Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um jogo só de perdedores

IMPRENSA ALTERNATIVA

Luciano Martins Costa (*)

O pesquisador brasileiro-alemão Christiano German, professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Católica de Eichstaett e de Política Européia na Universidade Técnica de Braunschweig, na Alemanha, tem recheado de observações interessantes o cenário de debates sobre a mídia, principalmente em função do surgimento da tecnologia da informação.

Num trabalho publicado, salvo engano, por volta de 1997, sob o título "Perdedores e vencedores na sociedade da informação", German alertava para o risco de um novo apartheid global, com grandes possibilidades de potencializar num nível nunca antes visto as diferenças sociais que têm historicamente dificultado o desenvolvimento da democracia no mundo.

O apartheid digital é hoje uma realidade definidora das chances de sobrevivência dos indivíduos, tanto no mais amplo cenário mundial como no ambiente restrito de pequenas comunidades, com potencial para se transformar em foco de conflitos sociais. Há algumas semanas, por exemplo, uma organização não-governamental que atua com populações carentes numa favela da zona Oeste de São Paulo vem tendo seu trabalho questionado porque alguns jovens delinqüentes, excluídos de um projeto de educação em informática,
passaram a ameaçar seus vizinhos que freqüentam o programa. Como não há outra razão aparente para o conflito, uma vez que um grupo não interfere nas rotinas do outro, parece claro para alguns coordenadores que a hostilidade dos excluídos nasce simplesmente da percepção de sua condição de excluídos.

Segundo German, a nova divisão erode mais um ponto do tecido social e cria novo abismo, entre os ricos em informação (information rich) e os desprovidos de informação (information poor), dando origem, respectivamente, a uma elite on line e um proletariado off line. O conflito na favela paulistana revela que o fenômeno perverso se repete mesmo num microcosmo cujos habitantes teriam de ser considerados, conjuntamente e igualitariamente, indivíduos carentes. Essa é uma realidade que tem fugido à análise da mídia, mesmo porque ela também, na medida em que se esquiva de retratar mais profundamente a sociedade sobremoderna, questionando os fundamentos de seu modelo político e econômico, acaba contribuindo para gerar novos círculos de exclusão, na concepção sintetizada por Joseph Stiglitz como "informação assimétrica". E acaba também atingida pelo fenômeno que ajuda a criar ou a agravar.

Dois mundos

É a partir da idéia de assimetria da informação ? ou "informação assimétrica", conforme as observações feitas aqui por Alberto Dines [abaixo, remissão para o artigo "Informação assimétrica é o nome do jogo"] ? que podemos traçar um retrato mais compreensível do estado de coisas na sociedade brasileira e sua relação com a situação real da imprensa. Trata-se de uma extensão perversa da exclusão social, potencializada pela exclusão digital e exacerbada pela abordagem equivocada que os grandes personagens da
nova economia ? com destaque para as empresas de comunicação ? deram à tecnologia da informação.

Ao simplesmente embarcar, deslumbrada, na chamada onda digital, no início dos anos 1990, sem questionar o modelo econômico sobre o qual se impunha a poderosa tecnologia, a mídia contribuiu para que os benefícios desse avanço agravassem as diferenças que, mal ou bem, vinham apresentando sinais de arrefecimento desde os anos 1980. Até que a própria mídia e outros setores tornaram-se também vítimas dessa dicotomia, que altera as regras do jogo econômico, social e político, gerando perdedores a priori e vencedores de princípio.

Vamos passar ao largo dos efeitos desse fenômeno na imprensa, como resultado, uma vez que Alberto Dines já traçou aqui um panorama bastante claro das distorções incontornáveis que ele produz [veja remissão]. Na economia real, aquela analisada por Dines sob o prisma da imprensa, a assimetria da informação também constrói um universo desconexo, no qual as chances de uma empresa podem ser ampliadas ou reduzidas a pó, num jogo competitivo no qual as regras têm valores diferentes para um ou outro player, conforme o tipo e volume de informação de que dispõe.

Dirão alguns mais atentos que sempre foi assim, mas não falamos da circunstância predominante no antigo mundo das concretudes, em que, de certo modo, as informações mais relevantes estavam disponíveis de modo mais igualitário. No universo hipermediado, o eixo da balança se desloca muito mais rapidamente e, na mesma proporção, com um peso muito maior, pela rapidez com que fluem as informações, por seu novo aspecto multidirecional e pelo impacto que têm no ritmo de decisões e rupturas mais acelerado que caracteriza a chamada nova economia.

O mesmo se dá no âmbito dos indivíduos, no qual a expressão "descolado" passa a significar, gaiatamente, aquele que leva vantagem no jogo social, por se situar no prato favorecido pela assimetria. Sobrepostos os fatores que se originam dos pecados originais do sistema econômico ao acúmulo de distorções inerentes ao adensamento das populações de diversificadas culturas e graus de educação, e somados os efeitos primários do divisor digital, a assimetria da informação produz de fato uma duplicidade de universos que se reproduz em múltiplas e infinitas dimensões ? ou seja, numa amplitude diretamente proporcional à intensidade das relações humanas.

Para todos os lados que se volte, o observador irá constatar a convivência de dois mundos, como no clássico gibi do Superman em que ele é lançado no universo bizarro, onde ele é o supervilão.

Significados e significantes

Em todos os setores de nossas atividades, pode-se constatar a ação oportunista daqueles que perceberam a possibilidade de ganhar o jogo com um cacife irrisório, pela vantagem na balança da informação. Essa nova realidade influencia fortemente o mundo das comunicações, a começar de algumas técnicas de marketing facilmente identificadas por aquela característica que a mídia nacional chama de fashion, em bom português contemporâneo.

Não por acaso, a eclosão da economia digital, na virada do século, coincidiu com a predominância do capital especulativo (exemplo gritante de apropriação de valor pela assimetria da informação) sobre o capital produtivo. Até 1990, a relação entre capital especulativo e capital produtivo era de 1 para 9. No auge da "bolha" da economia digital, essa proporção estava invertida e o volume de dinheiro corrente em aplicações oportunistas, sem vínculo com geração de riqueza no sentido clássico, e voltada unicamente para a reprodução do mesmo capital, passava de 1,5 trilhão de dólares. Por dia.

No mesmo grau de causa-conseqüência se pode situar o processo avassalador de concentração ocorrido na mídia no mesmo período, e aí voltamos ao ponto em que nos deixou o citado artigo de Alberto Dines. Estamos todos presos a essa armadilha, da qual resulta, entre outras distorções, uma completa subversão de significados e significantes. Até mesmo a instituição da imprensa alternativa, da qual já tratamos transversalmente neste mesmo Observatório [veja remissão abaixo] , acaba reproduzindo o vício em seu universo ideológico, criando suas próprias celebridades e suas unanimidades.

Círculo de perversidades

Ao abandonar seu papel histórico de resistência e aceitar o debate nos termos em que é colocado pelo sistema, ela, a imprensa alternativa, ingressa no jogo pelo portão principal e empresta certa legitimidade ao imbróglio geral, como os sites e blogs dedicados a teorias conspiratórias. Seus protagonistas, no voluntarismo e na ânsia de contestar o que vai na grande mídia, acabam por atentar contra a própria natureza do jornalismo ? como um repórter que, recém-chegado do Iraque, afirma que pratica um jornalismo de um lado só, que se considera o defensor dos interesses iraquianos contra o invasor estrangeiro e que procura "forçar a mão" em favor dos que considera menos favorecidos, como compensação pelo adesismo da grande imprensa. A chamada "alternativa", então, se reduz à condição de "complementar", assumindo o papel de coadjuvante no jogo geral. Como o Superman bizarro.

Nesse cenário, há uma equação que não quer fechar: se os "nanicos" se negam a crescer, quem nos há de valer na necessidade de reinventar a imprensa? Os grandes conglomerados ou confluências de interesses nascidos desse destempero da História podem produzir uma imprensa aceitável? É fato que o capital especulativo, parte significativa do qual vinculado ao crime organizado, procura agora sua legitimação. Como o bicheiro que, após consolidar sua fortuna, busca a honorabilidade num diploma de bacharel ou no título de comendador, tais personagens da nossa sociedade julgam muito conveniente investir em negócios de mídia.

Forma-se, então, novo círculo de perversidades, no qual, além de favorecidos pela assimetria da informação, tais jogadores entram em campo, contra as empresas tradicionais de mídia afogadas em crise, contando com a vantagem adicional do dinheiro barato. E, um dia, aqueles que celebraram a nova era como a consolidação do chamado sistema econômico liberal, vão acordar e perceber que foram excluídos.

(*) Jornalista

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Imprensa alternativa, procura-se ? L.M.C.