões dourados e outros animais da fauna brasileira em extinção, lugares onde crianças de primeiro e segundo graus podem passear e se enriquecer culturalmente nos fins de semana. Até os bingos, que tratam de viciar velhinhos e tomar-lhes a aposentadoria, preocupam-se com o esporte, com a cultura.

Basta assistir televisão para ver que cidadania, educação, cultura, igualdade são outras palavras que, a exemplo de responsabilidade social, vêm tendo seus significados modificados, deturpados em nome da nova-velha hipocrisia vigente. Servem apenas para aplacar a culpa católica de quem tem dinheiro no Brasil e para que madames preencham seu tempo mostrando o quanto se preocupam com, digamos, as crianças desnutridas da Etiópia.

As grandes empresas de comunicação, por exemplo, se estivessem realmente preocupadas com o social, tratariam de elevar a qualidade de suas transmissões, de cumprir o papel que lhes cabe de informar (e não manipular) a população. Quase tudo o que se diz e se faz sob o discurso da responsabilidade social é tão inútil e vazio quanto, ao tomar uma boa bebida, brindar em homenagem às vítimas da última grande desgraça.

(*) Estudante de Comunicação na Universidade de Uberaba (MG)