TIM LOPES, UM ANO DEPOIS
Mário Augusto Jakobskind (*)
Na segunda-feira, 2 de junho, fez um ano que o jornalista Tim Lopes foi assassinado em circunstâncias trágicas (queimado vivo e só restos de seus ossos foram encontrados). O fato comoveu a opinião pública e mobilizou a sociedade em todo o país.
Tim fazia matéria para a TV Globo sobre uma suposta denúncia da comunidade da Favela Cruzeiro, no Complexo do Alemão, um dos maiores aglomerados habitacionais em áreas carentes do Rio de Janeiro, relativa a um baile funk em que jovens adolescentes estariam sendo obrigadas a fazer sexo explícito e onde se traficava drogas.
O repórter e a sua equipe haviam ganho o Prêmio Esso por matérias sobre o comércio de drogas. Segundo a direção de jornalismo da TV Globo, a própria comunidade pediu que a emissora de maior audiência do Brasil fizesse a reportagem denunciando o que acontecia lá, uma vez que a polícia simplesmente ignorava sistematicamente os apelos no sentido de coibir essa prática criminosa. Em suma: a comunidade desprotegida, e não tendo a quem apelar, dirigiu-se à TV Globo ? que até hoje tenta se apresentar como uma espécie de “justiceira” da Favela Cruzeiro e de comunidades carentes em geral.
A versão oficial foi bastante contestada desde o início, originando uma polêmica em que uma das partes ficou inferiorizada por não ter praticamente espaço na imprensa para expressar seus questionamentos. Um verdadeiro esquema de rolo compressor foi acionado pela emissora para evitar que outra versão colocasse em dúvida os seus argumentos.
A TV Globo mobilizou toda a sua forte estrutura e os espaços no noticiário diário para esse fim. Em atos públicos, seminários em que se discutia a questão da violência urbana, e mesmo em assembléias promovidas pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, os representantes da emissora (inclusive diretores de jornalismo) se faziam presentes, fato sem precedentes nos anais do sindicalismo carioca.
O outro lado, ou seja, os que colocavam em dúvida a versão oficial da Globo, dependia apenas da boa vontade de alguns poucos editores ou de órgãos da imprensa alternativa para serem ouvidos. É o caso da jornalista Cristina Guimarães, que, sete meses antes do desaparecimento de Tim Lopes, alertara para as ameaças que passou a sofrer do crime organizado depois que foram ao ar imagens sobre a venda escancarada de cocaína em favelas do Rio de Janeiro, como na Mangueira e na Rocinha.
Ela participava da equipe de Tim Lopes que produziu e apresentou as reportagens que tiveram repercussão nacional e mereceram o Prêmio Esso. Cristina teve de “cair na clandestinidade” e abandonar as suas atividades profissionais ? ela trabalhou 12 anos na TV Globo ? depois que seus apelos à direção da emissora no sentido de obter segurança não foram atendidos. Ela até hoje não retornou ao mercado de trabalho e aguarda o pronunciamento definitivo da Justiça trabalhista sobre uma ação rescisória que move contra a emissora.
Sem trabalho e vivendo fora do Rio de Janeiro, Cristina enfrenta dificuldades para sobreviver e conta com a solidariedade de familiares e amigos. Mesmo assim, os diretores da Globo, quando questionado sobre o fato, tenta desabonar a imagem da profissional de imprensa que não se submeteu a pressões para se calar.
Isolamento
Colegas da Globo de Cristina, por receio de perder o emprego, e mesmo a direção do Sindicato dos Jornalistas do Rio viraram as costas para ela. Preferiram bancar a versão oficial. A TV Globo sempre negou que ela estivesse sofrendo ameaças. “Ali Kamel, diretor de jornalismo da emissora, chegou mesmo a me chamar de maluca, isso depois de 12 anos de eu trabalhar lá”, desabafa Cristina Guimarães. “É o caso de perguntar: por que só depois de tantos anos eles descobriram que eu sou maluca?”
A jornalista conta como decidiu pedir proteção à TV Globo e se afastar depois que os seus apelos não foram atendidos. “Fui na Defensoria Pública para cobrir o depoimento do coronel Lênin sobre denúncias de corrupção. Um garoto da comunidade de Mangueira, Hugo Leonardo, me reconheceu, chegando mesmo a descrever como eu estava vestida quando tinha ido fazer a reportagem na Mangueira e advertiu: ?olha tia, nós dois vamos morrer?”.
Hugo contou que ele estava sob suspeição dos traficantes porque sabia demais. No caso de
Cristina, os traficantes não se conformavam com o fato de a TV Globo ter mostrado a feira de drogas, obrigando a polícia a agir. Ou seja, além de prisões de alguns “vendedores” a reportagem tinha afetado o “negócio”.
“Depois da advertência do Hugo, decidi sair porque precisava me proteger. Lamento muito tudo isso, porque se a direção da Globo tivesse me ouvido e providências fossem tomadas, é possível que não acontecesse a tragédia que tirou a vida do meu amigo Tim”, diz Cristina.
Reportagem que ninguém concluiu
Para Cristina, Tim pode ter caído numa armadilha do tráfico. Ela contesta a alegação segundo a qual a comunidade da Favela Cruzeiro queria que ele fosse lá. “É mentira, nunca houve isso.” A Globo alega que algum membro da comunidade pediu que fosse feita a matéria sobre o baile funk.
Em um ato público de protesto realizado na Cinelândia, no centro do Rio, quando ainda pairavam dúvidas se Tim Lopes tinha sido assassinado, Ali Kamel desafiou os jornalistas a concluírem a reportagem no Complexo do Alemão. Até hoje ninguém a terminou, o que de alguma forma reforça a tese de Cristina de que nunca teria existido o tal baile funk; ou, se existiu, naquele momento teria sido uma armadilha do tráfico para se vingar da TV Globo, que ao chamar a atenção sobre o comércio das drogas afetava os lucros do setor. Para o tráfico, isso é imperdoável.
A hipótese reforça também o depoimento do jornalista William Waak, no seminário “Tim Lopes Nunca Mais”, promovido pela ABI: “Para mim Tim foi traído pela fonte”.
Para André Martins, advogado da viúva de Tim Lopes, no entanto, não se trata propriamente de “uma fonte”, pois “em se tratando de esquemas marginais não há fontes, mas, sim, testemunhas”. Em sua opinião do advogado, até hoje “não houve interesse” em esclarecer o que aconteceu. “Não consegui entender o motivo pelo qual a TV Globo não deu segurança para a reportagem ser feita. Bastaria um olheiro que desse um telefonema para avisar que alguma coisa estava errada”, afirma.
A direção da TV Globo contesta esse argumento e garante que sempre se preocupou com a segurança dos repórteres. Tanto Kamel como Marcelo Moreira, chefe de reportagem da emissora no Rio, garantiram em várias ocasiões que se gastavam 300 mil reais em segurança e que repórteres ameaçados pelo crime organizado chegaram mesmo a ser deslocados para o exterior. Kamel e Moreira, no entanto, nunca deixaram claro se a quantia mencionada estava sendo empregada para a segurança dos funcionários da Globo antes ou depois do assassinato de Tim Lopes.
Cristina Guimarães acusa a TV Globo de em várias ocasiões ter colocado em risco a vida dos seus jornalistas. Segundo ela, os repórteres eram obrigados a voltar aos locais de risco quando as imagens não eram consideradas boas pelos chefes.
“Eu mesma fui obrigada a voltar à Mangueira para repetir imagens porque as chefias exigiam, o que era um risco muito grande. Era isso ou perder o emprego. E o Tim Lopes foi lá no Complexo do Alemão por que queria? Ficou se expondo por que queria? Claro que não. É um absurdo terem mandado ele voltar em local de risco tão grande como o Complexo do Alemão. E ele voltou lá pelo menos umas quatro vezes.”
Testemunha pode desvendar o mistério
O advogado André Martins lembra um fato que poderia ajudar a desvendar o caso Tim Lopes e foi abafado. Trata-se de um “misterioso testemunho” que conduziu o repórter à Favela Cruzeiro e que nunca mais apareceu. A TV Globo garante que deu proteção necessária ao “guia” de Tim naquela área de risco, deslocando-o para algum outro ponto. “Quem é essa testemunha, esse guia? Ninguém sabe, ninguém viu. Acho estranho que esse personagem simplesmente tenha desaparecido dos autos”, questiona Martins.
Alessandra Araújo Wagner, a viúva de Tim, em depoimento-desabafo ao jornal O Dia, também fez cobranças nesse sentido:
“Como mulher do Tim, quero saber o que a pessoa da Vila Cruzeiro que o levou para a favela tem para falar. Essa pessoa, que não era fonte do Tim e que, na realidade, pautou a tal matéria, deixou de ser simplesmente uma fonte para ser testemunha de um crime. De acordo com depoimento de um chefe de Reportagem da TV Globo, ela estaria sob proteção da própria emissora. Protegeram a fonte e não protegeram o Tim? Será que nenhuma autoridade vê importância nesse depoimento? Se o motorista retornou à redação sem Tim, por volta da meia-noite do dia 2 de junho de 2002, por que a emissora só tomou providências por volta das 8h do dia seguinte, após o término do primeiro jogo do Brasil na Copa? Por que o celular do Tim demorou tanto a aparecer, se desde o primeiro momento cobrei isso de todas as pessoas com quem falava? Afinal, o celular foi periciado?”
Fato que pode ser considerado no mínimo intrigante é o da comunicação à polícia sobre o
desaparecimento de Tim. André Martins explica:
“Não consigo entender por que a chefia da TV Globo demorou tanto a informar à polícia que o repórter não apareceu na hora marcada com o motorista. A jornalista que estava na escuta, a Virgínia, recebeu a informação e deve ter comunicado à direção da Globo. Isto aconteceu à noite e a polícia só foi informada na manhã do dia seguinte, umas 7 ou 8 horas depois. Das duas, uma: ou Virgínia omitiu a informação, o que não acredito, pois seria uma falta grave, passível de demissão até por justa causa, e ela não foi demitida; ou informou à direção, que preferiu agir de uma outra forma independente da polícia”.
Isto até hoje não foi esclarecido.
Marcelo Moreira, chefe de reportagem da Globo, em depoimento no seminário “Tim Lopes Nunca Mais”) e no inquérito sobre o assassinato de Tim Lopes ? os criminosos, um deles Elias Maluco, ainda não foram julgados ?, admitiu que para entrar na Favela Cruzeiro utilizou o mesmo mecanismo que o repórter tragicamente morto deve ter usado. “Todo aquele clima de insegurança não me impediu de entrar na favela tentando resgatá-lo. Circulei na rua onde ele provavelmente foi apanhado. Vi os bandidos e saí de lá para tentar saber se ele estava em poder do tráfico e se a gente poderia resgatá-lo”, disse.
Moreira inclusive sabe quem é o informante de Tim Lopes, pois deu a entender que essa “figura misteriosa” teria sido retirada do local pela TV Globo. Ele não teria revelado sua identidade “por uma questão de segurança”.
“Por que não se revelou à polícia a identidade desse personagem chave? É também o caso de se perguntar: o informante retirado não sabia o que tinha acontecido com Tim? Por que não foi ouvido?”, questiona o advogado André Martins.
Outro fato que mereceria maior aprofundamento, o que não foi feito até agora, diz respeito ao inquérito policial propriamente dito. A então governadora Benedita da Silva,
possivelmente influenciada pela enorme repercussão do acontecimento em função do envolvimento de um funcionário da TV Globo, afastou o delegado Sergio Falante e o detetive Daniel Gomes, responsáveis pela conclusão das investigações, que colocavam em dúvida alguns pontos, inclusive a forma como a emissora agiu no episódio. Apesar de a governadora não ter aceitado as conclusões, o Ministério Público as acolheu.
Viúva move ação por uso de imagem
Tanto Cristina Guimarães como o advogado André Martins colocam em dúvida a versão oficial da emissora. Alessandra Araújo Wagner, viúva de Tim Lopes, entrou com uma ação contra a TV Globo por ter a emissora utilizado a imagem do seu filho, Diogo Wagner Rocha, quando foi confirmada a morte do repórter. O advogado explica o que levou Alessandra a entrar na Justiça:
“Diogo, o enteado de Tim, que viveu com ele dos seis aos 16 anos, e o considerava como pai, apareceu em várias ocasiões abraçado ao Tim, sendo chamado de filho nos editoriais que eram lidos pelos âncoras, geralmente em tom dramático, em cadeia nacional. Portanto, na hora da dor, Diogo era exibido nacionalmente como filho, mas na hora de fazer uma reparação dessa mesma dor, ele, para a TV Globo, não era mais considerado como tal. Por isso, Alessandra recorreu à Justiça que decidirá o que é certo e errado.”
Tim Lopes, um experiente repórter, de 52 anos, é hoje lembrado pelos colegas de profissão em todo o mundo. Seu nome está inscrito, no Newseum, em Washington, na galeria de jornalistas vítimas da violência e da intolerância que se imagina que não existisse mais em pleno Terceiro Milênio.
Independente das homenagens que lhe são prestadas em várias partes do Brasil ? no Rio, por exemplo, a sala de imprensa da Assembléia Legislativa tem o nome de Tim Lopes ?, o que se exige, não apenas seus familiares e amigos, é que o que aconteceu com o jornalista seja realmente esclarecido, porque um ano depois de sua morte muita coisa ainda precisa ser contada. Isto será necessário para que um dia não se repita outra tragédia que tem como uma das causas a corrida desenfreada em busca de audiência.
Além do mais, segundo o próprio Tim Lopes, ele estava cansado de fazer esse tipo de matérias que, se ajudavam (e ajudam) a mais poderosa emissora de TV do país a ampliar a sua audiência, também desgastam os seus repórteres.
Impunidade
Um ano depois do acontecimento no Complexo do Alemão, no Rio e em todo o Brasil o narcotráfico ? o principal responsável pelo assassinato de Tim Lopes ? ampliou o seu poder muito em função da impunidade de figuras do alto escalão, os cidadãos acima de quaisquer suspeitas verdadeiros responsáveis pelo comércio que hoje movimenta 840 milhões reais por ano, segundo levantamento da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Iss correspondente a seis toneladas de cocaína e outras drogas nos sete principais complexos de favelas da região metropolitana do Rio.
Em suma: enquanto a mídia cobre apenas os “Elias Malucos” ou “Fernandinhos Beira-Mar” como os bandidos que comandam este vasto comércio, os poderosos chefões das drogas se infiltram nos mais diversos setores, do Legislativo ao Judiciário, passando muitas vezes pelo Poder Executivo, e continuam a acumular lucros astronômicos, parte destinado a neutralizar quem poderia justamente estancar esta atividade.
No caso do hediondo crime na Favela Cruzeiro, consciente ou inconscientemente tudo foi feito para desviar a atenção da principal questão: por que Tim Lopes foi a uma área de risco sem contar com a segurança necessária que o empregador, a TV Globo, deveria providenciar para o exercício profissional do jornalista? Onde se encontra a testemunha-chave que deveria ter sido ouvida pelas autoridades e ajudaria a esclarecer em definitivo tudo o que aconteceu?
(*) Jornalista