Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um debate sem fim?

ASSESSOR & JORNALISTA

Chico Sant?Anna (*)

A classificação da atividade do assessor de imprensa como sendo, ou não, uma função jornalística é tema de alto teor explosivo e polemiza dentro e fora das fronteiras brasileiras. O artigo de Bárbara Hartz, publicado neste Observatório [ "Assessor e jornalista, a separação necessária", remissão abaixo] trouxe à tona novamente o tema se valendo, para tanto, de referenciais práticos estrangeiros, como o fato de em Portugal o jornalista ter que depositar no sindicato a sua identidade profissional antes de assumir a comunicação institucional de alguma instituição ou empresa. Hartz cita também o acórdão n? 261412 do TST [15/05/1998, 3? Turma; relator: Ministro Antônio Fábio Ribeiro)] que não reconhece o assessor como jornalista.

Gostaria de retomar o assunto por uma outra ótica, mas, talvez em decorrência de meu passado de dirigente sindical, não me furtarei a comentar os argumentos por ela levantados.

A Justiça do Trabalho possui diversos outros casos em que há decisão contrária ao acórdão citado, assegurando, inclusive, a jornada de trabalho de cinco horas para os jornalistas que atuam nas assessorias. Só para citar alguns de memória, obtiveram tal reconhecimento os profissionais da Embrapa, do Ministério da Administração, do antigo IBDF, da Fundação Hospitalar do Distrito Federal e da Cia. de Desenvolvimento de Brasília ?Terracap. Decisões, por sinal, baseadas no Decreto 83.284/1969, que tornou obrigatório o respeito aos direitos trabalhistas do jornalista mesmo quando este estiver atuando fora das redações. A legislação define, entre as atividades privativas de jornalista, a de "coleta de notícias ou informações e seu preparo para divulgação"; o que é, basicamente o trabalho de um assessor. Se alguma dúvida ainda perdurasse a partir da leitura do decreto, estas se dissipariam no final da década de 1980.

No primeiro semestre de 1989, o então ministro do Trabalho Almir Pazzianotto editou portaria considerando jornalista como "categoria diferenciada". Na época, eu presidia interinamente a Fenaj e juntamente com os dirigentes sindicais Vilmar Alves, de Goiás, e Robson Moreira, de São Paulo, tivemos longa e demorada reunião com o ministro ? que viria presidir futuramente o TST. Ao final, e com respaldo de sua assessoria jurídica, o ministério reconheceu formalmente esta condição especifica do jornalista.

Para os leigos, "categoria diferenciada" significa a manutenção da especificidade profissional onde quer que o trabalho seja desempenhado. Assim como um médico continua sendo médico trabalhando para um banco ou metalúrgica, o mesmo deve legalmente acontecer com o jornalista. Foi com base nesses dois instrumentos legais, que o Ministério da Administração, na gestão Bresser Pereira, reconheceu legitimo o pleito do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal para assegurar ao jornalista do Serviço Público Federal a jornada de trabalho de cinco horas diárias até o limite de trinta semanais.

Imagens embargadas

Sob o aspecto jurídico, creio não existir, portanto, muitas dúvidas, embora aqui ou ali possam surgir decisões discordantes do senso comum. Sob a ótica da realidade prática, não há muito que se discutir: o mercado é gerido por profissionais de formação jornalística. Fica então o debate para a questão ética. Bárbara Hartz cita Ricardo Noblat para justificar que um assessor de imprensa não pode ser considerado jornalista, pois não tem autonomia necessária para praticar o jornalismo. É certo que o profissional que atua numa estrutura de comunicação institucional segue uma linha editorial especifica. O mesmo, porém, acontece com os profissionais que estão na chamada imprensa tradicional. Em ambos os casos, a veracidade dos fatos divulgados coloca em risco a credibilidade profissional de quem os divulga. Além disso, a linha editorial da imprensa tradicional não está imune à ingerência dos interesses econômicos, políticos e até de marketing.

Sobre esta "marketização da imprensa", aproveito para recomendar a leitura de Sempre Alerta, livro de Jorge Cláudio Ribeiro, que compara as rotinas profissionais entre os diários Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo e evidencia muito bem como interesses outros influenciam na definição das linhas editoriais. Nem mesmo a famosa BBC de Londres é assim tão pura. Philip Schlesinger, em Putting ?Reality? Together, BBC news, recupera um lema interessante que marcou o critério de seleção de notícias desse veículo inglês: "A BBC é pelo povo, o governo inglês é pelo povo, por isso a BBC é pelo governo".

Trago aqui outra análise, desta vez do chileno Juan Somavía, estudioso do comportamento da imprensa face aos grandes interesses. Diz o ele: "Os critérios da seleção das notícias estão determinados, consciente ou mecanicamente, pelos interesses políticos e econômicos do sistema transnacional e dos países onde tal sistema tem suas raízes". Os processos de convergência tecnológica, bem como as fusões de empresas do setor de comunicação, tendem a dar maior impacto nas conseqüências da disseminação de determinadas informações e mensagens ? por isso a definição do conteúdo informativo disseminado, a chamada agenda informativa, se torna ainda mais estratégica. Para refrescar a memória, podemos lembrar como a "autonomia jornalística" citada pela autora do artigo publicado no OI comportou-se durante as Diretas Já, a eleição presidencial Lula x Collor, o atentado ao Riocentro, a edição do Plano Cruzado e tantos outros episódios de nossa história recente.

Um outro fator importante a ressaltar é o requisito legal para ser jornalista, aqui e no exterior. Enquanto no Brasil é considerado jornalista aquele que é detentor de um diploma universitário especifico, na maioria dos demais países torna-se jornalista quem passa a ter um emprego numa empresa jornalística, seja ela pública ou privada. E se mantém jornalista enquanto perdurar o vínculo empregatício com o setor. No Brasil somos jornalistas por formação acadêmica e assumimos tal status legal antes mesmo do primeiro emprego. A falta de uma cultura jornalística emanada dos bancos escolares preocupa intelectuais em diversos países. Ficando com o empregador o poder de decidir, via oferta de emprego, quem será e quem não será jornalista, aumenta a vulnerabilidade do profissional face ao patronato, seja ele privado ou estatal.

Em Portugal, na França e em outras nações é cada vez mais profundo o debate sobre a obrigatoriedade da formação acadêmica para jornalistas, de forma a garantir um padrão profissional e ético. Busca-se, assim, a construção de um campo profissional com delimitações deontológicas mais precisas. O avanço sobre a autonomia jornalística se faz cada vez mais presente. Na Espanha do primeiro?ministro José Maria Aznar, por exemplo, onde também não vigora a exigência do diploma, a autonomia jornalística da famosa TV de Espanha é seriamente criticada. A delicadeza do quadro ficou ainda mais evidenciada durante o período pré-Guerra do Iraque. No noticiário nacional, a emissora deixou de dar a devida ênfase aos protestos do povo de Barcelona contra o apoio espanhol à guerra do Iraque. As imagens transmitidas pelas agências para o mundo inteiro não receberam o mesmo espaço na emissora de Madri. A relação da imprensa e dos grandes grupos econômicos diante das guerras do Golfo e do Iraque é analisada por diversos autores ? vide Noam Chomsky, Eduard Said, Gilberto Dupas, entre outros. Seus livros analisam a autonomia jornalística da imprensa, dita independente.

Agenda mediatizada

A formação acadêmica brasileira, alvo de polêmicas decisões judiciais, permite dotar o recém-formado dos mesmos referenciais profissionais, quer ele vá trabalhar em assessoria de imprensa ou num jornal. Ao chegar ao mercado de trabalho, ele terá como referencial ético um mesmo Código aprovado em 1985 por jornalistas ? da imprensa tradicional e de fora das redações ? e uma mesma representação sindical.

Em alguns outros países, não há a formação acadêmica para nenhuma das atividades de comunicação social, seja ela jornalismo, relações públicas ou publicidade. O mercado mescla e regula tudo. E o status quo de ser este ou aquele profissional estará vinculado ao emprego e ao efetivo desempenho da atividade. Se deixar a atividade por mais de dois anos, o comunicador deixará de ser comunicador. Estes profissionais passam a ser, então, bem mais vulneráveis às pressões externas do que os seus colegas brasileiros. Este é um dos riscos que corremos com a campanha pelo da obrigatoriedade do diploma para o exercício profissional: retornar ao "jornalismo amarelo" do passado, no qual o achaque, a matéria paga e os favores definiam as manchetes.

A formação acadêmica introduziu um outro elemento cultural nos nossos jornalistas, principalmente aqueles que se formaram até o fim da década de 1980. Nesta época, alguns valores impregnaram nossas academias, tais como o princípio propugnado pela Unesco, de comunicação para o desenvolvimento; as idéias da Escola de Frankfurt, apontando o poder da mídia para a construção da esfera pública ? e daí a importância de se defender a democratização dos meios de comunicação ?; e a necessidade de dotar o país de maior transparência nos feitos públicos.

A imprensa vivia uma crise econômica, reduzindo os postos de trabalhos. A ditadura também dificultava a presença nas redações de muitos jornalistas com visão política elaborada. Uns e outros acabaram encontrando trabalho na imprensa institucional, que a partir de sindicatos, entidades religiosas e comunitárias se contrapunham à agenda oficial difundida pela imprensa tradicional. Uma agenda moldada pela censura dos militares e também pelo interesse de alguns veículos.

No Brasil dos anos 1970-80, após a opressão à imprensa alternativa ? que por meio de jornais como Movimento, Opinião, Coojornal e outros buscava falar o que a imprensa comercial não dizia com a sua autonomia jornalística ?, coube às assessorias de imprensa das organizações sociais inserir na agenda temas evitados pela grande imprensa. A chamada imprensa sindical, segundo pesquisa da professora Arcelina Helena Pubio Dias, chegou a possuir tiragem equivalente aos quatro grandes jornais nacionais somados. Foram estas experiências que plantaram uma semente diferente no mundo da comunicação institucional brasileira. Desta semente nasceram frutos como a rede de rádios e TVs comunitárias, canais legislativos, agências de notícias voltadas aos direitos ambientais, da infância, da igreja católica… Todos lutando por um espaço na esfera pública, uma esfera que sofre efeitos da agenda mediatizada pela imprensa.

"Fazer falar de mim"

Esta diferença se materializa na própria denominação que a profissão adota aqui e no exterior. Os espanófonos a tratam de publicista, identificando um objetivo comercial no desempenho da comunicação institucional. Já os francófonos preferem relationiste, vinculando-a a construção de imagens.

No Brasil, as assessorias de imprensa se notabilizaram pelo ideal de dar transparência às entidades assessoradas. Também não se pode enquadrar o nosso assessor de imprensa como "porta-voz", o que é muito comum de acontecer no exterior. No Brasil, o quadro legal conseguiu separar Publicidade de Relações Públicas, estes dois de Assessoria de Imprensa e todos esses de comunicadores de rádio e TV. Lá fora não há muita diferença do perfil desses profissionais ? e a ação de algumas empresas estrangeiras que chegaram ao país mostra que o parâmetro delas consiste no que popularmente é chamado de "marqueteiro".

O tema é efetivamente complexo. E é alvo de estudos e pesquisas acadêmicas em diversos países, onde os pesquisadores de variadas perspectivas científicas não se arriscam a bater o martelo de forma categórica. Falam de uma "hibridação da informação". A informação difundida pelas estruturas de comunicação institucional é tratada por uns pela ótica da construção de imagens ou do ganho comercial; por outros, como uma ação de lobby. Há ainda os que as vêem como sendo aquilo que os americanos chamam de jornalismo cívico e os franceses de journalisme de communication. Pesquisas são igualmente feitas a partir da ótica do public journalism, ou mesmo como uma resposta da sociedade ao jornalismo de mercado pautado pelas leis de marketing.

Independente de qual seja a perspectiva de análise adotada, antes de se jogar a imprensa e seus jornalistas no altar das purezas e as comunicações institucionais e seus profissionais nas profundezas do pecado, deixo alguns dados para a reflexão:

** O massivo aproveitamento pela imprensa de textos, dossiês de imprensa, releases em papel e em formato rádio e TV elaborados pelas empresas e instituições. Segundo Tom Koch, na grande imprensa norte-americana perto de 70% dos artigos consistem numa re-redação de textos emanados das fontes oficiais.

** Segundo Erich Neveu, 40.000 attachés de presse trabalham na França, número superior ao de jornalistas e que não inclui os coordenadores de comunicação que são um grupo ainda mais amplo sob o aspecto de tarefa e origem.

** O canadense Jean de Bonville aponta que a estratégia discursiva adotada pelas fontes não se limita apenas à produção do próprio discurso. Elas influem sobre o texto jornalístico de muitas outras maneiras. O caso dos pseudo-acontecimentos é uma demonstração típica desta estratégia que visa a "fazer falar de mim" ? ou seja, influir no agendamento.

** No Brasil, dados da Relação Anual de Informações Social apontam no setor privado a existência de aproximadamente 20 mil jornalistas (números de 1999). A metade trabalha nas redações de jornais, revistas, rádio e TV. A outra metade trabalha no que podemos chamar de extra-redação (assessorias, produtoras, veículos institucionais etc). Há ainda os jornalistas do setor público (um universo de outros 20 mil), que, salvo exceções de raros veículos, trabalham essencialmente nas comunicações institucionais, gerando notícia para a opinião pública. Ou seja: no Brasil, como a França, existe mais comunicador institucional informando do que jornalista atuando em veículo de comunicação.

(*) Jornalista na TV Senado, ex-vice-presidente da Federação Internacional dos Jornalistas, mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília e doutorando em Ciências de Informação e Comunicação na Universidade de Rennes 1, França. E-mail <chicosantanna@hotmail.com>

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