CASO DE POLÍCIA
Gilson Caroni Filho (*)
Na tradição marxista, ideologia é definida como "consciência invertida de uma realidade invertida", ou "distorção que nasce das contradições sociais e busca ocultá-las". A definição cai como luva para observarmos o que move setores da mídia na elucidação do seqüestro do publicitário Washington Olivetto: a reabilitação da política de segurança pública de São Paulo (leia-se do PSDB) e o sepultamento editorial do incômodo assassinato do prefeito petista de Santo André, Celso Daniel.
Súbito, relevantes são os detalhes do cativeiro. A nacionalidade dos seqüestradores e, dado importante, um passado supostamente de esquerda do seu mentor. O jogo do imaginário a nós se afigura claro. O mais emblemático no crime não são as motivações presentes, mas o passado que antecipava o futuro. Como a dizer que por trás de um guerrilheiro sempre haverá uma motivação criminosa. Que cedo ou tarde virá à tona. As semelhanças com o seqüestro de Abílio Diniz em 1989 são enfatizadas com destaque ímpar na mídia impressa e televisiva. As coincidências não param por aqui: ambos foram levados a cabo em anos eleitorais. Portanto, caro (e)leitor, pense bem antes de optar por esses admiráveis barbudinhos e suas fórmulas maravilhosas. Velha mídia, velha receita. E o jogo mal começou.
Antes, Celso Daniel e seu partido já vinham sendo postos sob suspeição. Aventou-se que o assassinato talvez fosse o acerto interno de uma administração corrupta. Dois cadáveres de uma só cajadada: o do prefeito e o do capital ético acumulado por seu partido. Pena que internacionalmente as administrações petistas sejam tidas como exemplo de correção na administração pública. Mas dá-se um jeitinho. Poucos sabem dessa imagem externa e não serão as editorias internacionais que darão publicidade a tal fato. Como podemos ver, a imprensa não se furta a um discreto seqüestro da realidade, e o preço do resgate é coisa a ser combinada em quatro ou oito anos.
Era fundamental despolitizar o fato. Não mostrá-lo como enfrentamento com o crime organizado ou, quem sabe, uma organização de direita a ele associada. Mais que elucidá-lo como produto de motivação banal buscava-se a absolvição de um aparato falido. E não foi uma falência por ação incompetente. Longe disso, o sucateamento do sistema de segurança é produto direto de uma política de demolição do Estado. Como destacava Bernardo Kucinski, há duas edições, neste Observatório, o objetivo era obscurecer um cenário límpido: os oito anos de FHC entregaram este país ao capital rentista e ao crime organizado. Talvez estejamos escrevendo um truísmo. Pode ser que a globalização neoliberal seja ela mesma um crime organizado, e como. Adam Smith levado às últimas conseqüências se transforma em chefe de quadrilha. Era isso que a memória insepulta de Celso Daniel denunciava. Personagem de Incidente em Antares, de Erico Verissimo, vagava assustador esperando o esclarecimento de seu precoce desaparecimento. Antes da vida, agora da mídia. Sem exceção, todos os jornais do eixo Rio-São Paulo mexeram na cena do crime.
As primeiras páginas pertencerão durante dias ao publicitário famoso. De muito se falará da estudante de Medicina e seu estetoscópio sherlockiano. As páginas se abrirão para as ilações do "xerife" Romeu Tuma. O governador Alckmin sai do cativeiro político em que se encontrava há algumas semanas. A competência da polícia paulista será exaltada em editoriais que lembrarão o desfecho sem sangue do seqüestro. Loas serão tecidas à inteligência de uma investigação supostamente científica. E a realidade brutal se esconderá na diagramação fragmentada da realidade em terceira ou quarta edição.
Santo André e Campinas continuarão casos insolúveis. Sobre o assassinato de Toninho Duarte (prefeito petista de Campinas), poucas linhas ainda são escritas, de preferência no pé de uma página par. E, assim como fotos esmaecidas, os dois prefeitos petistas saem do álbum das editorias para que, nas de política, surja um Serra se dizendo saturado de tanta violência e fazendo do combate a ela um dos pilares de seu programa de governo. Aguardem. Para os que não crêem no milagre da ressurreição, aí estão a imprensa e a direita a mostrar que os mais farisaicos procedimentos nunca morrem como ação política.
(*) Professor de Sociologia da Facha-RJ