Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um gigante do brasilianismo acadêmico

Robert Levine era o que se poderia chamar um “americano tranqüilo”, mas isso apenas no trato pessoal, no relacionamento com os muitos amigos, com colegas pesquisadores e com os estudantes em geral: afável ao extremo, constantemente atento ao que seu interlocutor tinha a dizer, respondendo com calma, e firmeza, aos argumentos de um eventual opositor no campo das idéias, ele tinha um charme discreto e um ar eternamente infantil ? as sardas ajudavam ? que o fez consagrado no milieu.

No campo da pesquisa acadêmica e da produção brasilianista, entretanto, ele era o contrário de um personagem proustiano: verdadeiro vulcão intelectual em erupção, produtivo no mais alto grau, de fato um protótipo de Stakhanov do brasilianismo acadêmico, sua produção acumulada é talvez uma das maiores, senão a maior, dessa tribo de acadêmicos americanos que, recém saída das bibliotecas universitárias, resolveu se voltar para um país imenso, sumariamente conhecido nos EUA como tendo produzido, na “longínqua” América do Sul, uma Carmen Miranda vagamente parecida com o Zé Carioca, e que ainda continuava a fornecer, nos anos 1950, a maior parte do café consumido no país.

Difícil falar de Bob Levine sem mencionar sua produção realmente gigantesca sobre o Brasil, talvez o equivalente, em numero de páginas, a uma Enciclopédia Britânica inteira, quase toda ela sobre o Brasil, com todas as notas de rodapé a que temos direito pelas boas regras da citação fundamentada, bibliografias imensas e seções metodológicas pertinentes, como convém enfim a um full scholar e intelectual distinguido. Aos que gostariam de conhecer um pouco de sua produção, sugiro acessar a nota biográfica que figura no seu site da Universidade de Miami, e que remete às listas completas dos livros e a uma seleção de seus artigos mais importantes, em <http://www.as.miami.edu/las/levine.htm>.

Papéis familiares

Sem recorrer aos clichês habituais ? de que ele deixou uma marca indelével na pesquisa histórica sobre o Brasil, por exemplo ? cabe ainda assim relembrar que Bob foi sobretudo um desbravador de selvas arquivísticas e de estradas poeirentas, em várias partes do Brasil. Seu primeiro livro sobre a pesquisa historiográfica em nosso país se parece aliás com um desses manuais de terras incógnitas, freqüentados por exploradores com chapéu de caçador, apropriadamente intitulado Brazil: Field Guide to Research in the Social Sciences (New York: Columbia University Institute of Latin American Studies, 1966), do qual ele foi o principal editor e um dos colaboradores (junto com outros pioneiros e hoje “velhos” conhecidos da área, como Riordan Roett). Curioso que um de seus últimos trabalhos também tenha sido um ensaio sobre a pesquisa em torno do Brasil que ele preparou, a meu pedido, para o livro de avaliação crítica sobre o brasilianismo acadêmico que resultou de dois seminários organizados pela Embaixada do Brasil em Washington: O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000 (São Paulo: Paz e Terra, 2002).

Tendo sido estudante de Stanley Stein, Levine logo integrou aquela categoria de bolsistas conhecidos como “filhos de Fidel”: eles foram os beneficiários das preocupações não puramente acadêmicas das autoridades americanas em plena Guerra Fria e também se beneficiaram da abertura que a elite brasileira permitiu em seus papéis familiares numa época em que o acesso aos arquivos era difícil aos pesquisadores brasileiros, até por razões materiais (Levine acedeu por exemplo aos documentos de Getúlio Vargas através de Alzira Vargas do Amaral Peixoto). Foram esses jovens doutores em assuntos brasileiros ? na verdade, a figura do brasilianista existe praticamente mais no Brasil do que nos EUA ? que passaram a formar gerações de novos pesquisadores, americanos e brasileiros. Citem-se, apenas na área de história, colegas de Levine como Richard Morse, E. Bradford Burns (um pouco mais velhos), Richard Graham, John Wirth, Warren Dean, John Russell-Wood (britânico, como Kenneth Maxwell), Tom Skidmore, Joseph Love, Stuart Schwartz, Stanley Hilton, Frank McCann, Robert Toplin, Robert Conrad, Steven Topik, Neill Macaulay e muitos outros.

Vácuo históricos

Metade da vida acadêmica de Bob Levine transcorreu na State University of New York em Stony Brook, de 1961 até 1981, quando então ele inicia nova etapa na Universidade de Miami, onde se desempenhou como Diretor de Estudos Latino-Americanos. À primeira fase pertencem os livros The Vargas Regime: The Critical Years, 1934-1938 (1970; publicado no Brasil apenas dez anos depois), Pernambuco in the Brazilian Federation, 1889-1937 (1978; um projeto de estudo do regionalismo político brasileiro, junto com Love e Wirth) e Historical Dictionary of Brazil (1979; completado com duas bibliografias anotadas sobre o Brasil, de mais de 450 páginas, cada uma). No período subseqüente, ele diversificou enormemente sua produção historiográfica, tocando em outros países, mas ainda assim publicou sobre o Brasil, Vale of Tears: The Canudos Massacre in Northeast Brazil Revisited (1992; uma revisão do drama de Canudos), Father of the Poor? Getúlio Vargas and His Era (1998), ademais do enorme The Brazil Reader (1999), um manual quase completo sobre o que se deve ler para conhecer a história do Brasil. Os artigos de revistas ou capítulos em livros coletivos se contam às dezenas, assim como as resenhas críticas e os pareceres que ele deu para diversas editoras universitárias sobre livros da área.

Quando o convidei para novo seminário de estudos brasileiros na Embaixada em Washington, em outubro de 2002, onde deveria receber o título de Brasilianista Emérito (Distinguished Brazilian Studies Scholar), ele deixou de comparecer, talvez porque os primeiros sintomas da doença que viria vitimá-lo já se tivessem manifestado. Esse diploma, que na ocasião foi atribuído a Tom Skidmore, a Jon Tolman, a Joseph Love e a Werner Baer, lhe será certamente atribuído, ainda que em caráter póstumo. Bob Levine dispensa, na verdade, homenagens formais desse tipo, pois sua obra constitui, por si só, um verdadeiro monumento no campo dos estudos históricos sobre o Brasil.

Eu ousaria dizer, numa estimação arriscada e provavelmente impressionista, que sua perda representa a amputação de mais de dez por cento do “PIB histórico brasilianista”, tão importante foi sua contribuição para esse campo de estudos acadêmicos nos EUA. De Bob Levine pode-se dizer, com toda tranqüilidade, que, se ele não pertence, stricto sensu, à história do Brasil, ele certamente fez a história do Brasil, mais e melhor do que muitos colegas, no Brasil e nos Estados Unidos. Nos dois países, em dois continentes, um vácuo histórico acaba de abrir-se. Saudades, muitas saudades, Bob.

(*) Diplomata, doutor em Ciências Sociais; e-mail <pralmeida@mac.com>; URL <www.pralmeida.org>