Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um gênero que o Brasil começa a conhecer

CIVIC JOURNALISM

Luiz Martins (*)

Nos dias 27 e 28 de maio, a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, com apoio da Embaixada dos Estados Unidos, recebe para duas aulas inaugurais, uma na pós-graduação e outra na graduação, o professor Chris Peck, diretor de Jornalismo da Universidade Metodista Sulista (SMU), de Dallas, para falar sobre um dos temas das suas especialidades, o civic journalism.

O civic journalism é um movimento que vem se expandindo há mais de uma década e até já tem enfrentado questionamentos, pois se baseia no princípio de que a missão do jornalismo e dos jornalistas não se limita aos fatos e às notícias, exigindo engajamentos nas soluções dos problemas reportados e noticiados, no caso, problemas sociais e suas correspondentes políticas públicas. Por aqui, no entanto, essa vertente ainda não mereceu sequer uma tradução definitiva. Jornalismo cívico teria uma conotação muito específica, mais afeita ao campo do patriotismo e dos símbolos nacionais.

A outra acepção, também usual, é a de public journalism. "Jornalismo público" será, portanto, a melhor tradução, ainda que podendo atrair uma conotação indesejada, a de jornalismo chapa branca, fora o inconveniente tautológico de que todo jornalismo é de natureza pública. O problema é que no Brasil a idéia de público tem sido associada à esfera estatal, o que não condiz com o civic journalism, uma militância essencialmente oriunda da iniciativa privada e da sociedade civil organizada. "Jornalismo cidadão" também seria uma boa maneira de transpor o conceito, mas ainda incompleta, pois a relação entre mídia e cidadania não tem dependido apenas das iniciativas da comunidade, mas, sobretudo de empresas e organizações. Ou seja, tradicionalmente, o civic journalism tem sido praticado em grandes projetos da iniciativa privada, e não propriamente pela mídia comunitária, embora o jornalismo comunitário muito se assemelhe aos propósitos do civic journalism.

Quando grandes jornais resolvem, por exemplo, dedicar sistematicamente parte de seu esforço de cobertura a causas públicas, estão praticando civic journalism. Quando empresas não-jornalísticas resolvem financiar ou dar apoio institucional a coberturas dos mesmos assuntos, também ingressam nesta linha. O combate às drogas e à violência urbana tem sido uma constante nas temáticas desse gênero de reportagem, embora, nos Estados Unidos, o civic journalism esteja muito associado, desde as suas origens, à formação do eleitor e ao estímulo ao voto, que para os americanos é facultativo. Não basta votar, é preciso que o público assuma a responsabilidade de votar em candidatos diretamente interessados em seus problemas.

O civic journalism se distingue de uma simples campanha. Não se trata apenas de uma série de reportagens sobre um problema social, mas da adoção permanente de uma ou mais causas públicas por um veículo de comunicação. É o que tem feito o Correio Braziliense em suas campanhas de Paz no Trânsito e Eu quero paz ? a não ser o Correio venha a encerrar tais coberturas especiais, encarando-as como "campanhas" com início, meio e fim. A TV Globo estará fazendo civic journalism se um programa como o Globo Comunidade (que em Brasília vai ao ar aos domingos, às 7h) não vier a ser cancelado de uma hora para outra por questões de audiência, patrocínio ou simples decisão de um novo chefe de sucursal. O civic journalism caracteriza-se pela existência e a manutenção de um vínculo social por parte do veículo, ou, como o definiu Carlos Eduardo Lins e Silva (revista Imprensa, janeiro de 1997), "o jornalismo cívico é um elo entre os cidadãos e os problemas da comunidade".

Bem-estar coletivo

O civic journalism, como gênero, é uma invenção americana, mas que tem sido replicado em outros países. Hoje, há numerosos centros especializados em fomentá-lo nos EUA, e é um assunto com vasta indexação nos sítios de busca da internet e com centenas de páginas especializadas, que guiam o navegador interessado tanto para instituições promotoras quanto para uma ampla bibliografia já existente em inglês e, em menor parcela, em espanhol e português. Nos sites de busca basta procurar por public journalism, jornalismo público ou civic journalism. Uma das principais instituições do gênero vem a ser o Pew Center for Civic Journalism <www.pewcenter.org>, de Washington, criado pelo pioneiro The Pew Charitable Trusts of Philadelphia. Esta organização tomou a iniciativa, em 1933, de explorar diversas formas de encorajar o cidadão a se envolver nas soluções de seus problemas comunitários, culminando com a formulação de um convite para que o veterano Ed Fouhy, jornalista de TV que nas campanhas eleitorais de 1988 e 1992 promoveu debates presidenciais, estivesse à frente da iniciativa. Outra referência obrigatória é o The Poynter Institute for Media Studies ,www.poynter.org>. Charlote (Carolina do Norte), Madison (Wisconsin), Tallahassee (Flórida), Boston (Massachusetts), San Francisco (Califórnia) e Seattle (Washington) estão entre os principais centros onde se consolidaram experiências de jornalismo voltado para a cidadania.

Por vezes, travam-se acaloradas polêmicas sobre o civic journalism, seja em torno do berço conservador que o trouxe ao mundo (financiamentos altruístas de um poderoso industrial), seja em decorrência da visão tradicional de que o papel dos jornalistas é investigar os fatos, sem se envolver com projetos de assistência social, benemerência e filantropia. Há jornalistas e empresas jornalísticas, no entanto, que não se contentam em noticiar os fatos. Querem também se empenhar na busca das soluções, para isso interagindo diretamente com os cidadãos, com as comunidades e com as suas mobilizações. Outra forma é o cuidado com que grande parcela dos editores trata as matérias jornalísticas, agregando valores sociais aos valores-notícia comuns e incorporando às matérias boxes de informações, serviços, telefones, e-mails, sites e outros elementos úteis para que os leitores interessados tenham como procurar apoio. É o que se poderia chamar de agregar aos problemas sociais um entorno institucional. Se uma reportagem fala do alcoolismo e suas conseqüências, o serviço prestado pelo veículo ficará completo se indicar os telefones da Associação dos Alcoólicos Anônimos e de atendimentos públicos especializados.

A fundação Pew Trust foi criada em 1948 pelos herdeiros de Joseph Newton Pew, proprietário da Sun Oil Company. Eles pretendiam financiar projetos de jornalismo que dessem ressonância às idéias do patriarca, reservando para isso verba de US$ 12 milhões. O civic journalism, no entanto, ganhou vida própria, a partir do conceito criado por David Merrit, editor-chefe do Wichita Eagle, o veículo de maior circulação no estado do Kansas. Freqüentemente associado à direita americana, o civic journalism não merece tal estigma, pois o combate ao consumo de drogas e a redução da violência são problemas de todos, independentemente de ideologias. E, quando uma causa é pública, não faz sentido falar em lobby, mas em advocacy, campo necessariamente associado à defesa de idéias emancipatórias e a causas de interesse público. Enquanto o lobby proporciona dividendos materiais e políticos privados, a advocacy gera ganhos quantitativos e qualitativos para o bem-estar coletivo, para a sociedade como um todo.

(*) Jornalista e professor, coordena, na UnB, um projeto integrado de pesquisa e extensão, o SOS-Imprensa, a serviço do cidadão comum em casos de erros, abusos e vítimas da imprensa