MONITOR DA IMPRENSA
MÍDIA NOS BALCÃS
Fabiano Golgo, de Praga
A mídia nos Balcãs desempenha papel fundamental nos conflitos ditos étnicos da região. Slobodan Milosevic chegou ao poder e lá se manteve graças à manipulação do principal canal de TV da Sérvia (RTS) e, mais tarde, de um espectro ainda maior de veículos de comunicação. As guerras que promoveu contra croatas, bósnios muçulmanos e albano-kosovares tiveram a capacidade de amalgamar a nação sérvia, graças a mentiras difundidas como fatos por sua mídia estatal.
Em 1987, Milosevic convenceu um ex-colega da companhia de gás que dirigira sob Tito (o marechal que comandou a Iugoslávia desde o fim da Segunda Guerra Mundial) a aceitar o posto de diretor de programação da RTS – abençoado por Ivan Stambolic, o presidente sérvio seu então protetor e mais tarde detrator, hoje desaparecido. O amigo bem colocado atendeu ao pedido de Milosevic para que botasse no ar, a cada hora, a imagem de uma camponesa sérvia da região de Kosovo empunhando uma espingarda, com seus filhos ao redor. A fotografia foi estampada também nos jornais (que tinham no comando gente indicada por Milosevic; Stambolic mais tarde disse que se arrependeu profundamente por ter caído na armadilha). A história que acompanhava a imagem era de que albano-kosovares, que perfazem 90% da população de Kosovo, haviam torturado, seviciado e depois matado o marido e um dos filhos dessa senhora, que agora vivia em eterna vigilância, arma no ombro, para se defender dos criminosos, mesmo enquanto suava para colher seu sustento.
Uma imagem dessas não poderia deixar de causar grande emoção, ainda mais que serviu apenas de hors d’oeuvre de um farto buffet de situações inventadas que viriam nos próximos anos, certamente aumentando a temperatura da panela de pressão balcânica do conflito étnico. A mulher foi mais tarde descoberta vivendo na Itália, e nem mesmo as crianças da fotografia eram seus filhos. Um fotógrafo fiel a Milosevic encenara a coisa toda. Poucos lembraram que a estrita cultura albanesa não aceitaria nunca que homens seviciassem outro homem, pois isso é visto como homossexualismo (punível com morte a pauladas, executada pelo próprio pai ou varão mais próximo do perpetrador); esse tipo de ato não se justifica nem em caso de violência contra um inimigo.
Incitação à violência
No caso da Bósnia, como foi dito aqui no Observatório da última quinzena, supostos projetos muçulmanos de liquidação de sérvios serviram de estopim diário para a inflamação dos ânimos. Mas não só os sérvios têm culpa nesse cartório. Os croatas sob Franjo Tudjman, então presidente, falecido no ano passado, também tinham seu repertório de falsas teorias e fatos, mesmo que menos imaginativos que os dos sérvios. Somente os muçulmanos assistiram a essa briga quietos, à mercê dos bem-armados vizinhos (estes, patrocinados por Milosevic e Tudjman, enquanto os bósnios muçulmanos sofreram inexplicável – ou indesculpável – embargo de armas promovido pelos Estados Unidos, restando-lhes apenas correr e se esconder dos tiros vindos do invisível das montanhas, no caso de Sarajevo).
Desde o armistício entre a Iugoslávia e as forças da Organização do Tratado do Atlântico-Norte (Otan, a aliança militar ocidental), chegou a vez de os albano-kosovares fazerem uso da mídia para se vingar dos sérvios. Por isso, a imprensa de língua albanesa tem sido uma das muitas dores de cabeça de Bernard Kouchner, representante da ONU no enclave. Ele teve que interferir diretamente quando Petar Topoljski, tradutor sérvio da ONU de 25 anos, foi assassinado depois de ter seu nome publicado no jornal albano-kosovar Dita, que o acusou de ter participado da tentativa de limpeza étnica em 1999. Isso aconteceu em junho. Dois dias depois Kouchner, usando a então criada Comissão Independente de Mídia, suspendeu o veículo por uma semana. Mesmo assim, no dia em que voltou a circular, 13 de junho, reafirmou as acusações ao morto.
Só que Aiden White, secretário-geral da Federação Internacional de Jornalistas, gritou contra a suspensão, chamando o ato de "um perigoso precedente contra a liberdade de informação e de expressão", ecoado pelo grupo britânico de proteção aos direitos humanos Artigo 19. São muitos porém os exemplos de matérias incitando os albano-kosovares a atacarem os sérvios e ciganos que encontrarem.
Convivência na marra
A Rádio e TV Pristina, que comemorou recentemente 55 anos, acabou fechada por determinação do pessoal da ONU que administra o enclave. No seu lugar colocaram a Rádio e TV Kosovo, com apenas 56 funcionários tocando a empreitada toda, sob supervisão e patrocínio do governo suíço. Uma porta-voz da ONU, Nadia Younes, disse que a medida foi necessária para "acabar com a incitação de ódio étnico contra os sérvios". Complementando, criaram uma espécie de código de imprensa, segundo o qual veículos que propagarem informações destinadas à promoção de animosidade contra outras etnias podem ter suas operações suspensas, ou, em casos menos óbvios, a pagarem multas de até 100 mil marcos alemães (mais ou menos R$ 100 mil). Os penalizados podem recorrer ao Comitê de Mídia, formado por dois estrangeiros e um nativo. Mas Fiona Harrison, do Artigo 19, protesta contra o tal regulamento, pois "não pode ter força de lei, uma vez que não foi criado por um corpo legislativo".
O abacaxi é complicado, pois os legalismos podem acabar permitindo que um povo acostumado a técnicas pouco éticas em mídia repitam seus opressores. A ONU – contrária à ação da Otan por falta de legitimidade, alegando que não foi consultado o Conselho de Segurança – encontra-se em beco sem saída, pois precisa evitar uma história com cheiro de reprise (a "mídia que mata", como classificou Stambolic antes de desaparecer) e ao mesmo tempo respeitar os direitos humanos e de expressão dos albano-kosovares.
Na Bósnia, a tendência é a mesma e os problemas idem. A emissora RTV, da região sob comando sérvio (Republika Srpska), criou um programa chamado Drang Nach Balkan, clara referência ao famoso slogan da marcha rumo ao Leste de Hitler, Drang Nach Osten. A mesma estação chama as tropas internacionais S-For, que tomam conta da Bósnia-Herzegovina, de "Ustasha", que era o nome do governo croata aliado aos nazistas durante a Segunda Guerra. O Kanal S, também na Republika Srpska, em Pale, tem vinhetas embaladas por hinos dos chetniks, as milícias sérvias que lutaram, de forma praticamente suicida, contra os invasores turcos e, mais tarde, contra os nazistas. O problema é que os chetniks também lutavam contra croatas e muçulmanos, tendo assassinado muitos com requintes de crueldade mais tarde vistas no conflito desta década.
Os croatas da Bósnia, por sua vez, através da Rádio Postaja Drvar, usam em suas vinhetas hinos da Ustasha. A Comissão de Mídia na Bósnia teve que fechar a TV Erotel, de Mostar, mas por outro tipo de estratégia contra os bósnios muçulmanos: eles constantemente invadiam a freqüência da TV BHi. A batata quente que a ONU e as forças militares que tentam assentar os ânimos nos Balcãs têm nas mãos não encontra soluções fáceis ou universais. São povos que estão "convivendo" na marra, mesmo, sem a menor intenção de esquecer seu desejo de vingança. A história nos ensina que, em termos de Balcãs, sempre há um novo capítulo por vir.
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